“Os meios de comunicação podem criar preocupações, mas não opiniões”, entrevista com Cyrill Lemieux

12 Novembro 2020

Cyrill Lemieux, o pai da sociologia pragmática na França, especialista no papel dos meios de comunicação e dos jornalistas, destaca que no mundo das redes sociais se reproduzem problemáticas que subjazem desde antes. A internet tem uma superestrutura desenhada para manipular pessoas, porém também representa uma grande democratização da produção de conhecimentos. Uma popularização que assusta tanto as elites como os dogmáticos de esquerda. Os limites da construção social da realidade, a covid-19 e o populismo.

 

A entrevista é de Jorge Fontevecchia, publicada por Perfil, 03-10-2020. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.

 

Eis a entrevista.

 

O que motivou seu interesse pela sociologia dos meios de comunicação?

Está muito relacionado com minha história pessoal. Quando eu era estudante, trabalhei como jornalista. Descobri esta profissão em paralelo a meus estudos. Assim aprendi da complexidade e dificuldade. Sabia que me dedicaria à sociologia. E detectei que há pouquíssimos estudos sobre esta disciplina absolutamente fundamental para a vida social. Eram nos anos 1990. E havia muitos meios de comunicação com posições muito críticas, que se colocavam longe da realidade. Propus-me em certo sentido a uma crítica ao trabalho jornalístico, uma forma que refletisse melhor as dificuldades que se apresentam no trabalho real. Uma visão menos caricata do labor. A crítica aos meios de comunicação é muito importante na democracia. A crítica dirige-se a pensar não somente na informação, mas também no trabalho e o papel dos jornalistas.

 

No ano de 2000 escreveu o livro “Mauvaise presse: une sociologie compréhensive du travail journalistique et de ses critiques” (“Imprensa malvada: Uma sociologia integral do trabalho jornalístico e suas críticas”, em tradução livre). Mudou desde então sua visão sobre o jornalismo?

Tentei formular uma história nos meios de comunicação franceses desde o século XVIII. Parti de uma pesquisa nos principais meios de comunicação como o jornal Le Monde, o canal de televisão France 2, France Télévisions e um importante jornal regional, Sud-Ouest, de Bordeaux. Realizei 125 entrevistas. O objetivo era obter um modelo de análise do seu trabalho, das dificuldades que aparecem.

Em vinte anos, essas dificuldades não pararam de aumentar. Isso se deve principalmente à pressão das restrições econômicas sobre a possibilidade de pesquisa. O que o livro diz ainda é válido vinte anos depois. Claramente, existem aspectos que merecem uma atualização. A grande mudança neste período é a presença da internet. Naquela época, estava apenas começando. Hoje, a internet está onipresente no trabalho dos jornalistas. Na década de 2000, vimos pela primeira vez o desenvolvimento da crítica da mídia, de pessoas que clamavam por mídia independente. Isso abalou o trabalho dos jornalistas. Então, em 2010, vimos o desenvolvimento de estratégias de controle da internet, de instrumentalização da influência, o que dificultou extremamente o trabalho dos jornalistas. Muitas das propostas originais desse texto ainda são válidas. Mas é preciso reconhecer que a internet alterou significativamente o trabalho dos jornalistas.

 

Durante a campanha presidencial francesa em 2007, ele dirigiu um blog intitulado “Prêmios do partido jornalístico” e também escreveu o livro “Um presidente escolhido pela imprensa?”. Que lições você tira de todo esse processo?

