Em busca de Deus em todas as coisas. Em memória de Bartolomeo Sorge

Foto: Suor Concetta De Magistris | Wikimedia Commons

09 Novembro 2021

 

"O Padre Sorge era também um homem espiritual que sempre incluía entre as suas atividades habituais a pregação, o ministério dos Exercícios Espirituais, as conversas pessoais, o encontro com as comunidades de religiosos que seguia. Nesses ministérios, fez refluir discretamente a sua experiência e o seu modo de encontrar Deus, e a sua espiritualidade pessoal era simples, se quisermos, também, 'tradicional', capaz de valorizar a piedade popular", escreve Antonio Spadaro, jesuíta italiano e diretor da revista La Civiltà Cattolica, em artigo publicado em L'Osservatore Romano, 02-11-2021. A tradução é de Luisa Rabolini.

 

Eis o artigo.

 

"Há pouco li algo de uma clareza que fez tremer, não digo a política italiana, mas certamente a Igreja italiana!": essas são as palavras do Papa Francisco ao abraçar o Padre Bartolomeo Sorge depois de ter lido a sua reflexão sobre a história da Igreja italiana desde a I Conferência Eclesial de 1976 até hoje na "La Civiltà Cattolica".

 

Aquele artigo é quase o testamento de uma vida dedicada ao tema dos católicos na política: não uma inspiração ideal genérica, mas um projeto original de sociedade que visa alcançar uma democracia madura (Bartolomeo Sorge, Un “probabile sínodo” della Chiesa italiana? Dal i Convegno ecclesiale del 1976 a oggi, em "La Civiltà Cattolica" iii, 2019, páginas 449-458). E, sobretudo, como diretor de "La Civiltà Cattolica" (1973-1985), o Padre Sorge marcou a vida italiana graças à sua capacidade de interpretar a vida política e eclesial.

 

Uma voz profética

 

Nascido em 25 de outubro de 1929 em Rio Marina, na Ilha de Elba, ele sempre lembrou com orgulho de suas raízes sicilianas, por parte de pai, e do Vêneto, por parte de mãe. Entrou na Companhia de Jesus aos 17 anos e foi ordenado sacerdote em 1958. Especializou-se em Ciências Sociais em Roma, na Universidade Gregoriana. Em 1966, foi destinado à "La Civiltà Cattolica", então dirigida pelo padre Roberto Tucci (posteriormente cardeal), para cobrir o campo das ciências políticas e sociais e das atualidades à luz do ensinamento social da Igreja. Eram os anos imediatamente posteriores ao Concílio Vaticano II, cheios de tensões, entusiasmo e ânsia de renovação. O Padre Sorge, com seus escritos, suas palestras e sua participação nos debates da mídia - sempre com um sorriso e uma cordialidade inquebrantável - conseguiu ser uma voz profética que acompanhou a recepção do Concílio na Itália, e um servidor do mais alto perfil da vida social e eclesial do nosso país.

 

Sua relação com São Paulo foi muito estreita e o diálogo com a Secretaria de Estado - em particular com a Seção de Assuntos Extraordinários, da qual era então responsável o monsenhor Achille Silvestrini - intenso. Também na Igreja italiana, liderada na época pelo cardeal Antonio Poma e por monsenhor Enrico Bartoletti, a voz de Sorge foi uma das mais ouvidas até o momento culminante da grande conferência eclesial nacional sobre "Evangelização e promoção humana", em 1976, na qual ele estava entre os promotores e protagonistas. Para ele, a evangelização devia sempre ser acompanhada pela promoção humana.

 

A conferência deveria ser uma prova concreta de como implementar a "atualização" desejada pelo Concílio, tanto estabelecendo um diálogo fraterno entre todos os componentes do povo de Deus, como propondo diferentes formas de missão. Em particular, segundo Sorge, era necessário repensar o próprio conceito de missão, baseando-o na nova compreensão do nexo entre evangelização e promoção humana destacado pelo Concílio e pelo projeto pastoral plurianual da CEI dos anos 1970, sobre "Evangelização e os sacramentos".

