Contra os fanáticos, é preciso de mais teologia. Artigo de Massimo Faggioli

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20 Janeiro 2015

Depois dos fatos de Paris, a melhor resposta é mais teologia, mais cultura religiosa. Um papel maior e diferente para a religião no espaço público não significa necessariamente um Estado menos laico.

A opinião é do historiador italiano Massimo Faggioli, professor de história do cristianismo da University of St. Thomas, em Minnesota, nos EUA. O artigo foi publicado no sítio LeftWing.it, 14-01-2015. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

Eis o texto.

Diante dos fatos de Paris, em que terroristas islâmicos exterminaram a redação do jornal satírico Charlie Hebdo e derramaram sangue de franceses laicos, muçulmanos e judeus, a tarefa do teólogo é, ao mesmo tempo, simples e complicada.

Simples, porque, por vocação (em sentido tanto profissional quanto espiritual), o teólogo sabe que a única resposta de longo prazo é o diálogo entre pessoas e a escavação dos significados que se ocultam atrás de cada palavra que cita o nome de Deus – e, no caso dos assassinos de Paris, essas palavras que citavam Deus como motivo eram claramente blasfemas.

Mas também é uma posição muito complicada a do teólogo, que se sente obrigado a dar razão em público não só da sua própria teologia, mas também da teologia dos outros (em uma espécie de teodiceia atualizada em sentido inter-religioso) e especialmente daquela teologia que leva a matar em nome de Deus.

As linhas que se seguem são apontamentos em torno da questão do papel da religião e do sagrado em uma sociedade laica e pluralista, que não têm nenhuma pretensão de dar receitas prontas para a solução do problema do impacto das lutas internas ao Islã no mundo ocidental, mas tentam limpar o campo de algumas simplificações que dominam o debate público.

A primeira simplificação perigosa é a de uma oposição dicotômica entre uma laicidade tolerante e uma religião intolerante. É um efeito deformador do caso francês, que se tornou o palco de uma semana de terror, em que o separacionismo entre Estado, Igrejas e religiões chega a um ponto muito próximo ao tipo ideal do sistema de separação. Mas essa representação da dicotomia mente sobre o fato de que laicidade e laicismo são diferentes, mas também sistemas e ideias diferentes de laicidade: a francesa e a italiana são muito diferentes.

Vale a pena lembrar, além disso, as evoluções internas ao próprio caso francês: da Revolução à Loi de Separation de 1905, à Comissão Stasi de 2003-2004, até o presidente Hollande que, na noite do dia 9 de janeiro de 2015, quando afirmava que os terroristas que haviam matado em nome do Islã não eram verdadeiros muçulmanos, distinguia entre verdadeiro e falso Islã e, portanto, fazia uma afirmação teológica.

Na história recente da democracia ocidental, fazer afirmações teológicas tem sido parte dos deveres constitucionais de um presidente-pontífice como o dos Estados Unidos (de Thomas Jefferson a Obama) mais do que de um presidente da République Française: mas algo está mudando também na Europa, evidentemente.

Em segundo lugar, vale a pena recordar que à separação entre Estado e Igreja na história ocidental não corresponde uma separação entre religião e política (nos Estados Unidos, há separação entre Estado e Igreja, mas certamente não entre religião e política). Mas há também uma contradição lógica no discurso sobre cristianismo e laicidade. Uma argumentação como a de Piero Ostellino, no Corriere della Sera, do dia 10 passado, que descrevia o nascimento do Ocidente como "saída da Idade Média, separação da política da religião, cancelamento do domínio da fé religiosa sobre a política e nascimento do Estado moderno", escondia dois pedidos ao cristianismo que são simultâneas e incompatíveis entre si: a Igreja deveria dar ao mundo a distinção (não separação, que certamente não se verifica na Europa até tempos muito recentes) entre religião e política, e, ao mesmo tempo, desaparecer, uma vez dada essa distinção às outras religiões.

Para além do artigo de Ostellino, acredito que, ao campo liberal-conservador e à visão da religião propagandeada pelos "ateus devotos", o campo progressista deveria poder opor uma tese, se não alternativa, ao menos própria.

Chegando às outras religiões, há um nexo entre o modo em que a teologia olhou para as religiões como uma pluralidade de caminhos para buscar Deus e o modo pelo qual os poderes públicos no Ocidente enfrentaram a questão.

Até apenas 50 anos atrás, para a teologia católica, as outras religiões não existiam como tais, a não ser como acidente da história e matéria para os missionários, dado que o fato religioso não cristão existia apenas como fenômeno individual e não coletivo (falava-se de judeus, não de judaísmo; de muçulmanos, não de Islã, e assim por diante).

No Concílio Vaticano II, a questão da liberdade religiosa emerge como uma questão de dignidade humana (o título da declaração votada e aprovada pelos bispos no Concílio, em 1965, sobre a liberdade religiosa é Dignitatis humanae): o direito à liberdade religiosa deve ser respeitado (pela Igreja, assim como pelos Estados), porque se fundamenta na dignidade humana; o respeito pela dignidade humana implica o respeito pelo sentimento religioso e pelas suas expressões, seja qual for a religião.

Isso me veio à mente ao ouvir e ler comentários publicados nos últimos dias, segundo os quais o mais alto grau de liberdade no laico mundo ocidental seria a liberdade de insultar o sentimento religioso alheio.

A noção de um direito absoluto e ilimitado à liberdade de expressão se aproxima muito da ideia que um certo tipo de pensamento "religioso" tem de si mesmo. Não querer insultar as fés alheias não é necessariamente autocensura, nem efeito do medo do terrorismo. Há autocensuras boas e más.

O respeito pela dignidade das pessoas pode e, em certos casos, deve levar a autocensuras. A teologia católica progressista, há 50 anos, se fez a questão de como compreender melhor as exigências da dignidade humana em um mundo concebido como povoado por um gênero humano uno e único: a cultura política progressista deveria fazer algo desse tipo, diante da apropriação da questão religiosa (e não pela primeira vez) por parte do conservadorismo político.

A questão de fundo é, evidentemente, o papel da religião no espaço público. Se é verdade (e é verdade) aquilo que disse o presidente francês, Hollande, ou seja, que os agressores não eram verdadeiros muçulmanos, então é interesse supremo da laica República Francesa (e de todos os Estados) fazer com que os muçulmanos imigrantes sejam verdadeiros muçulmanos.

Em outras palavras, a ideia de que a religião não deve ter uma dimensão pública, mas deve permanecer confinada no espaço individual/pessoal não é equivocada teologicamente, mas historicamente. Parafraseando o discurso do primeiro-ministro norueguês, Stoltenberg, depois do massacre de Utoya, instintivamente eu diria: "Depois dos fatos de Paris, responderemos com mais teologia, mais cultura religiosa".

Um papel maior e diferente para a religião no espaço público não significa necessariamente um Estado menos laico.

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