A inocência da vítima como resposta cristã para a violência humana

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Por: Jonas | 23 Novembro 2013

René Girard enfatiza que a principal diferença entre os mitos e os textos bíblicos, de um modo geral, está em que no primeiro a vítima está sempre errada e seus perseguidores possuem a razão, ao passo que no segundo ocorre exatamente o contrário. Nos relatos bíblicos, a violência coletiva contra a sua vítima é injustificável”, relata Jonas Jorge da Silva, pesquisador do Cepat/CJ-Cias, na apresentação de uma síntese sobre a obra “Eu via Satanás cair do céu como um raio”, apresentada na noite do dia 21 de novembro de 2013, como parte da programação do Projeto Abrindo o Livro, do Cepat/CJ-Cias.

Eis a síntese.

Jesus disse-lhes: “Eu via Satanás cair do céu como o relâmpago” (Lc 10,18)

Em sua obra “Eu via satanás cair do céu como um raio”, o filósofo francês René Girard, o criador da Teoria Mimética, apresenta uma esclarecedora análise antropológica a partir do mundo bíblico, principalmente do evangélico. Seu esforço é o de apresentar argumentos racionais, com dados puramente humanos, constituindo o que considera uma antropologia do religioso. Procura constituir uma antropologia capaz de perscrutar caminhos despercebidos por muitos estudiosos sobre a feitura humana, o surgimento da cultura e a especificidade do religioso neste processo.

Girard não se esconde atrás das divagações daqueles intelectuais que não ousam explicitar suas próprias crenças. Menciona abertamente sua posição cristã, demonstrando as respostas bíblicas, especialmente dos Evangelhos, para o problema da violência humana, que encerra em si a presença do mal.

Primeiramente, Girard está convencido de que nas passagens bíblicas existe uma concepção original e desconhecida sobre o desejo e os seus conflitos. Por exemplo, nas proibições presentes no decálogo, o esforço do legislador está concentrado em conter os impulsos do desejo humano. O décimo mandato - “Não cobiçar as coisas alheias” – desponta como a grande síntese de todos os demais, já que trata do desejo de todo ser humano, do desejo puro e simples, por mais humilhante que seja, daquilo que pertence ao outro, basicamente, por aquilo que o outro é.

Sendo assim, o desejo mimético nada mais é do que tornar o próximo o modelo de nossas vontades. Em si, o desejo mimético não é ruim, é uma condição para a humanidade. Contudo, o problema aparece quando este desejo descontrolado produz rivalidades, conflitos intermináveis. Neste sentido, para Girard a rivalidade mimética é a principal fonte de violência entre os seres humanos.

Analisando-se a vida em sociedade, pode-se estabelecer que nela está presente um ciclo de violência mimética, permeado pelos conflitos e escândalos que envolvem mutuamente os seres humanos. Esses ciclos de violência só são apaziguados quando há uma transformação da situação do todos-contra-todos, responsável pela fragmentação das comunidades, em um todos-contra-um, o que pode ser classificado como um mecanismo vitimário. Para que fique claro, é necessário enfatizar que a palavra mecanismo é utilizada para assinalar a natureza automática e até mesmo inconsciente dos participantes neste processo.

Pouco em voga atualmente, mas com um papel central neste sentido, é a figura de Satanás. E é necessário entendê-lo nas condições apresentadas por Girard, para que não se caia numa visão fantasiosa sobre o seu significado. Assim como Jesus nos apresenta Deus-Pai como um modelo a ser seguido, imitado, Satanás também se apresenta como modelo para os nossos desejos, incitando a todos a mergulharem em suas próprias inclinações, independente das leis morais e de suas proibições. O caminho de Satanás apresenta-se como largo e sedutor.

