As raízes da igualdade na Bíblia

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13 Mai 2014

Cada um é chamado a ser justo em sua geração, mesmo que esta última não o seja; no entanto, por sua vez, a pessoa está necessariamente condicionada pelo ethos de seus contemporâneos.

A opinião é do filósofo e biblista italiano Piero Stefani, especialista em judaísmo e em diálogo judaico-cristão, e ex-professor das universidades de Urbino e de Ferrara. O artigo foi publicado no blog Il Pensiero della Settimana, 04-05-2014. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

Eis o texto.

O horizonte de gerações na Bíblia, em muitos aspectos, não é muito diferente do atual. Ele indica uma pertença comum, um lugar de transmissão e um terreno em que a comunicação nem sempre é fácil. No entanto, na Bíblia, a palavra "geração" também indica uma dimensão mais fundamental.

Lemos no Gênesis: "Este é o livro das gerações de Adão ('adam) no dia em que Deus criou o homem ('adam), ele o fez à semelhança de Deus (bidmut ' Elohim), macho e fêmea os criou e os abençoou e deu-lhes o nome de 'homem' ('adam), quando foram criados. Adão viveu 130 anos e gerou à sua imagem (zelem) e semelhança (demut) um filho e lhe chamou Set" (Gn 5,1-3 ). Nessa passagem há uma mudança do nome comum "homem" ('adam) para o nome próprio "Adão" ('Adam). Nessa operação está implicitamente afirmada a constituição da pessoa humana como um ser relacional no seu próprio dar-se como homem e mulher (Gênesis 1:27). O nome original de 'adam dado por Deus para o ser humano é uma coisa só com o seu ser homem e mulher; em virtude dessa condição e da bênção selada, o 'adam é capaz de transmitir à próxima geração a mesma imagem e semelhança. Por assim dizer, somos colocados diante do desdobramento de uma propriedade transitiva. O versículo bíblico, de fato, não significa que Set tem apenas a semelhança de seu pai (e onde foi parar a mãe?); isso significa muito mais e que também o filho tem impressa a imagem e semelhança de Deus.

Esse texto (na verdade, julgado pelo velho mestre judeu Ben Azzay como a maior regra da Torá) é a base para a igualdade radical entre toda a humanidade. É um princípio que se transforma em um julgamento final contra todas as formas de desigualdade e exploração da história de ontem e de hoje.

A afirmação da igualdade inter-humana é correta, mas também é isenta de confirmações comuns e compartilhadas dentro da já longa vida do gênero humano. Diante dessa perene negação factual, as alternativas são essencialmente duas: a primeira entrega a perspectiva de igualdade à esfera dos sonhos incapazes de serem refletidos na realidade; com isso, o princípio é privado de todo o julgamento sobre a realidade; a segunda alternativa, no entanto, baseia-se na maravilha do fato de que a humanidade desenvolveu a ideia de que a condição de que todos nós somos iguais é um princípio básico de tal forma a não ser refutado até mesmo por suas perenes negações factuais. Compreende-se por que, justamente nesse ponto, Deus seja chamado em causa.

Por essa ótica, mesmo no caso em que fosse conjugado de forma laica, o "dever ser" aparece, no entanto, mais fundamental do que o "ser". Tudo isso não protege da ansiedade para a condição humana; de fato, precisamente essa perspectiva é a que mais pungentemente destaca a disparidade intransponível entre o que sabemos ser bom e o que realmente acontece. Paulo, que percebeu essa lacuna de forma dramática ("Eu não faço o bem que quero, mas aquele que não quero"), explicou-a, dizendo que vivemos sob o poder do pecado (Rm 7,14-24). A igualdade é posta à prova também pela diversidade de comportamentos assumidos pela humanidade ao longo do tempo. Nesse sentido, nem todas as gerações são idênticas: não há as melhores e as piores. O livro do Gênesis, quando fala de Noé, diz que ele era um homem justo e perfeito em sua geração, a geração do dilúvio (Gn 6,9).

Em sua típica pluralidade de interpretação, o comentário rabínico fornece duas interpretações opostas (ou mais provavelmente complementares) dessa passagem. A primeira diz que é uma limitação: era justo para aquela geração da mesma forma em que o caolho é abençoado no reino dos cegos. Noé era justo em sua geração, mas se ele tivesse vivido naquela de Abraão não teria sido tal. Na verdade, podemos acrescentar que Noé aceita sem questionar a destruição de todos os seus contemporâneos, enquanto Abraão negocia com Deus a salvação das corruptas cidades de Sodoma e Gomorra (Gênesis 18,17-32). A outra interpretação argumenta, por outro lado, que, se alguém fosse capaz de ser justo dentro de uma geração perversa teria sido ainda mais em uma geração melhor.

A conclusão, aparentemente simplista, é que cada um é chamado a ser justo em sua geração, mesmo que esta última não o seja; no entanto, por sua vez, a pessoa está necessariamente condicionada pelo ethos de seus contemporâneos.

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