Tudo saiu de uma espécie de brincadeira que aconteceria no site do Le Monde. Vem de um pedido do próprio jornal: procurei comentar o cotidiano da campanha do ponto de vista sociológico. Percebi que a preocupação econômica é cada vez mais importante na estruturação do trabalho dos jornalistas. É percebido em vários níveis. Em primeiro lugar, o foco está mais na luta política entre os candidatos do que na profundidade das questões. É algo que você não precisa ter outros tipos de conhecimento. A briga entre candidatos é um tema que atrai mais do que conteúdo. Em segundo lugar, e aqui está uma especificidade francesa, o valor que é dado às pesquisas. A França é um país que produz muitas pesquisas eleitorais, que impactam no andamento da campanha e no olhar dos jornalistas sobre os candidatos. Aqueles com expectativas mais baixas de votos são tratados de forma muito diferente dos favoritos. Isso desequilibra o tratamento dado pela mídia à campanha. Outro ponto a ser lembrado é que a agenda da mídia é muito subordinada à dos políticos. Não é tanto a mídia que move as coisas, mas os interesses políticos. É algo que aparece com muita força com as revelações dos escândalos que embelezam as campanhas. Quem fornece as informações é quem gera os escândalos. É mais um fenômeno vinculado a limitações econômicas. A mídia com menos recursos pode ser mais vulnerável com certos tipos de informações.

 

Você é um estudioso do tema da criação de escândalos.

Estudei muitos processos para entender como os escândalos estouram. A primeira coisa a dizer é que é um processo que não ocorre da mesma forma em muitos países. Na França, muitos eventos nunca se tornam escândalos porque para muitos é suficiente compartilhá-los em pequenas áreas, dentro de instituições, grupos sociais. Eles permanecem nas fofocas, nos boatos. Em certos momentos, rumores ou alguma fofoca são mediados. A segunda questão é o debate que geram. Conceitualmente, poderia ser formulado como a transição do escândalo para o negócio. Há uma polissemia interessante em francês com a palavra affaire, que pode ser igualmente negócio como escândalo. E o debate é gerado, sobre o acusado e sua vida. O que se observa nas sociedades modernas é a condenação direta. São cargas, sem defesas. Em sociedades mais tradicionais, esse fenômeno ocorre menos. E é algo muito importante no que se refere à democracia. Para resumir, há duas questões importantes: como você vai da fofoca ao escândalo, como garantir que você não seja preconceituoso ao tornar um assunto público: a forma do debate. Analisei tipos muito diferentes de escândalos: políticos, financeiros, sexuais e esportivos. Trabalhei muito em escândalos de doping no esporte. Esta não é uma teoria geral do escândalo, o que seria algo muito ambicioso, mas é uma tentativa de detectar algumas tendências importantes. É a forma como julgamos uma figura pública.

 

O que pode nos adiantar sobre o livro que está preparando sobre fake news e conspiração?

Na Argentina vocês falam de fake news, um termo que se globalizou. Na França, como em outros países europeus, o desenvolvimento de estudos sobre informação falsa já tem uma história de 15 anos. E é um verdadeiro problema público. Há leis que se promulgam sobre este tema na França. Se aprovaram leis para limitar o fluxo de fake news pela internet. Tentei averiguar por que era um problema e quem era um problema em vez de pensar no que fazer. Estou certo de que estamos frente a um problema, porém me interessava mais ver sua construção. Há outros países do mundo nos quais está muito menos construído como problema. Na França está muito ligado a um processo histórico de longa data, de longa duração, que é a expansão social do acesso à publicação. Podemos voltar à invenção da imprensa e à produção destas publicações. Tinha-se a impressão de ser despossuídas. É algo que se viu muito bem no século XIX, em todas as partes da Europa. Gerou-se uma grande crise com a aparição da imprensa industrial. As elites se assustaram muito com a expansão da imprensa como indústria. Afetou milhões de pessoas, porém segundo eles sob o nível do debate pública, introduziu-se o tema da violência de gênero, o que originou amplas condenações dos homens. Hoje vivemos algo similar quando as elites alfabetizadas condenam o fato de que qualquer um possa publicar qualquer coisa na internet. Assim se produz uma tentativa de monopolização junto a um novo movimento no processo de democratização do acesso à escritura e à leitura. Esse é um ponto de vista possível. Não se trata de não considerar as fake news como um problema. Porém também há que se entender as questões sociais relacionadas com o que vivemos em contextos nos quais cada vez mais pessoas tem acesso à escritura e à leitura. Portanto, podem escrever coisas grosseiras ou violentas. Isso sem dúvidas estabelece um nível de problemas. Porém, se olhar a longo prazo, se vê que se trata de uma medida para ampliar o acesso social à publicação em meios de comunicação. Pode se pensar a questão de uma maneira que não seja reacionária. Interessa-me pensar nas formas de regulação, que não sejam defeituosas, que não violem a liberdade e que não caiam no reflexo de fechar o acesso à escrita e às publicações.

