Papa Francisco sobre abusos sexuais: uma frustração

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07 Março 2014

O Papa Francisco vem surpreendendo, emocionando, encorajando – e frustrando – pessoas desde o momento em que apareceu na Basílica de São Pedro vestido com uma batina branca, e não na elegância pontifícia como tem sido o habitual para os papas recém-eleitos.

O comentário é de Thomas P. Doyle, padre, canonista, terapeuta e há muito apoiador da justiça e compaixão para com as vítimas de abusos sexuais cometidos pelo clero, coautor do primeiro relatório feito para os bispos dos EUA sobre abusos sexuais na Igreja, em 1986, em artigo publicado por National Catholic Reporter, 06-03-2014. A tradução é de Isaque Gomes Correa.

Ele disse e fez tanta coisa neste seu primeiro ano que acabou encorajando aqueles que esperam um dia ver a Igreja institucional começar a se parecer e agir como Corpo de Cristo. Mas tudo o que ele fez é silenciado pela realidade de que nada foi feito no que diz respeito ao problema mais profundo e desafiador da instituição.

Seus comentários sobre os abusos sexuais por parte do clero trazidos no dia 5 de março pelo jornal italiano Corriere della Sera deixa claro que ele está usando a mesma cartilha que os bispos vêm usando nos últimos anos.

O flagelo da violação sexual e dos abusos por parte de sacerdotes em todos os níveis, tornado público a partir de meados da década de 1980, é uma chaga na face da Igreja que faz pequenos os demais problemas se comparados. A lavagem de dinheiro e os escândalos financeiros são sensacionais e escandalosos, mas não são nada comparados à mentira, à manipulação e às desagradáveis respostas às vítimas, práticas que marcaram a questão dos abusos sexuais desde que se tornaram de conhecimento público.

Passou-se um ano e os movimentos do papa foram mínimos. Ele fez do abuso sexual um crime no Estado do Vaticano. Um movimento tão sem sentido que até parece cômico. Ele não fez um pronunciamento de maior – ou até mesmo de menor – importância sobre o problema e pouco fez quanto aos bispos que permitiram que tais casos fossem perpetrados. Em julho do ano passado um bispo acusado de violar menores de idade foi rapidamente laicizado (o bispo auxiliar Gabino Miranda, de Ayacucho, Peru).

Certamente um movimento válido. Mas e sobre os bispos que continuaram a abrigar abusadores criminosos e que puniram vítimas inocentes por estimular táticas nada decentes nos tribunais civis?

Há três meses o Vaticano anunciou que seria estabelecida uma comissão de especialistas para estudar o problema, mas até agora nada foi feito. O papa não precisa de outra comissão e nem de mais especialistas para produzirem mais relatórios contendo manifestações públicas de preocupação. Sem dúvida, qualquer comissão abordaria a questão dos abusos sexuais por parte do clero a partir da perspectiva das necessidades da Igreja institucional tendo como objetivo primeiro a restauração de sua credibilidade. É assim que aconteceu com todas as comissões nomeadas pela Igreja em qualquer nível. Agir assim é andar para trás.

A primeira coisa a fazer deveria ser o cuidado pastoral e o bem-estar espiritual dos inúmeros homens e mulheres cujas vidas foram abaladas e cujas almas têm sido profundamente feridas pelos abusos sexuais em si e pelo abuso espiritual subsequente infligido pelos líderes da Igreja. As vítimas e as pessoas em geral não precisam de qualquer declaração pública sobre aquilo que elas já sabem.

Há apenas uma categoria de resposta que seja aceitável e esta é a ação concreta. Não mais segredos. Não mais negações. Não mais autoelogios e, acima de tudo, não mais tolerância para com os bispos que gastam milhões em dinheiro doado tentando se preservar à custa de suas vítimas.

Na entrevista de quarta-feira (05-03-2014) ao Corriere della Sera, o papa parece estar lendo um script que já deveria ter sido abandonado há anos: “Talvez a Igreja Católica seja a única instituição que se movimenta com transparência e responsabilidade (...). Ninguém tem feito mais. No entanto, a Igreja é a única atacada”. Infelizmente, Santo Padre, a Igreja Católica “não” se movimentou com transparência e responsabilidade. Ela fez exatamente o oposto. A pessoa que preparou as instruções para o papa usar na entrevista sobre a questão do abuso sexual tem que ser demitido.

O Papa Bento XVI pode ter sido, como disse Francisco, “corajoso” ao se confrontar com os escândalos, mas o que ele fez não deveria ser um ato de coragem e sim algo normal, uma resposta esperada a um pesadelo que vem derrubando a credibilidade e eficiência da Igreja, além de arruinar a vida de inocentes. O Papa Bento fez mais do que qualquer outro papa recente e certamente foi muito além do Papa João Paulo II. Suas palavras foram seguidas por alguns passos burocráticos, mas sem ação concreta que desse esperança às vítimas e aos sobreviventes.

Quando a ONU tornou pública sua forte crítica sobre a culpabilidade da Santa Sé na crise dos abusos sexuais, o Vaticano reagiu com sua costumeira arrogância tacanha, acusando o painel do organismo internacional de não entender como a Igreja funciona e de estar interferindo com questões doutrinárias sagradas. Parte da crítica do relatório mostra que o comitê de fato entendia a forma como o sistema do Vaticano funciona e não caiu na conversa segundo a qual a Igreja só é responsável pelo território do Estado do Vaticano. Quanto às questões doutrinárias em causa, todas que foram trazidas no relatório têm relação direta com a praga dos abusos sexuais perpetrados por sacerdotes e encobertos por seus líderes. O papa provavelmente viu o relatório ou, ao menos, parte dele. Este relatório e as vítimas que testemunharam perante a comissão da ONU, em Genebra, é que deveriam constituir a comissão prometida, e não bispos e cardeais que têm sido parte do problema e que, dificilmente, poderão ser parte da solução.

Os sobreviventes dos abusos e inúmeros pessoas, da Igreja e da sociedade em geral, estão esperando há três décadas por provas de que a Igreja institucional entendeu a proposta. Não só não há provas concretas de que ela tenha compreendido, mas pelo que parece a hierarquia permanecerá na defensiva, esperando que o problema vá embora. Continuará havendo mudanças e progressos nos esforços em todo o mundo para trazer cura e justiça às vítimas, bem como para forçar a Igreja a se responsabilizar, mas os atores aqui continuarão a ser os mesmos que vêm forjando o caminho desde o começo: os sobreviventes e seus apoiadores.

A esta altura, a melhor coisa que a liderança institucional pode fazer é seguir um pouco o sólido conselho tático militar: “Fique ou à frente ou atrás, mas nunca no caminho”.

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