Há na figura de Satanás um paradoxo fundamental: rege a ordem e ao mesmo tempo a desordem no mundo. Sendo assim, à pergunta de Jesus: “Como pode Satanás expulsar Satanás?” (Mc 3,23), Girard ressaltará a centralidade de Satanás na feitura de um ciclo mimético que se inicia com o desejo e as rivalidades, desdobra-se nos escândalos, instaurando uma crise mimética e, por fim, chega ao mecanismo vitimário, no qual um sujeito pagará pelo que é de responsabilidade de todos.

Em si, Satanás não possui uma propriedade estável, mas parasita nas criaturas de Deus. “Todo ele é mimético, o que é o mesmo que dizer inexistente”, considera Girard. Portanto, ele é o próprio mimetismo conflitual, responsável pelo mecanismo vitimário. Interpretar Satanás nesta perspectiva, permite conferir um papel ao Mal sem lhe dar um peso ontológico, que o transformaria em “um deus do Mal”.

Feitas estas considerações acerca dos ciclos miméticos e da figura de Satanás como um ente imanente às relações conflituosas e geradoras da violência humana, é preciso começar a desenvolver os argumentos que conduzirão à novidade do cristianismo para a verdadeira compreensão do ser humano.

Para René Girard, um dos grandes erros dos estudiosos contemporâneos tem sido o descomedido esforço em resumir o cristianismo a mais um mito, assim como tantos outros. Embora seja verdade que a violência central dos mitos arcaicos é bastante parecida com a narrada pela Bíblia, especialmente no relato da Paixão, as respostas para a mesma são incomensuravelmente diferentes. Contudo, primeiramente, é importante analisar o que possuem em comum.

Girard está convencido de que por trás dos mitos há uma violência real, proveniente de uma realidade extratextual, assim como nos relatos bíblicos. Os mitos sempre fazem alusão a um mimetismo que é conflitual e desagregador, antecedendo a situação de violência que se torna reconciliadora e unificadora. É a unanimidade violenta que reconcilia a comunidade, transformando a vítima em culpada e responsável pela crise que se instaura. E a mesma vítima que sofre a violência, posteriormente, pode passar por um processo de divinização.
 
Essa mesma violência presente nos mitos, também compõe os dramas bíblicos e, especialmente, a Paixão de Cristo. Pode-se dizer que em todas as situações sempre há o mesmo processo de crise e de resolução que se funda no equívoco da vítima única.
Este equívoco se instaura desde a fundação da cultura humana, o que Girard tratará como a doutrina do assassínio fundador. É no assassinato de Abel, por seu irmão Caim, no livro do Gênesis, que está o germe da interpretação bíblica para todos os mitos fundadores. Como bem expressa Girard: “A primeira cultura humana vê suas raízes num primeiro assassinato coletivo, análogo à crucificação” (p. 113).

Assim, Satanás não é apenas o mestre do mecanismo vitimário, mas o mestre da própria cultura humana, que teve como origem o homicídio. O próprio Evangelho de João (8, 44) dirá que o Diabo foi homicida desde a origem, que ele é o pai da mentira.
 
Pode-se dizer, portanto, que as instituições sociais, longe de serem fundadas em bases racionais, nascem do assassínio, da violência humana. Os sacrifícios, sejam humanos ou de animais, nada mais são do que o esforço humano em disciplinar os seus desejos, que sempre desembocam nos perigos do conflito mimético. Trata-se de um mecanismo de preservação do convívio social
 
Os ritos sacrificiais, conformados em uma dimensão religiosa, são a base das instituições que o Iluminismo considera indispensáveis à Humanidade. “A ritualização do assassínio é a primeira instituição e a mais fundamental, a mãe de todas as outras, o momento decisivo na invenção da cultura humana” (p. 122), constata René Girard. A dimensão repetitiva dos ritos os transforma em práticas que parecem produtos da razão humana, mas, na realidade, vêm do religioso. Neste sentido, poderia se pensar que as instituições sociais são o resultado evolutivo de uma profunda confusão entre o vitimário e o divino nos mitos e práticas religiosas arcaicas.