 

Você conduz o laboratório de Estudos sobre as Reflexividades. Como ajuda uma correta reflexividade ao jornalista para superar sua subjetividade no exercício do seu labor?

Criamos novos laboratórios com sociólogos, filósofos e advogados chamados de Laboratório de Estudos de Reflexividade. A reflexividade pertence aos atores sociais. É transcender o pensamento individual sobre a tarefa em si. Às vezes, espera-se que as pessoas produzam coletivamente. E que esse pensamento coletivo produza reflexividade sobre sua prática, a alternativa de questionar e discutir coletivamente suas práticas. Essa reflexividade é encontrada em todos os grupos sociais: em uma família, em uma instituição, em uma organização. Mas também é frequentemente limitado pelo dispositivo de organização do trabalho. As pessoas não têm tanta oportunidade de se perguntar sobre sua profissão, sobre as transformações de sua profissão, sobre como trabalham ou vivem com os outros. O estudo tem como objetivo examinar organizações e dispositivos que aumentam a capacidade coletiva de questionar suas próprias práticas. Quais são as perspectivas de dispersão da capacidade coletiva? Quando falamos de reflexividade, é sempre uma função da dimensão coletiva. Por exemplo, em uma redação, se todos os jornalistas pensassem juntos sobre suas práticas, eles os interrogariam, discutiriam se são justos ou não e como melhorá-los, dependendo se foi organizado de uma forma particular. Essa reflexão coletiva é sempre mais complexa. Na França era quase impossível fazer essas reflexões coletivas, mas, por exemplo, o jornal Le Monde era muito animado e sempre organizado dentro de um certo limite. Muitas vezes em que o grupo de trabalho reflete sobre suas próprias práticas e avalia sua relevância, a resposta sobre como aumentar a reflexividade dos jornalistas é coletiva. Tem a ver com as organizações onde você trabalha, a partir daí se organiza a reflexão. A ideia de reflexividade não é algo individual. É individual, claro, mas está ligada a dispositivos coletivos, a uma organização do trabalho que permite a cada um pensar coletivamente sobre suas práticas.

 

A ideia de Karl Marx de que a mídia é “a criação da burguesia para a burguesia” ainda é válida?

Mais uma vez, é possível traçar uma polissemia: burguês se refere à classe social, mas também àqueles que vivem nas cidades. Os burgueses são os cidadãos. Talvez essa frase deva ser entendida também nesse sentido, em termos de cidadania. Em todo caso, penso que o problema da imprensa em termos históricos não é tanto a sua gentrificação, mas que se tornou cada vez mais popular. Isso é o que ele disse antes quando falou de notícias falsas. Ele responde a esse movimento histórico de expansão do acesso à escrita e à leitura. Ou seja, o fato de que as classes populares do final do século XIX, os camponeses e os trabalhadores, tiveram acesso à leitura, à escrita e se desenvolveram a partir dos meios de comunicação direcionados a eles. Esse é um problema para as elites, que veem a formação da mídia de massa como politicamente perigosa, vulgar. Mas também é um problema para os revolucionários marxistas. No caso da França, no início do século XX, houve muita reflexão sobre os chamados efeitos da despolitização das classes populares pela grande imprensa. A ideia é que a imprensa de massa capitalista despolitize as classes populares. Isso os impede de fazer a revolução por meio do entretenimento, do pão e do circo. Esse jornalismo os afasta do real, das questões reais. O maior problema de hoje para os revolucionários marxistas é a existência da mídia capitalista. São burgueses, talvez por causa do capital, mas por meio de um mecanismo capitalista dirigem-se às classes populares. Pessoas de esquerda e extrema esquerda costumam atribuir um efeito despolitizante a essas mídias. É muito questionável, porque despolitização significaria que há uma politização anterior, que essa politização existiu.

