Os cidadãos servos e o Congresso do PT

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16 Junho 2015

"O Estado, em geral, e particularmente os estados sufocados pela dívida pública, foram capturados pelo capital financeiro - ordenado pelas agências privadas de risco e agências estatais dos países ricos, dos quais os bancos são intermediários - captura, esta, que determina que estes estados só se tornem 'determinantes da vida social', para responder às necessidades do capital financeiro", afirma Tarso Genro, ex-governador do Rio Grande do Sul, em artigo publicado por Carta Maior, 14-06-2015.

Eis o artigo. 

Se o fascismo financeiro não for brecado, fará desaparecer as liberdades políticas democráticas e todo o sistema de direitos individuais e coletivos.

Depois de um formidável massacre a que foi submetido nos últimos anos, tanto por motivos justos como injustos, tanto pela direita conservadora como pelo néo-udenismo renovado, massacre este que transitou de maneira sistêmica pela grande mídia, toda ela, como se sabe, boa pagadora de impostos e isenta de qualquer mácula moral ou interesses subalternos -depois de ser tratado, por mais de dez anos, como inventor da corrupção no Brasil - o Congresso do Partido dos Trabalhadores em Salvador, se é verdade que não resolveu nenhuma das questões de fundo, que o PT ainda precisa encarar, também demonstrou que o Partido tem uma capacidade de resistência extraordinária, uma militância séria e dedicada e quadros dirigentes, em todas as correntes de opinião, dispostos a reinventar a utopia e a não se entregar para as fatalidades burocráticas e para espontaneidade do cansaço.

A minha análise parte de alguns pressupostos que certamente não são majoritários no PT e isso ficou refletido na aprovação das teses da maioria e na rejeição das principais emendas do bloco minoritário, interno ao Partido, composto pela Mensagem e outros grupos internos do PT. Primeiro, entendo que o Partido deveria recuperar a sua posição clara de sujeito político dirigente e proponente, e não apenas manter-se como "partido-suporte" do Governo, mero "ordenador" de custos políticos, sem deixar de dar sustentação para que o Governo governe com estabilidade.

Segundo, entendo que o partido deveria lançar-se numa política de reconstrução, que não é apenas de "retomar" relações com os "movimentos sociais", mas é estabelecer relações com a nova inteligência política do país, restabelecer relações com a academia, com os centro de produção cultural-científica e artística, com os novos setores do mundo trabalho, emergentes das revoluções tecnológicas em curso, o que só poderia ser feito com o arejamento do grupo dirigente atual, formando um novo grupo de direção, que incorporasse novos quadros, sem deixar de aproveitar a experiência e a qualidade dos quadros dirigentes atuais, bem como com um novo sistema de eleição das suas direções.

Terceiro, o Congresso deveria tratar da "nova questão do Estado", que ainda não foi abordada de maneira convincente e profunda pelas gerações atuais da esquerda mundial e que, aqui no Brasil, estando ainda o PT no governo, é um tema que poderia avançar de maneira significativa, com os nossos acertos e erros, ao longo desta década, que resultaram em extraordinários avanços na inclusão social e na redução da miséria, que hoje estão sendo colocados em xeque.

Esta terceira questão é a mais importante de todas. Ela remete para as duas anteriores e também porque traduz uma questão concreta, na política imediata, que tem uma enorme consequência estratégica. Ela parte de um pressuposto, que, se estiver correto, inverte a lógica da ação política da esquerda, para fortalecer o Estado e para responder à crise da democracia e a quase inocuidade dos processos eleitorais.

Seu resumo é o seguinte: o Estado, em geral, e particularmente os estados sufocados pela dívida pública, foram capturados pelo capital financeiro - ordenado pelas agências privadas de risco e agências estatais dos países ricos, dos quais os bancos são intermediários - captura, esta, que determina que estes estados só se tornem "determinantes da vida social", para responder às necessidades do capital financeiro. Tornam-se os Estados, assim, cada vez mais ineptos e insensíveis, politicamente, para responder até mesmo aos chamados direitos naturais do Século XVIII, sem falar nas respostas econômicas e sociais decorrentes das lutas por mais igualdade.

As políticas que estes Estados precisam realizar, independentemente de quem está no Governo, passam a ser destinadas fundamentalmente a responder aos pagamentos da dívida pública, parte dela legítima e responsavelmente assumida pelos governos precedentes e grande parte dela decorrente do jogo especulativo do mercados financeiros mundial, que financia as políticas dos ricos nos países ricos, os investimentos bélicos de caráter colonial--imperial, sem falar na vida luxuosa de uma pequena elite, interna e externa ao país, ligada aos grandes negócios globais.

