Neocatecumenais: a Igreja pouco católica que desafia Francisco. Artigo de Marco Marzano

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01 Julho 2015

No Caminho Neocatecumenal, são reduzidas ao mínimo as diferenças locais, a criatividade e a inteligência pessoais: as palavras do chefe ecoam em todas as latitudes. Sempre iguais. Um padre me disse uma vez que reconhecia os catecumenais na confissão pelo uso obsessivo de certas palavras.

A opinião é do sociólogo italiano Marco Marzano, professor da Universidade de Bérgamo, em artigo publicado no jornal Il Fatto Quotidiano, 28-06-2015. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

Eis o texto.

No Family Day do sábado passado, 20 de junho, ele falou por último, como sempre fazem as lideranças nos comícios. E falou muito, quase uma hora, muito mais do que todos os outros oradores. Trata-se de Kiko Argüello, o líder absoluto dos neocatecumenais, o grupo que ele mesmo fundou há quase meio século: uma organização hiper-hierárquica, com uma cadeia de comando quase militar que responde a ele, o ex-pintor espanhol não propriamente de sucesso, que se revelou um extraordinário evangelizador, primeiro nos bairros populares de Madri e, depois, na Itália, a sua pátria de escolha.

No início, os seguidores de Kiko viviam na semiclandestinidade, coagulados em torno de poucas paróquias e, em particular, na paróquia romana intitulada aos Mártires Canadenses. A virada, como para os outros movimentos eclesiais, chegou com o pontificado de João Paulo II.

O papa polonês desenvolvido em relação à organização de Kiko um afeto particular, recíproco: muitas foram as vezes em que ele os encontrou, especialmente nas paróquias romanas, e sempre foi massiva a sua participação nas Jornadas Mundiais da Juventude ou nas grandes manifestações de massa convocadas pelo cardeal wojtyliano Camillo Ruini.

Diz-se que o braço direito de Kiko, Carmen Hernández, tinha um acesso tão privilegiado no Vaticano que lhe era permitida – um privilégio raríssimo – a oportunidade de pernoitar lá, pois dispunha de um quarto seu.

O favor com que João Paulo II olhava para o movimento permitiu o seu enorme crescimento. Um crescimento maligno, no entanto, porque mata todas as criaturas sociais circundantes, começando pelas paróquias, desertificadas e empobrecidas quando chega o Caminho.

O neocatecumenal é um caminho iniciático finalizado – assim defende Kiko – à redescoberta da pureza da própria fé cristã. As etapas desse longuíssimo caminho (que dura mais de 10 anos) foram todas criadas pelo gênio organizacional de Kiko, assim como os cantos (muito importante na vida da organização) e das imagens que aparecem nos lugares onde o Caminho se assentou. Kiko também é o autor das catequeses, dos ensinamentos que as lideranças da organização administram aos adeptos.

No Caminho, são reduzidas ao mínimo as diferenças locais, a criatividade e a inteligência pessoais: as palavras do chefe ecoam em todas as latitudes. Sempre iguais. Os cantos repetidos se tornam jargão, tornam-se padrão, acabam substituindo a linguagem comum. Um padre me disse uma vez que reconhecia os catecumenais na confissão pelo uso obsessivo de certas palavras.

É um lento processo de esvaziamento da subjetividade e da liberdade praticado pelos neocatecumenais. O futuro adepto é atraído por uma faixa do lado de fora de uma paróquia, onde se convida a frequentar uma "catequese para adultos". Ou, mais frequentemente, qualquer parente ou conhecido é convencido a participar dela. Na origem da escolha, muitas vezes, há uma crise pessoal ou o desejo de fazer uma experiência espiritual intensa, uma ânsia de conversão.