 

Há uma diferença de categorias entre radiodifusão e mídia de comunicação?

É uma questão para se pensar. Falar em comunicação significaria que estamos mais em uma interação. Em um meio de comunicação bem conhecido, o destinatário interage com a pessoa que transmite, enquanto a transmissão seria unilateral. A questão que se coloca é se hoje a internet é realmente comunicação ou difusão. Se for uma estrada de mão única ou uma viagem de ida e volta, algo interativo. Estudos mostram que é pouco interativo. As pessoas estruturam a web, então existem formas de interatividade, é claro, mas de alguma forma elas estão presas na infraestrutura da web, que ainda é bastante assimétrica. A luta política por mais democracia na mídia deve ser por mais interatividade real. Essa luta transformou os meios de difusão em meios de comunicação. Ou seja, meios que valorizam a interação de difusores e receptores.

 

A imprensa cria opiniões ou simplesmente permite que se ativem ou confirme opiniões pré-existentes?

É um debate muito antigo na sociologia da mídia. Hoje podemos dizer que a mídia não cria opiniões, que as opiniões são pré-existentes para a mídia. A mídia não tem poder de gerar comportamento. Se você é uma pessoa de esquerda na França e vê Marine Le Pen na televisão, se você a assiste muito, não significa que você se sinta tentado a votar nela. Pelo contrário, quanto mais você vê isso, menos tentado você fica a votar nele. A ideia socialista é mais antiga. Todos os estudos sociológicos convergem para afirmar que os meios de comunicação de massa não têm um efeito direto, unilateral e massivo no comportamento social e político. Isso não significa que eles não tenham efeito. Os sociólogos americanos dizem que a mídia não altera o que se deve pensar. Eles não têm energia. Mas tem um efeito de modular a comunicação ao sincronizar a atenção do público. Por exemplo, toda a mídia vai nos explicar que o evento atual é, por exemplo, a crise de saúde Covid-19. Basta ligar a televisão para saber que se fala, é algo que sincroniza a todos: quem mora no campo ou na cidade, independente da faixa etária. Não é um pensamento único, mas é uma direção unilateral, um pensamento sincronizado direcionado para um assunto. O mesmo acontece com os esportes. Todos sabem que a final da Champions League acontece porque está em todo o lado. Mas isso não significa mais. Este primeiro efeito de mídia é muito poderoso. Ocorre dentro de uma nação, mas também internacionalmente. As pessoas serão levadas a pensar que têm as mesmas preocupações. Na hora das eleições é muito importante. É um efeito mobilizador, cada vez menos discreto. Avança. A isso é adicionado o que poderia ser chamado de efeito diferenciador. A mídia de massa estabelece fenômenos complexos em nossas sociedades. Existem muitos grupos sociais profissionais. A recepção da mídia é sempre diferenciada. Tem o efeito de marcar diferenças entre grupos sociais. É um segundo efeito muito forte. Sincronize e acentue as diferenças marcadas. Mas eles não criam opiniões. A mídia cria preocupações. Em uma campanha presidencial de 2002 na França, a mídia se concentrou na questão do crime e da insegurança. Isso sem dúvida teve o efeito de beneficiar o candidato da extrema-direita Jean-Marie Le Pen. Não que eles convocassem uma votação. Eles se concentraram em certos aspectos da sociedade e produziram essas sincronizações.

 

Existe nos monopólios digitais dos gigantes do Vale do Silício e suas redes associadas o que em outro estágio foi chamado de “violação coletiva”, seguindo a citação de Jean François Revel?