Os estados, submetidos à chantagem permanente da dívida - vejam a Grécia - não só tem dificuldades de desenvolver políticas alternativas para o seu projeto nacional de caráter democrático e social, como também transformam a sua cidadania numa cidadania "sem direitos", uma cidadania mais próxima da condição de servos, reforçando o "estatismo" só naquilo que lhe torna apto para a aplicação de políticas financeiras determinadas de "fora para dentro". Assim, ao mesmo tempo que se enfraquece o papel regulatório e social do Estado, se fortalece - como sua força principal para subordinar a política e os governos - seus Bancos Centrais, que se tornam mais fortes que os parlamentos e os partidos.

A força normativa do Estado e suas principais decisões que moldam a vida política, vem das determinações que ele, Estado, ordena na vida social, através dos Bancos Centrais. E isso não se faz sem autoritarismo e sem corrupção, que se espalha como uma gigantesca metástase no Estado e na sociedade civil: as reformas neoliberais, que agridem os direitos da cidadania não se fazem sem alianças fisiológicas e sem uma boa dose de corrupção na estrutura estatal, porque a "dinheirização" passa ser o elemento central da política, em substituição a programas de governo capazes de atrair e mobilizar os cidadãos.

Independentemente da honestidade da maioria dos políticos de todos os partidos, dos Presidentes, dos Ministros de Estado, dos servidores públicos, a política que se fortalece, vinga, e que tem o apoio dos setores mais privilegiados no país e da ampla maioria da mídia tradicional é esta: a política que substitui as decisões políticas de Estado, para imprimir um projeto econômico e social, é transformada em decisões de gestão financeira da dívida, como política de Estado mais "universal" e fatalmente obrigatória.

Ao recusar a fazer um exame profundo do "ajuste" e das suas consequências para o conjunto da sociedade, o Congresso deixou a militância e a nossa base social desarmada, para enfrentar um debate sobre o futuro. Sequer se tratava de exigir da Presidenta uma mudança de rumo agora, porque as escolhas que foram feitas pelo Governo, supostamente "para sair da crise", neste momento são irrevogáveis. Não só porque quaisquer outras exigiriam um grau de mobilização social e uma unidade política, baseada em determinados princípios (que parte do nosso Partido e os nosso aliados atuais não estão em condições de absorver), mas também porque não teriam maioria parlamentar para serem aplicadas. Mas é do profundo exame crítico do "ajuste" e da crítica à forma despolitizada e tecnicista com que ele foi proposto e está sendo aplicado, é que o PT recuperaria a credibilidade para dizer a natureza da política econômica do futuro, para um novo ciclo de governos progressistas no Brasil.

A absorção, pela maioria, da necessidade de uma Frente orgânica, à esquerda, para o futuro, e o reconhecimento, ainda que formal, da necessidade de uma nova política econômica desenvolvimentista e social, dentro do atual governo, foram sinalizações positivas do Congresso. Mas seu elemento político mais importante, do ponto de vista da minoria que eu integro, foi o manifesto unitário da maioria dos parlamentares do PT, senadores e deputados, (que gerou ao final a "Carta do Rio Vermelho" da minoria), que exigia que mudanças mais profundas fossem pautadas pelo Congresso. Na verdade não se trata, como quer a grande mídia, de sermos "mais" ou "menos" radicais. Trata-se de sermos apenas mais consequentes com a nossa história, não só não aceitando que não existem outras alternativas, mas propondo-as de forma clara, mesmo "contra a corrente", formada por uma opinião pública manipulada pela grande mídia.

Togliatti, em 1935, num texto ("A propósito do fascismo"), em que criticava o tipo de aparato estatal proposto pelo fascismo, "no qual o cidadão não tem direitos (...) diante do Estado, porque a origem de cada direito está no próprio Estado" , também, de forma profética, adiantava uma crítica do Estado "bancocentralizado" dos tempos atuais. É o estado necessário ao capital financeiro, para controlar a sociedade: o Estado dos "cidadãos-servos", que não tem direito nem de discutir nem propor "ajustes", para saírem de uma crise porque, afinal, "não tem alternativas".

Este fascismo financeiro, que toma conta do mundo e agora se prepara para esmagar a Grécia, se não for brecado em países mais fortes, como é o nosso, fará desaparecer não só as liberdades políticas democráticas, porque tornará irrelevantes os partidos e os governos, mas também fará desaparecer, como disse Togliatti, "todo o sistema de direitos individuais e coletivos". A questão democrática em curso, hoje, integra de maneira incontornável, a crise da democracia, com a crise financeira do Estado. Isso o nosso Congresso não respondeu e é nosso dever compartilhar com os demais setores da esquerda e com o centro progressista e democrático a busca de saídas fora das alternativas da ortodoxia.

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