As primeiras catequeses são introdutórias. O nome de Kiko e da própria organização nunca, ou quase nunca, são ditos. Terminam com um fim de semana de convivência, no qual nasce oficialmente "a comunidade", aquela célula social destinada a viver junta por décadas. E a compartilhar tudo: as convicções profundas, em primeiro lugar "a abertura à vida", isto é, a fazer filhos sem limites, a fidelidade a Kiko, o dinheiro (os membros do Caminho são fortemente convidados a devolver à organização uma parte do seu salário) e, especialmente, a vida íntima, os segredos mais ocultos.

Já nos encontros semanais, todos os "irmãos" e as "irmãs" revelam aos outros alegrias e sofrimentos, problemas e esperanças. Mas é durante os famigerados "escrutínios", na passagem de um nível iniciático ao superior, que a vida dos adeptos é dissecada, que estes são convidados a elencar diante do resto da comunidade os seus pecados. Aos quais se juntam aqueles indicados pelos outros membros, que, exortados pelos catequistas, relatam – dou um exemplo que me foi contado por um participante – que viram o escrutinando na companhia de uma mulher que não era a sua esposa ou de tê-lo ouvido blasfemar. Etc.

A liturgia também foi redefinida por Kiko. Se um católico "normal" entrasse na igreja durante uma missa neocatecumenal, pensaria que tinha acabado em um templo não católico. E talvez seja justamente isso. Por esse motivo, as funções são realizadas no sábado à noite, às 21 horas. No papel, são abertas a todos os católicos, mas só vão os membros da comunidade.

Em todo o caso, para organizá-las, é preciso o consentimento do padre. Ainda melhor se o próprio padre se tornasse catecumenal, de modo que possa entregar ao movimento a paróquia inteira. Os sacerdotes contam muito pouco no Caminho: são equiparados aos outros irmãos; devem, assim como os outros, fazer parte de uma comunidade e percorrer as etapas da iniciação.

A principal função atribuída a eles, exclusivamente, é a celebração eucarística. Os padres servem ao Caminho, na realidade, especialmente para penetrar na paróquia, para colonizar cada interstício. Um certo número de padres, nos últimos anos, se converteu ao Caminho: muitas vezes, como resultado da solidão ou do desespero diante do esvaziamento das igrejas.

Os novos padres, ao contrários, estão sendo formados nos seminários Redemptoris Mater que Kiko obteve o enorme privilégio de abrir para formar os seus próprios sacerdotes.

A alergia ao "gênero" que Kiko compartilha com tantos participantes na manifestação do último sábado, ao menos no seu caso, é especialmente uma alergia às mulheres, às suas expectativas de contar como os homens. Anos atrás, eu entrevistei uma jovem solteira, ex-catecumenal, que me contou que tinha sido convidada pelos dirigentes do Caminho para acompanhar uma "família em missão" de evangelização no exterior e que lá foi obrigada a fazer os trabalhos mais humilhantes, na completa submissão ao homem chefe de família. E certamente não é um caso isolado.

Não surpreendem as palavras que Kiko implicitamente indicou nas "mulheres que privam os seus maridos do amor" as principais responsáveis pelos feminicídios.

O mais surpreendente, no discurso de Kiko, é a nota polêmica contra o secretário da Conferência Episcopal Italiana, Galantino, acusado de pensar demais na "cultura" e no "diálogo", e menos na dramática situação da fé na Europa. Acredito que se trate de um ataque à nora para atingir a sogra, isto é, de um ataque contra o papa, cujas intenções reformadoras são vistas por Kiko e por toda a fileira conservadora como homenagem gratuita aos inimigos do cristianismo.

Se o papa fosse o inimigo número um de todos eles, resta se perguntar por que, certamente com calma, mas não muita, o papa não lhes reserva o tratamento que João Paulo II, a partir de uma posição oposta, reservou aos seus adversários mais tenazes, ao jesuíta padre Arrupe ou àqueles teólogos da libertação que, na sua época, foram repudiados e marginalizados. Poderia ser uma ação autoritária. Mas talvez salvaria a Igreja Católica de se tornar a de Kiko.

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