Em francês, é a violação das multidões que foi um livro muito importante da década de 1930. Mas é uma crença questionável. De acordo com os sociólogos, é altamente questionável falar sobre a ideia de que as pessoas podem facilmente manipular multidões, pelos motivos que acabei de dizer. As pessoas têm opiniões pré-existentes, normas de socialização. A influência dessa forma já foi descartada. De certa forma, a influência existe sobre as coisas que já aderimos de alguma forma. É difícil fazer as pessoas aderirem a ideias muito diferentes daquelas que receberam durante sua educação. A mídia acentua certas características, certas crenças; mas não atingem a capacidade de criá-los do zero. É uma conclusão que aparece na maioria das obras. É difícil dizer que este ou aquele meio detém o monopólio do cérebro das pessoas e de seu comportamento. É dar muito poder à mídia. Outra questão é a pluralidade da mídia. Em um sistema democrático, a questão do pluralismo da mídia deve ser garantida. Existem garantias legais, institucionais e constitucionais para preservar o pluralismo. O monopólio de alguns meios de comunicação não corresponde ao ideal de pluralismo que caracteriza as sociedades modernas. Devem ser distinguidos dois níveis de análise: por um lado, os efeitos reais da mídia são superestimados, mas isso não significa que os monopólios da mídia não devam ser combatidos. A questão do pluralismo não deve estar ligada apenas às consequências da mídia sobre o comportamento. A sociologia tende a dizer que eles são frequentemente superestimados.

 

As conclusões de Elisabeth Noelle-Neumann sobre a “espiral do silêncio” hoje seriam diferentes das dos anos 80?

Provavelmente, principalmente da internet e das redes sociais. A mídia divulgou opiniões e certas ideias. Quem não se reconhece nessas ideias majoritárias, em vez de tentar propor outras, refugia-se no silêncio. Existe algum tipo de superestimação do consenso social. Existem pessoas que não concordam em absoluto, mas que se calam. Eles ficam em silêncio, porque sabem que são uma minoria. Em uma sociedade secular, um tradicionalista religioso tenderia a permanecer em silêncio porque sabe que se falar publicamente será imediatamente criticado. A pergunta sobre se a Internet mudou as coisas certamente tem uma resposta afirmativa. Ideias que não são legítimas são expressas com mais facilidade, por meio de uma espécie de desinibição na internet. Vemos pessoas com opiniões muitas vezes violentas e extremistas e que se expressam na internet. Ideias que são menos visíveis, mas que existem, são tornadas públicas. Essas ideias estavam na sociedade. Mas eles são expressos por meio da internet. A espiral do silêncio está desaparecendo em favor da desinibição. É uma característica das sociedades atuais. São ideias que se tornam visíveis. E podemos temer que eles sejam visíveis. Sobre isso, existem várias teorias. Aprendemos muito sobre como os extremistas pensam com o desenvolvimento desses sites nos últimos dez anos. Sabemos mais sobre a extrema-direita. E não apenas sobre ela.

 

A perspectiva de Noam Chomsky em seu livro “Manufacturing Consent: The Political Economy of the Mass Media” ainda é válida, de que a crescente dificuldade de controlar as populações apenas com a força deu lugar ao controle dos consumidores industriais, guiando seus desejos através da publicidade, ou também perdeu a validade?

A teoria de Chomsky é muito popular e faz parte do modelo de que falei, que tende a atribuir muito poder à mídia. Não considero que os meios de comunicação tenham o poder de expressar uma opinião ou de dar o seu consentimento. Não acredito. É óbvio, refletindo sobre Chomsky, que a forma como se organizam continuará a contribuir mais ou menos para o surgimento de dissensões ou consensos. Somos todos democratas sinceros e concordamos com a necessidade do pluralismo. Mas esse pluralismo precisa ser organizado. Dados os mecanismos do mercado, nada é absolutamente espontâneo. Em alguns países, é o estado que monopoliza todos os meios de comunicação. Em outras, são grandes empresas, o mercado. São questões que mudam em diferentes países. Alguns têm mais estado, outros mais mercado. Claro, seja o estado ou o mercado, acho que precisamos de um terceiro fator. As associações civis podem exigir maior pluralismo. É um jogo de três em que o Estado deve se limitar com base em suas próprias leis, que podem preservar o pluralismo. Acredito que as associações de cidadãos têm um papel essencial. Quanto mais eles intervirem, mais viva será a democracia.

 

Google e Facebook nasceram sem anúncios: foi a publicidade e a busca para maximizar a audiência que os transformou em máquinas de manipulação de comportamento?