Diante deste quadro, qual seria, então, a singularidade do cristianismo? Qual mensagem a Bíblia judaico-cristã tem para oferecer, que difere dos incalculáveis mecanismos vitimários? Ainda, observando os evangelhos nota-se que, assim como nos mitos, também há um ciclo mimético ou “satânico”, ordenado por uma crise, seguida por uma violência coletiva e encerrado em uma epifania religiosa. Então, no que difere dos mitos?

Girard enfatiza que a principal diferença entre os mitos e os textos bíblicos, de um modo geral, está em que no primeiro a vítima está sempre errada e seus perseguidores possuem a razão, ao passo que no segundo ocorre exatamente o contrário. Nos relatos bíblicos, a violência coletiva contra a sua vítima é injustificável. Para exemplificar este aspecto, Girard cita a história bíblica de José, comparando-a com Édipo. Enquanto Édipo sofre as consequências violentas de um desígnio divino, no relato bíblico a causa da crise vivenciada por José não está na vontade divina, mas na própria inveja de seus irmãos, ou seja, a responsabilidade pela mesma é humana, sem transcendência alguma.

No fundo, a Bíblia obedece a uma inspiração antimitológica, que condena as justificativas para a violência e a natureza acusadora e vindicativa dos mitos. Jamais o relato bíblico irá demonizar ou divinizar as vítimas da violência das multidões, ou seja, a Bíblia oferece uma interpretação diferenciada desses fenômenos. Ela evidencia as ilusões míticas que protegia as sociedades arcaicas. Descobre-se na Bíblia um divino que não faz parte dos ídolos coletivos da violência. Chega-se ao Deus único, ao monoteísmo, cujo Deus defende as vítimas.

Os Evangelhos irão manter a conquista essencial presente na tradição judaica: o cuidado com as vítimas. Na Ressurreição de Jesus está a revelação de tudo o que foi dissimulado aos homens, desde a origem, neste sentido, um golpe certeiro no Diabo, “o pai da mentira”. Os Evangelhos escancaram nossa falsa inocência, nossa ilusão mítica. Eles dão plenitude a uma revelação que já estava parcialmente acessível pelo Antigo Testamento.

Para tornar efetiva a plena revelação do mecanismo vitimário, Deus assume o papel da vítima única, aceitando tomar para si o papel de vítima coletiva para salvar a todos. O que uma explicação mítica tomaria como divino, os Evangelhos simplesmente desmistificam, revelando a natureza puramente mimética do processo vitimário.

Na crucificação, revela-se a inocência das vítimas, a falsidade da acusação, tornando desacreditadas todas as forças e principados, a impostura de Satanás. Neste sentido, todas as vítimas, da história que já passou e do que ainda virá, são reabilitadas pela cruz. René Girard dirá que “é a impotência mais radical que triunfa do poder de auto-expulsão satânica” (p.179).

Ao apresentar o mecanismo vitimário como um tema explícito, os relatos evangélicos destroem o seu princípio de ilusão, diferente dos mitos, que por não possuírem consciência da sua própria violência, transferem-na para o nível transcendental, demonizando e divinizando as próprias vítimas.

É necessário lembrar que a Ressurreição de Jesus não foi uma unanimidade das multidões, ao contrário, foi uma minoria contestadora, que soube reconhecer as consequências dos conflitos miméticos, a que enxergou o Ressuscitado. Neste sentido, Jesus de Nazaré desnudou todos os ilusionismos humanos. Como bem descrito na Primeira Carta de São Paulo aos Coríntios (2, 8): “Nenhum dos príncipes deste mundo a conheceu [a sabedoria de Deus], pois, se a tivessem conhecido, não teriam crucificado o Senhor da Glória”.

Com a cruz, Satanás cai na própria armadilha que criou, pois é incapaz de conceber a sabedoria da cruz. Deus oferece a sua salvação para todos, mas “se Satanás não vê Deus, é porque todo ele é mimetismo conflitual” (p. 190).

