12 Março 2014
A proposta de Kasper não é impossível. No que diz respeito à doutrina tradicional da Igreja sobre a família e sobre a indissolubilidade do matrimônio, o cardeal tentou abrir uma porta na direção de uma possível solução.
A opinião é do historiador italiano Giovanni Filoramo, professor da Universidade de Turim e presidente do Centro de Ciências da Religião da mesma instituição. O artigo foi publicado no jornal Il Foglio, 06-03-2014. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
O cardeal Kasper não goza de bom crédito junto a muitos católicos, religiosos e leigos, que se encontram na linha teológica de "defesa da fé", levada adiante por João Paulo II e pelo seu sucessor, Bento XVI. Não são poucas as suas posições – a respeito, por exemplo, da interpretação da vida de Jesus, da cristologia, da mariologia, da possível abertura a papéis de plena responsabilidade das mulheres na vida eclesial – que lhes fizeram torcer o nariz, induzindo alguns a acusá-lo de traição à Igreja (e, portanto, implicitamente, de heresia). Sabe-se lá o que eles devem ter pensado quando o Papa Francisco decidiu confiar-lhe a conferência introdutória do Sínodo extraordinário dos bispos sobre a família.
Certamente, além disso, eles devem ter pensado que "o diabo veste Kasper" quando leram o ponto mais controverso do seu discurso: a sua proposta de readmitir os divorciados à comunhão sacramental depois de uma adequada penitência pública, retomando, assim, um modelo antigo.
Para avaliar exatamente essa proposta, é preciso especificar melhor o complexo debate do qual ela representa, de algum modo, um ponto de chegada. O jornal Il Foglio tem acompanhado com meritória atenção o singular processo de consulta a partir do baixo do "povo de Deus" sobre um tema tão importante como a família, cuja crise radical parece escapar das garras da doutrina tradicional do Magistério: como observa Kasper no início da sua intervenção, "entre o ensinamento da Igreja e a atual situação criou-se um abismo: para muitos cristãos, esse ensinamento é inaplicável".
Para tentar preencher, ao menos em parte, esse abismo, o complexo questionário abordou de peito aberto uma série de questões-chave articuladas em torno de nove questões fundamentais. Com uma típica dialética eclesiástica, enquanto, de um lado, o questionário parecia valorizar desse modo o "sensus fidelium", ao mesmo tempo, a sua formulação deixava transparecer claramente uma posição defensiva subjacente com relação a uma crítica tanto interna à Igreja, quanto externa a ela.
Sobre o ponto 4 ("Sobre a pastoral para enfrentar algumas situações matrimoniais difíceis"), o questionário, porém, tinha o mérito de ir ao cerne da questão, abrindo a possibilidade de respostas sinceras e francas sobre esse ponto espinhoso.
É muito bem sabido, de fato, que muitos pastores de almas aceitam, quando não "sugerem", soluções que contornam a proibição para os divorciados em segunda união de ter acesso aos sacramentos, contribuindo com isso para que o problema permaneça submerso.
Embora, pessoalmente, eu não tenha nenhuma informação sobre qual foi a linha de tendência que surgiu nos milhares de questionários escrutinados com relação a esse problema, é provável que muitos se pronunciaram contra essa prática submersa, convidando os responsáveis eclesiásticos a encontrar uma solução adequada.
Ora, Kasper, na sua palestra introdutória, decidiu que essa situação era insustentável e, no que diz respeito à doutrina tradicional da Igreja sobre a família e sobre a indissolubilidade do matrimônio, tentou abrir uma porta na direção de uma possível solução.
O próprio fato de que ele tenha decidido não tocar ou aprofundar outros pontos delicados do questionário, como o 5 ("Sobre as uniões de pessoas do mesmo sexo"), 6 ("Sobre a educação dos filhos no contexto das situações de matrimônios irregulares") ou 7 ("Sobre a abertura dos esposos à vida") para se concentrar na pastoral dos divorciados em segunda união, poderia ser uma consequência do fato de que, à luz da leitura das milhares de respostas, esse problema apareceu em toda a sua dramática relevância para a vida das comunidades cristãs.