É uma questão importante em tempos de racionamento para a mídia. Os dados provam isso. Você pode mostrar essa evolução. O nascimento da imprensa de massa capitalista no século XIX está intimamente relacionado à questão da publicidade. É uma questão chave no capitalismo. A publicidade na mídia é uma questão da era contemporânea. Na verdade, é um assunto que se sofisticou nos últimos tempos. Há uma melhoria nas técnicas de negócios em particular, mas não só na internet. Existem cada vez mais técnicas de influência comercial. Algo extremamente sutil e desenvolvido. É algo sobre o qual precisamos aprender mais. Temos que dar mais transparência. Os usuários da Internet precisam ter acesso a mais informações sobre os patrocinadores do site e como funcionam os algoritmos. O objetivo é democratizar a internet, torná-la mais transparente. Que seus usuários possam até mesmo usá-la para criticar a infraestrutura da web e a presença dessas estratégias de influência comercial. Precisamos de mais transparência. Mais elementos são necessários para permitir que os usuários saibam onde estão quando confrontados com um site. Precisamos capacitar os usuários da Internet para combater essas situações.

 

Em que medida é causa e é consequência da polarização a multiplicação dos meios de comunicação tradicionais que a tecnologia produziu? O surgimento dos rádios FM nos anos 1970 e a multiplicação em dez vezes dos canais de televisão a cabo e digital nos anos 1990 significaram que hoje existem canais conservadores e liberais 24 horas. Em seguida, surgiram a web e as redes sociais.

Não sei como isso acontece na Argentina. Mas a polarização é muito forte nos Estados Unidos. Na França, parece menos forte do que nos Estados Unidos. Nos EUA existe um sistema de mídia em torno de Trump e outro que se opõe a ele. Existem meios de comunicação que são aliados. E do outro lado está o resto do mundo político, com outros meios. A polarização do sistema de mídia, que também é de todo o país, impressiona muito nos EUA: dois blocos que possuem sistema de informação próprio. Na Europa, a situação é diferente. Ainda temos um sistema de mídia competitivo. Existe um mainstream comunicativo. Obviamente, a informação alternativa é desenvolvida na internet, mas tem um caráter um tanto subordinado ao sistema mainstream. Vejo que a polarização que você descreve é um fenômeno que ocorre mais nos Estados Unidos.

 

Em que a sociologia pragmática francesa que você defende é diferente da sociologia francesa dominante de Pierre Bourdieu?

Devíamos começar a responder dizendo o que as aproxima, a começar por uma concepção que chamo de designer empírico da sociologia. A concepção de que a pesquisa empírica deve ser feita e não apenas uma teoria. Esse é um ponto comum entre a obra de Pierre Bourdieu, que sempre concebeu a teoria sociológica em relação à pesquisa empírica, e o que chamamos de sociologia pragmática na França. A ideia é pensar pelo sentido prático. Na maioria das situações da vida social, não o temos. Fazemos as coisas quase sem pensar. A diferença da sociologia pragmática é que ela reconhece a existência dessa praticidade. E ela também está interessada em outros momentos do sistema em que há a reflexividade de que falamos antes. São os momentos da vida social em que você começa a pensar muito no que está acontecendo. A sociologia pragmática se interessou por esses processos de reflexão: na vida social, vamos de momentos em que agimos irrefletidamente, quase automaticamente, a momentos em que, ao contrário, pensamos coletivamente sobre as situações. Muda de alguma forma a visão que temos sobre os atores. Quando vemos que os atores sociais são capazes de desenvolver um olhar reflexivo sobre suas práticas, fica mais difícil entendê-los como alienados. A sociologia pragmática concentra-se nas capacidades reflexivas coletivas. A grande diferença com Bourdieu é que a sociologia pragmática enfatiza as capacidades reflexivas coletivas dos atores.

 

Na Argentina, a psicologia está profundamente enraizada. Já a sociologia passou a ser ensinada na Universidade com a chegada da democracia. Que troca seria relevante entre a psicologia social e a sociologia?