 

Já não bastava mais modernizar os métodos pastorais tradicionais, mas era necessária uma mudança de mentalidade; era necessária uma "conversão missionária": isto é, repensar não só os métodos pastorais, mas a própria proclamação da fé na sociedade em evolução. Era preciso voltar ao Evangelho, ao essencial, julgando e orientando as opções temporais à luz da palavra de Deus e do magistério (com sua "doutrina social"), tanto por meio do compromisso político direto, laico e pluralista dos católicos, não isolados, mas junto com todos os outros cidadãos de boa vontade.

 

O resultado da conferência foi extraordinário, ainda que Sorge - que proferiu a palestra final com amplos consensos – depois tenha lastimado que as conclusões daquele encontro não tiveram o seguimento que mereciam. Nos últimos anos, o padre Sorge disse-me várias vezes que reconhecia, com alívio e alegria, que no pontificado de Francisco estava sendo plenamente retomada aquela orientação da conferência de 1976. Em particular, nos últimos tempos, ele me falou sobre como sentia-se plenamente representado pelo que o Pontífice disse em dezembro de 2019 em seus votos natalinos à Cúria.

 

Cito em particular as expressões de Francisco que discutimos há alguns meses e que para ele são o ponto de referência essencial para repensar a missão da Igreja hoje: “Nas grandes cidades precisamos de outros ‘mapas’, outros paradigmas, que nos ajudem a reposicionarmos as nossas formas de pensar e as nossas atitudes: Irmãos e irmãs, não estamos na cristandade, não mais! Hoje não somos mais os únicos que produzem cultura, nem os primeiros, nem os mais ouvidos. Precisamos, portanto, de uma mudança de mentalidade pastoral, o que não significa passar para uma pastoral relativista. Não somos mais um regime de cristandade porque a fé - especialmente na Europa, mas também em grande parte do Ocidente - já não constitui um pressuposto óbvio da vida em comum“.

 

Em 1985, deixou "La Civiltà Cattolica". Nesse ínterim, os tempos já haviam mudado e as sintonias do passado já não existiam mais. Ele me disse, e depois escreveu em “La Civiltà Cattolica”: “São João Paulo II preferia a linha da presença à da mediação cultural; insistia na Igreja como força social além de espiritual, e voltava a ressaltar a necessidade da unidade política dos católicos”.

 

O campo de ação do Padre Sorge mudou de Roma para Palermo, cidade simbólica onde os jesuítas já atuavam há anos no campo social. O empenho dos leigos cristãos na sociedade e na política, no espírito do Concílio, marcou seus anos sicilianos como na direção do “Instituto Pedro Arrupe de Formação Política”, que animou aquela que foi chamada de “primavera de Palermo”. O compromisso com a justiça caracterizou radicalmente a sua ação como expressão de sua fé.

 

A ideia das "escolas de formação política" espalhou-se rapidamente, dando origem a uma temporada de iniciativas semelhantes em toda a Itália. Eram anos dramáticos, os anos dos atentados da máfia que mataram Falcone e Borsellino. O Padre Sorge também foi ameaçado pela máfia e por muito tempo teve que se deslocar acompanhado por uma escolta.

 

 

Em 1996 partiu para Milão para ser diretor da revista "Aggiornamenti Sociali". Seria diretor até o final de 2009 e depois continuaria seu compromisso com a reflexão sociopolítica. Retirando-se para Gallarate em uma comunidade de jesuítas idosos, o Padre Sorge continuou a viajar pela Itália para conferências, a publicar novos livros e fazer sua voz ser ouvida clara e nítida no debate público até seus últimos dias. Deixou esta terra no dia 2 de novembro de 2020.

 

Devolver uma alma à política

 

Roma, Palermo e Milão foram as bases sólidas de uma exuberante atividade de divulgação vivida com paixão a serviço do pleno amadurecimento da consciência democrática dos cidadãos; e reiterou a importância do compromisso dos católicos na política, colaborando com parceiros de diferentes orientações culturais e buscando o maior bem concretamente possível.

 

Para o Padre Sorge, o problema mais urgente era devolver uma alma à política, ajudando a democracia a recuperar o seu fundamento ético. É por isso que ela sempre tentou contestar a tentação de refugiar-se no espiritualismo intimista e desencarnado, que leva a Igreja à autorreferencialidade, a se dobrar sobre si mesma, a preocupar-se principalmente com seus problemas internos, a se fechar dentro dos muros do templo, obcecada pela observância das normas canônicas.