Atualmente, os fenômenos vitimários que os relatos bíblicos e evangélicos tão bem desnudam transparecem em expressões como, por exemplo, “bode expiatório”. Por não estarem mais cobertas pelo religioso, as transferências coletivas dos instintos de violência e de culpabilização das vítimas é mais fácil de serem observadas. Os “bodes expiatórios” estão fortemente presentes nos grupos humanos quando estes se fecham em sua identidade comum, local, nacional, ideológica, racial, religiosa, etc. Para René Girard, os discursos sobre exclusão, discriminação, racismo, etc., sempre serão superficiais, caso não ataquem os fundamentos religiosos dos problemas de nossa sociedade.

Nunca houve um período da história em que se falou tanto das vítimas como no momento atual. Girard reconhece que o “humanismo e o humanitarismo desenvolvem-se, em primeiro lugar, em terra cristã” (p. 201). É essa preocupação com as vítimas que torna as sociedades atuais mais exigentes para consigo mesmas, quando se deparam com situações descabidas de violência e terror.

Girard considera que, atualmente, a força de transformação mais eficaz está na preocupação moderna com as vítimas e não na violência revolucionária. Neste sentido, é otimista com o Ocidente cristão. Considera que “não deixamos de ser ‘etnocêntricos’. Porém, nem por isso deixamos de ser, com a mesma evidência, a menos etnocêntrica de todas as sociedades” (p. 208).

O autor reconhece na experiência do hitlerismo uma tentativa espiritual de arrancar da Alemanha e da Europa sua vocação dada pela tradição religiosa, ou seja, a preocupação com as vítimas. Também é muito duro com Nietzsche e e seus seguidores, ao reconhecer que a tentativa nacional-socialista do hitlerismo, em enterrar a preocupação moderna com as vítimas, significou uma forma de ser nietzschiano. Contudo, esta terrível experiência, apesar de fazer muitas vítimas, acelerou ainda mais a preocupação com as vítimas. Ora, “se ninguém consegue pôr ‘fora de moda’ a preocupação com as vítimas, é porque é a única no nosso mundo a não depender da moda” (p. 219), constata Girard.

Apesar disso, que ninguém se engane. Junto a essa conquista, atualmente, corre-se também o risco de dar um sentido anticristão à preocupação com as vítimas. Este risco se enfronha na tentativa de paganizar essa singularidade evangélica. Girard taxará como totalitarismo esta radicalização pagã da preocupação com as vítimas. Este movimento procura usurpar o lugar de Cristo a partir de uma imitação rivalitária, tentando desmerecer o autêntico legado da novidade trazida pelo Evangelho. Neste sentido, Girard é categórico: “O Anticristo lisonjeia-se por trazer aos homens a paz e a tolerância que o cristianismo lhes promete, mas não cumpre” (p. 223).

Para Girard, Jesus conseguiu diagnosticar a doença do desejo e demonstrar a falsa paz oferecida pelo mecanismo vitimário. “A palavra evangélica é a única a problematizar, verdadeiramente, a violência humana” (p. 227). A partir dos Evangelhos, Satanás perde definitivamente a sua transcendência enganadora e seu poder de restabelecimento da ordem. O Evangelho priva o ser humano de uma falsa paz, daquela que procura se fundar no sacrifício das vítimas.

Impactado, René Girard demonstra perplexidade diante da força de uma minoria contestadora (os seguidores de Cristo) que aceitou a mensagem da Cruz. Como isto pôde ocorrer? Para isto, uma resposta meramente humana seria impossível. Somente com o auxílio do Espírito Santo, o Paracleto, é que tamanha reviravolta frente às seduções do contágio violento hegemônico se tornou e ainda é possível.

Referência

GIRARD, René. Eu via satanás cair do céu como um raio. Lisboa: Instituto Piaget, 2002.

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