É uma pergunta muito boa. As ligações entre psicologia e sociologia foram estabelecidas de maneiras muito diferentes entre os diferentes países. Nos Estados Unidos, por exemplo, existem pontos de contato entre a psicologia e a sociologia. Na França, a sociologia foi construída contra a psicologia. Prevalece a ideia de que os problemas psicológicos que encontramos como indivíduos não estão ligados à existência de normas sociais e à situação histórica coletiva. É por isso que surgem várias doenças psíquicas relacionadas ao superego. A neurose obsessiva é um problema recorrente nas sociedades modernas. É uma doença relacionada à vida social moderna. Para os sociólogos, o movimento é localizar os problemas psicológicos em um horizonte sócio-histórico. São duas disciplinas que podem convergir. Mas os sociólogos consideram que os problemas psicológicos não devem ser universalizados. Os problemas psicológicos estão sempre ligados às situações de cada tipo de sociedade. É possível uma articulação entre psicologia e sociologia. Os sociólogos tendem a pensar que têm uma visão mais ampla do que os psicólogos. Muitas vezes, a psicologia do outro tem muitos pressupostos individualistas e não leva suficientemente em conta a dimensão social coletiva das dificuldades psicológicas.

 

Eu já lhe escutei dizendo que “deve se tomar cuidado com teorias sem fatos e estudos com fatos que não têm teoria”. Em suas viagens pela América Latina, qual das duas falhas você encontrou com mais frequência?

A frase a que você se refere está ligada a uma concepção que chamei de empírica do desenho sociológico. A ideia é que precisamos tanto de teoria quanto de praticidade. A sociologia é geralmente mal compreendida porque é considerada apenas como teórica. Acredita-se que não há diferença de substância entre sociologia e filosofia ou teoria social. Mas a sociologia não pode existir sem pesquisa empírica. O que tenho visto em alguns intelectuais ou estudantes da América do Sul é antes essa tendência à teoria, sem fatos empíricos. Mas eu não quero generalizar. A sociologia não pode ser feita apenas abstrata e teoricamente. Nas sociedades em que vivemos, existem muitos objetos empíricos realmente excelentes para investigar. Existem muitos problemas políticos concretos. O sociólogo também deve ir em direção à sociedade. Isso é o que é realmente revolucionário. Muitas pessoas acreditam que a teoria é a única coisa importante. Mas a dimensão investigativa é muito importante para desenvolver uma sociologia bem fundamentada.

 

Citando o conceito de compossibilidade de Leibniz sobre o número finito de mundos possíveis, você usa o termo incompossibilidade para limitar o que poderia ser chamado de “fundamentalismo da realidade como construção social”.

Eu peguei o conceito leibniziano. Interessava-me pensar sobre a diferença entre incompossibilidade e impossibilidade. Muitas coisas sociológicas que são consideradas impossíveis, que na minha opinião são possíveis. Podemos dizer que algo que alguém não consegue pensar é impossível. A noção de incompossibilidade é que alguém não pode pensar algo agora porque pensa outra coisa. A técnica consiste no fato de que você não pode ter duas coisas ao mesmo tempo. Dois mundos não podem coexistir ao mesmo tempo, o que não quer dizer que eles não sejam possíveis. Eles simplesmente não são possíveis ao mesmo tempo. Essa forma de pensar é muito útil para a sociologia. Temos que pensar em como podemos trazer este mundo, o que não é impossível. É estar mais aberto à incerteza do real. Temos uma visão mais aberta, somos menos fatalistas.

 

Referiu-se ao caráter de construção social do paludismo na África, quanto tem o coronavírus de um componente de construção social?

Usei esse conceito para pensar sobre a questão da malária. Quando nos deparamos com um problema como o que você está enfrentando, o conceito de construção social é amplamente utilizado. É o debate dominante sobre o social. Tudo é construído socialmente. Mas esta não é a doença construída socialmente. Para os sociólogos, tudo pode ser uma construção social, até mesmo a diferença dos sexos. Mas há um limite. Às vezes chega-se à situação inaceitável de dizer que tal doença não existe, porque é justamente uma construção social. Mas não: aqui estamos diante de algo que existe. O que complica a análise sociológica. A forma como pensamos o coronavírus está ligada a múltiplas interpretações sociais, interações sociais, dispositivos de pesquisa acadêmica, discursos midiáticos, à construção da crise da saúde. Mas isso não significa que o coronavírus não exista. Eu gostaria de tirar essa conclusão. Às vezes, podemos cair nessa tendência. Para o sociólogo, deixe claro que existe algo que é socialmente construído, mas que seria uma verdadeira construção social. Não há nada que não seja socialmente construído, mas que não implique afirmar de forma alguma que não existe.

