A manutenção do patriarcado e o sexo como dominação na Igreja Católica

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28 Mai 2011

É irônico que as próprias ferramentas que trabalham para combater o abuso sexual – abertura com relação à sexualidade humana e feminismo – estão sendo culpadas como a causa do abuso sexual pelos autores do estudo do John Jay. É irônico e francamente estúpido.

A análise é de Amanda Marcotte, colunista de política e feminismo em diversas publicações em inglês, como a revista Slate e o jornal The Guardian. É autora de It’s A Jungle Out There e Get Opinionated (ambos pela Seal Press). O artigo foi publicado no sítio The Revealer, 24-05-2011. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

Eis o texto.

Para resumir rapidamente um recém-lançado estudo de cinco anos financiado pela Igreja Católica sobre os escândalos de abuso sexual por parte de padres: "Nós investigamos a nós mesmos e concluímos que foram os hippies que fizeram isso".

Pode ser fácil ser ludibriado ao acreditar que o relatório não é tão desonesto como é, já que os pesquisadores realmente oferecem algumas concessões aos críticos, tanto ao negar que a homossexualidade está na raiz dos escândalos de abuso sexual, quanto ao sugerir que a Igreja fracassou ao lidar com o problema eficazmente, mas é importante olhar para além dessas concessões e para as conclusões mais amplas alcançadas.

Fazer isso demonstra que a Igreja Católica não tem interesse em abordar a cultura tóxica e patriarcal que alimenta o abuso sexual e os subsequentes encobrimentos. Ao contrário, os pesquisadores fizeram de tudo para sugerir que o abuso sexual foi uma anomalia histórica causada por uma cultura lasciva dos anos 1960, e que nenhuma mudança real precisa ser feita para evitar futuros incidentes de abuso de crianças e de adolescentes por padres.

De acordo com o New York Times, 1,8 milhão de dólares foram gastos pelos pesquisadores do John Jay College de Justiça Criminal para investigar os escândalos de abuso sexual. Apenas uma fração desse valor veio de uma parte externa, o Departamento de Justiça, que não tinha interesse no resultado da pesquisa. A maior parte do financiamento veio dos bispos católicos e dos vários grupos e fundações católicos, todos com um forte interesse nas conclusões que não exigem mudanças reais na organização da Igreja ou na doutrina católica.

Eles conseguiram aquilo pelo qual pagaram. Os autores do estudo exoneraram a exclusão das mulheres do sacerdócio e os requisitos do celibato e, ao contrário, culparam o feminismo, o divórcio, o sexo antes do casamento, e a cultura jovem da década de 1960. Deixem o papa em paz e culpem Mick Jagger, em outras palavras.

Cerca de dois milhões de dólares e cinco anos consumidos, e nada mudou. Os defensores da Igreja ainda querem afirmar que o abuso sexual não teria acontecido se os hippies não tivessem inventado o sexo em 1963, e os críticos da Igreja ainda veem a Igreja evitando a responsabilização real por ter permitido que os padres abusadores continuassem trabalhando e criando novas vítimas.

A revitimização das vítimas

E, enquanto a Igreja detém a maior parte da responsabilidade por esse impasse, houve uma tendência entre os críticos da Igreja por críticas superficiais a ela. Muitas pessoas tendem a sugerir levianamente que deixar que os padres se casem resolveria o problema do abuso sexual de crianças, como se o abuso fosse um resultado de nada mais do que homens sexualmente privados que atacam a primeira vítima disponível. Mas os problemas da Igreja Católica vão muito mais fundo do que a obsessão pelo celibato que começou no início do cristianismo.

Muitos dos críticos da Igreja Católica se sentiram chocados e traídos enquanto as revelações surgiam, histórias de padres que atacavam crianças e adolescentes vulneráveis e que se beneficiam de uma hierarquia eclesiástica que afagava os estupradores e os soltava em novas paróquias cheias de novas vítimas a serem exploradas.

Mas, para as feministas, o padrão de silenciamento das vítimas e de deixar que os estupradores vagassem livres não surpreendia em nada. Nas sociedades patriarcais, deixar de fora os estupradores e revitimizar as vítimas é o procedimento operacional padrão. A Igreja Católica é ainda mais patriarcal do que a sociedade em geral, e, nada surpreendentemente, isso piorou ainda mais o problema do afagamento dos estupradores e do silenciamento das vítimas.

Um rápido olhar para o mundo secular demonstra uma tendência semelhante de valorizar mais os estupradores do que as vítimas, e quanto mais sexista é uma sociedade individual, pior é o problema. Uma líder de torcida é estuprada por um astro do futebol, e quando ela se recusa a torcer por ele nos jogos, ela é expulsa do time e, finalmente, multada em 45 mil dólares por tentar combater essa injustiça nos tribunais [notícia em inglês aqui]. Uma menina de 11 anos de uma pequena cidade do Texas é repetidamente estuprada por possivelmente mais de duas dezenas de jovens, e a cidade se inclina para proteger os estupradores, enquanto expulsam a menina e sua família da cidade [notícia em inglês aqui]. Um famoso diretor de cinema é condenado por estuprar uma menina de 13 anos de idade, e toda a França lhe oferece proteção para não passar um tempo na prisão por causa do seu crime. Um famoso atleta – faça a sua escolha! – é acusado de estupro, e a comunidade de fãs se inclina ao seu redor, acusando a vítima de motivações mercenárias.