Isso é ainda mais verdade se, para salvar aquilo que resta de uma família cristã em vias de desaparecimento, o Sínodo decidir aprofundar o caminho, empreendido energicamente pelo episcopado italiano depois do Concílio, também com base na encíclica Familiaris consortio, da família como Igreja doméstica.
Limito-me a lembrar que a expressão "família como Igreja doméstica" está presente na constituição conciliar Lumen gentium n. 11, para evidenciar as relações profundas que existem entre a Igreja "grande" e a Igreja "em miniatura", ou seja, a família cristã fundada no sacramento do matrimônio, com a qual os cônjuges cristãos "significam e participam do mistério de unidade e de amor fecundo entre Cristo e a Igreja (cf. Ef 5, 32)".
Essa "definição" da comunidade conjugal se revelou muito fecunda para o desenvolvimento da pastoral familiar no período posterior ao Concílio Vaticano II. Nas própria Gaudium et spes, a atenção ao matrimônio e à família é posta como primeira entre as "inúmeras questões que hoje despertam o interesse geral" e "merecem menção particular" (n. 46).
É evidente, voltando à proposta de Kasper, a contradição entre uma proposta teológica em parte nova e corajosa como a do Diretório da Pastoral Familiar, "a família é, por sua natureza, o lugar unificante objetivo de toda a ação pastoral e deve se tornar cada vez mais" (n. 97), e o fato de que muitos potenciais sujeitos (com os seus filhos!) são excluídos da dimensão sacramental que é o fundamento dessa concepção eclesiológica da família.
Mas até que ponto a proposta de Kasper faz parte do magistério tradicional da Igreja e até que ponto ela contém elementos potencialmente subversivos que o minam em sua base?
Para tentar uma resposta, é preciso ter mente o pano de fundo teológico evocado por Kasper, que constitui um dos grandes problemas teológicos da história cristã: o da relação entre o Deus de justiça e o Deus de misericórdia, entre o respeito à Lei e a graça do Evangelho fruto do amor do Pai. Não é por acaso que a primeira verdadeira heresia cristã foi a de Marcião, que resolveu drasticamente o conflito entre esses dois rostos de Deus postulando a existência de dois deuses: o da justiça do Antigo Testamento e o Deus desconhecido do amor revelado pelo Filho.
Na situação abordada por Kasper, chocam-se, mais uma vez, os dois rostos da Igreja, que certamente é complexio oppositurum, mas que, desta vez, encontra-se na posição de ter que escolher se quer privilegiar um caminho de justiça (a instituição jurídica de origem medieval do matrimônio) ou de misericórdia, como sugere Kasper ("por mais baixo que o homem possa cair, ele nunca poderá cair abaixo da misericórdia de Deus": cfr., a respeito, Mt 19, 26: depois que Jesus, falando sobre o próximo advento do Reino dos céus, havia exposto aos discípulos o desígnio original de Deus sobre o matrimônio na sua exigência de fidelidade "para sempre" e havia advertido contra a periculosidade do apego do coração às riquezas, a reação deles foi: "Quem, então, poderá se salvar?". Mas Jesus, fixando o seu olhar sobre eles, isto é, estabelecendo um vínculo afetivo intenso de confiança, disse: "Para os homens isso é impossível, mas para Deus tudo é possível").
A solução proposta por Kasper, referindo-se à antiga instituição da penitência e, portanto, contornando o direito canônico, pode levantar dúvidas e perplexidades, das quais ele é o primeiro a estar consciente. A penitência antiga era duríssima, durava anos, senão até a última fase da vida, comportava por toda a sua duração a exclusão da vida sacramental e comunitária, exigia uma confissão pública das próprias culpas. Também não é por acaso que, a partir da afirmação do cristianismo como religião de Estado, progressivamente ela entrou em crise.
Como repropô-la hoje, em que época inclinada mais às "penitências" das dietas e dos treinamentos esportivos, certamente é um problema difícil, embora não insuperável. Mas, no conjunto, levada adiante com o discernimento que ele evoca no fim, não é uma proposta impossível: e não me parece que, com as devidas adaptações, ela esteja destinada a desarticular o tradicional sistema jurídico da Igreja.