 

Você dirige o instituto que leva o nome de Marcel Mauss. Como o "Ensaio sobre a dádiva" (1969) para as trocas em sociedades arcaicas pode ser traduzido para as sociedades modernas de hoje?

Mauss faz a pergunta sobre a dádiva. Pode-se pensar que a dádiva é algo que desapareceu com a mercantilização na sociedade moderna. Os termos de troca que agora dominam estão ligados às mercadorias. Mas a dádiva ainda é muito importante nas sociedades capitalistas modernas. Ela tem um poder crítico sobre o capitalismo. Eu vejo isso em Paris. Há pessoas que leram um livro e o largam em algum lugar da rua para que outras pessoas o levem. Também é encontrado em muitas pessoas que prestam serviço. Esse serviço é uma espécie de recusa em converter uma série de coisas em mercadorias. É um meio de resistência ao capitalismo muito forte e que se desenvolve nas sociedades contemporâneas. É um bom modelo de reação ao capitalismo. Trata-se de algo não comercializável, oferecer mercadorias gratuitas. Existe o problema indiscutível de que as doações podem ser recuperadas para mercadorias. Um exemplo pode ser encontrado na França com a empresa Blablacar. É composta por cidadãos comuns que têm seus carros. Se quiser fazer uma viagem, você pode se registrar e fazer uma viagem. Mas essa viagem é paga. Vinte anos atrás, trinta anos atrás, essa troca caronas não existia. O que existia era pedir carona. A carona foi cooptada para uma forma de merchandising. E aqui vemos muito claramente como o capitalismo progride. A extensão da dádiva é uma forma interessante de os sociólogos lutarem contra o capitalismo. Por fim, está longe de ter desaparecido.

 

A que você atribui o surgimento do nacionalismo xenófobo na Europa e que conexões você vê com os nacionalismos de esquerda latino-americanos?

É uma pergunta difícil, porque não sei o suficiente sobre a situação sul-americana. Eu trabalhei neste problema para a Europa, então começarei respondendo o que isso significa na Europa. A União Europeia é baseada em uma modalidade liberal. Sua ideia central é a de um grande mercado comum. A proteção para os trabalhadores vem do Estado-nação e não da Europa, que é vista como uma máquina para desregulamentar e remover a proteção dos trabalhadores. É por isso que eles tendem a apoiar suas nações contra a Europa. Eles esperam que o próprio estado-nação os proteja. Há necessidade de proteção contra os mecanismos de mercado, contra a concorrência que se entende. Quanto mais liberal é a Europa, mais há uma reação nacionalista e xenófoba de quem quer fechar as fronteiras, evitar a competição, contra os imigrantes que vêm trabalhar. O que falta neste esquema é um terceiro elemento, que é a tradição socialista de solidariedade. Uma tradição internacionalista, que visa proteger os trabalhadores. Ou seja, organizar formas de solidariedade e redistribuição em face dos mercados. O problema é que não existe alternativa socialista e ecológica. Obviamente, a situação é muito diferente na América Latina. Existe um mecanismo, porque o peronismo era um meio de proteger os trabalhadores dos mecanismos do mercado. Visto da Europa, a natureza do peronismo é ambivalente porque muitas vezes é entendido como de esquerda. Mas também possui alguns elementos que, no contexto europeu, prefeririam ser atribuídos à direita nacionalista. É uma mistura estranha para os europeus, que se chama populismo. Não sou um especialista no tema, mas vejo que há uma forma de proteção sobre o mercado neste prisma. A pergunta que se deve fazer é o quão internacionalista é esse tipo de proposta. Seria mais desejável, pois pode envolver um projeto de democratização de toda a sociedade.

 

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