 

Este é o coração da inspiração do padre Sorge: Deus está presente e à obra no mundo, não o abandonou, mas pede para ser reconhecido onde ele está presente. Nesse sentido, Sorge foi radicalmente jesuíta, contemplativo da história, capaz de discernir a ação. E foi também um intérprete fiel do Concílio Vaticano II e da inspiração da Gaudium et spes sobre a relação madura que se estabelece entre a Igreja e o mundo.

 

Por isso, ele amava a mediação cultural e não o presencialismo, seguir os processos mais que ocupar espaços. Lembramos também que o Padre Sorge participou da XXXII Congregação Geral da Companhia em 1974 junto ao Padre Carlo Maria Martini e o Padre Jorge Mario Bergoglio. Não é difícil reconhecer, mesmo entre todas as diferenças de personalidade, um fio condutor que une essas três grandes personalidades.

 

Por uma “laicidade positiva”

 

Durante os anos de "Civiltà Cattolica" - os últimos quatro anos do pontificado de Montini, entre 1974 e 1978 - ele se viu empenhado a favor da recomposição de todas as forças que fizeram juntas a Constituição. Era convicção do Padre Sorge que após o fim das ideologias do século XX, todas desmentidas pela história, crentes e não crentes poderiam se reconhecer em programas reformistas de coisas a fazer, inspirados nos valores de um humanismo transcendente, mas mediado em escolhas leigas, compartilháveis por todos os homens de boa vontade.

 

O pressuponendum inaciano que quer salvar tanto quanto possível a afirmação do outro era um elemento fundamental de sua forma de dialogar com os outros. Isso implica o que o Padre Sorge chamava de "laicidade positiva", que consiste em nos encontrarmos naquilo que nos une entre os diferentes, para crescermos juntos em direção a uma unidade cada vez maior, no respeito pleno pela identidade de cada um. O conceito de "laicidade positiva", portanto, aplica-se bem às relações políticas entre os partidos: o diálogo necessário para realizar uma "boa política" supõe que seja superado qualquer "confessionalismo" rígido, não só religioso, mas também ideológico.

 

Este último, de fato, pode impedir a possibilidade de encontro e de colaboração entre forças diversas em vista do bem comum, que é o próprio fim da política. Nesse sentido, deve ser considerada para sempre superada a antinatural contraposição entre "partidos leigos" e "partido dos católicos", típica da época, agora terminada, das grandes ideologias de massa.

 

Isso exige que os cristãos adquiram uma habilidade não simples: colaborar com os parceiros políticos de diferentes orientações culturais, sem nunca renunciar a testemunhar a força profética e crítica do Evangelho em que acreditam. Cabe então a toda a Igreja anunciar profeticamente, com palavra e com vida, que o poder de Deus é diferente do poder de quem comanda no mundo.

 

A posição do Padre Bartolomeo coincidia perfeitamente com o discurso que o Papa Francisco proferiu na V Conferência Eclesial de Florença (2015), um discurso que certamente deveria ser retomado e meditado.

 

Os traços espirituais

 

Duas coisas na minha memória caracterizaram a lição do Padre Sorge, também como seu sucessor na direção de "La Civiltà Cattolica": por um lado, a lucidez de um pensamento que se formou graças ao estudo, ao aprofundamento e à força de uma experiência, única a seu modo, que ele viveu e da qual é testemunha. Seu ministério era culto, fruto do estudo e tinha entre seus objetivos a formação de “multiplicadores”. Por outro lado, a "profecia" e parrésia, a inspiração espiritual, bem como a honestidade, para dizer que hoje nem sempre temos todas as respostas certas que gostaríamos de ter e que, portanto, o compromisso real e concreto com a história - possíveis erros incluídos - é fundamental para compreender e agir bem no futuro próximo.

 

O Padre Sorge era também um homem espiritual que sempre incluía entre as suas atividades habituais a pregação, o ministério dos Exercícios Espirituais, as conversas pessoais, o encontro com as comunidades de religiosos que seguia. Nesses ministérios fez refluir discretamente a sua experiência e o seu modo de encontrar Deus, e a sua espiritualidade pessoal era simples, se quisermos também "tradicional", capaz de valorizar a piedade popular. Também nesse sentido o Padre Bartolomeo Sorge foi um jesuíta que soube incarnar uma ampla disponibilidade apostólica, sempre em busca de Deus em todas as coisas.

 

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