Abuso amplo e disseminado

O abuso sexual dentro de um contexto religioso ocorre fora da Igreja Católica, e, assim como no mundo secular, surgem padrões semelhantes de apologia ao estupro e de culpabilização da vítima. O abuso sexual de menores é tão comum no mundo protestante que Dan Savage presta um serviço no site The Slog chamado "Youth Pastor Watch", em que ele narra o ritmo firme das histórias sobre jovens pastores sexualmente abusivos. Sem surpreender, esses casos tendem a se concentrar mais nas Igrejas evangélicas que compartilham as atitudes altamente patriarcais da Igreja Católica.

O gênero da vítima faz muda pouco o padrão, como evidenciado por uma história publicada na revista Newsweek [disponível aqui], que detalha o problema do estupro homem-homem nas forças armadas. Mais uma vez, você vê os estupradores vagando livres, enquanto as vítimas são os únicos forçados a abrir mão de suas carreiras. Muitas vezes, as vítimas são estupradas repetidamente porque é muito fácil para os estupradores escaparem.

Raça, idade, gênero, religião – todos esses elementos não mudam o padrão da valorização dos estupradores sobre as vítimas. A única ferramenta que tem se mostrado eficaz para a verdadeira justiça é o feminismo. Tomemos, por exemplo, o caso de Julian Assange. No resultado imediato das acusações de estupro contra o fundador do Wikileaks, muitos fãs liberais de Assange começaram a acusar as acusadoras de serem vadias e mentirosas. Mas como isso estava acontecendo na esquerda, onde as simpatias feministas têm mais influência, as feministas foram capazes de pressionar efetivamente muitos dos defensores de Assange a se retratarem de suas reações iniciais. O que é mais importante ainda é que Michael Moore mudou da postura de zombar das acusações a um pedido de desculpas, argumentando que as mulheres desse caso merecem ser ouvidas [notícia em inglês aqui]. Sua retratação nunca teria acontecido sem simpatias pré-existentes pelo feminismo. As feministas também têm feito intervenções para alterar a resposta jurídica ao estupro, dando início a unidades especiais de vítimas e aprovando leis antiviolência, e tudo isso tornou mais fácil para as vítimas vir para a frente e encontrar apoio de agentes da lei e de suas comunidades.

O papel do feminismo

Mas uma instituição que não tem amor pelo feminismo é a Igreja Católica. Em um mundo que está mudando cada dia mais rumo à assunção de que as mulheres são seres humanos completos que merecem os mesmos direitos à liberdade e à autodeterminação que nós concedemos aos homens, a Igreja Católica ainda relega as mulheres a um status de segunda classe com uma ideologia de "esferas separadas" que posiciona as mulheres como servas em suas próprias casas e não elegíveis para as funções dos padres na Igreja. Sob o dogma católico, as mulheres nem sequer são permitidas à dignidade de controlar sua própria fertilidade, mas, ao contrário, instruídas a evitar a contracepção e a ter tantos filhos quanto Deus e seus maridos gostariam de lhes infligir, independentemente da sua saúde ou de suas preocupações financeiras.

A misoginia e abuso sexual estão interligados, mesmo nos casos em que as vítimas de abuso são do sexo masculino. As sociedades patriarcais constroem o sexo como um ato de dominação, em que uma pessoa em um encontro é o conquistador e a outra, a conquistada. O dogma católico, que pretende que o sexo só deva ocorrer dentro do casamento, só reforça esse paradigma. Na visão católica do matrimônio, as mulheres são subservientes aos seus maridos, e o sexo, portanto, se torna representativo do poder do marido sobre sua esposa. Quando o sexo é uma demonstração de poder, transformar o sexo em uma arma de abuso é apenas o próximo passo lógico. Sem o feminismo na mão para combater isso, as potenciais vítimas estão singularmente vulneráveis.

É irônico que as próprias ferramentas que trabalham para combater o abuso sexual – abertura sobre a sexualidade humana e feminismo – estão sendo culpadas como a causa do abuso sexual pelos autores do estudo do John Jay. É irônico e francamente estúpido.

Outras denominações estão começando a perceber que incorporar um pouco de feminismo em sua religião pode fazer maravilhas para retardar a debandada de fiéis. Se a Igreja respondeu a esses escândalos sexuais dos padres invertendo sua posição para uma única questão – os requisitos do celibato, a proibição do controle de natalidade, a proibição das mulheres como padres –, ela poderia ser tratada pela imprensa e pelos fiéis como uma imensa concessão. De fato, a Igreja ganharia muito mais crédito do que merece pela evolução e pela receptividade. Qualquer uma dessas mudanças provavelmente não iria fazer muita coisa no mundo real para corrigir os enormes problemas estruturais da Igreja Católica, mas às vezes uma demonstração de boa-fé pode fazer maravilhas sobre os fiéis.

Ao invés disso, o público recebe um relatório que, basicamente, acusa outra pessoa pelos abusos sexuais, que afirma que os erros que foram cometidos estão lá atrás no passado e que conclui que a Igreja não tem que mudar nada substantivo a fim de evitar futuras tragédias.

Qualquer fiel que tenha dúvidas provavelmente não será consolado por essa falta de responsabilidade, mas será afastado da Igreja.

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