O Natal ''irritado'' de Francisco

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05 Janeiro 2018

“Enquanto o planeta disputa Jerusalém, a Igreja de Francisco volta a ser criança e se estende a Belém: para as muitas e anônimas Beléns que despontam da história e desaparecem na memória, fluida, dos contemporâneos, mas encontram abrigo fixo e promessas de florescimento na agenda e no atlas do Romano Pontífice.”

A opinião é de Piero Schiavazzi, professor de geopolítica vaticana da Link Campus University, em artigo publicado no sítio L’Huffington Post, 25-12-2017. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

Eis o texto.

Enquanto o solstício de inverno resplandecia sobre o ouro dos mosaicos, e o cerimoniário espalhava o incenso sobre o altar dos pontífices, Francisco reservou a si mesmo e derramou sobre o mundo, sem poupar, o terceiro presente dos magos, o da mirra.

Na série “cult” e de grande audiência dos Natais televisivos, nunca tinha acontecido que o “verbo” ganhasse corpo e se encarnasse de modo tão concreto e provocativo, sobrepondo aos passos de Maria e José “as pegadas de milhões de pessoas que não escolhem ir embora, mas são obrigadas a se separar dos seus entes queridos, são expulsos da sua terra”.

Bergoglio define-a como “ternura revolucionária”, mas as palavras proferidas no meio da noite atingiram com dureza inédita entre as notícias do momento, despedaçando a trégua eleitoral [na Itália] que acabara de começar e concedendo aos migrantes, imediatamente, “o documento de cidadania”. Retirando simultaneamente a certidão de batismo das democracias cristãs da Europa Oriental, que, nas proclamações do astro nascente, o chanceler austríaco de 30 anos, Sebastian Kurz, recusam as cotas de Bruxelas e fazem do Danúbio a fronteira de um “brexit” espiritual: prenúncio do cisma rastejante entre os dois cristianismos, igualitário e identitário, do papa e dos novos gurus.

Se a política renuncia ou evita, Francisco denuncia e enfrenta. Mais claro, impossível. Confirmando a atitude – hábito a um uso direto, disruptivo das Escrituras, aplicadas aos problemas do momento, do Mediterrâneo ao Rio Grande, de Jerusalém aos Rohingya, sem mediações ou interpretações.

Ad intra e ad extra: no Natal “irritado” de Francisco, sobra para todos. Dentro dos muros, na Urbe, e contra os muros, no Orbe. Do discurso de 21 de dezembro, que projetou sobre a Cúria e sobre o declínio precoce do processo de reforma a sombra do dia mais curto do ano, até a bênção de Natal ao meio dia, que posicionou sobre a Terra Santa o zênite midiático, rejeitando o fato consumado e projetando “a coexistência de dois Estados, dentro de fronteiras concordadas entre si e internacionalmente reconhecidas”.

No seu excursus, Bergoglio assume o olhar das crianças, do buraco negro da África Central, que as sequestra, inocentes, e devolve combatentes, ao céu incandescente da Coreia, onde o rastro luminoso do cometa se confunde com a dos mísseis balísticos.

Enquanto o planeta disputa Jerusalém, a Igreja de Francisco volta a ser criança e se estende a Belém: para as muitas e anônimas Beléns que despontam da história e desaparecem na memória, fluida, dos contemporâneos, mas encontram abrigo fixo e promessas de florescimento na agenda e no atlas do Romano Pontífice. Ou seja, no programa e no organograma de um próximo conclave. Renovando 20 séculos depois da magia e da energia regeneradora do Natal cristão.

Nada de metáforas. Esse é o epílogo geográfico do apólogo evangélico, no horizonte da humanidade globalizada.

Como em um filme de Frank Capra ou em um conto de fadas dos irmãos Grimm, no marco do quinto ano do pontificado, a parábola do papa que veio dos confins do mundo narra derrotas internas e reformas fracassadas, certamente, mas também Cinderelas eleitas como rainhas, imediatamente, calçando o sapato cardinalício e descalçando do cume natalício da árvore hierárquica nomenclaturas por muito tempo intangíveis.

Morelia e Mérida, Les Cayes e San José de David, Bamako e Ouagadougou, Bangui e Santiago de Cabo Verde, Port Louis e Port Moresby, Nuku’alofa e Tlalnepantla, Cotabato e Pakse, Dhaka e Yangon: das areias do Sahel às praias dos mares do Sul, dos desertos que empurram para a fuga os deserdados aos subúrbios das metrópoles que os atraem.

Cidades semidesconhecidas ou ilhas remotas, no fim das listas da notoriedade e da renda, recebem o chamado dos anjos, assim como os pastores, e são admitidas ao presépio de Bergoglio, para contemplar de perto o filho de Deus e se preparar, um dia, para a eleição do seu vigário.

Se a “esfinge” curial – por resignada constatação de Francisco e significativa citação de De Mérode – permanece impassível e aparentemente invencível diante da tentativa de reformá-la ou de limpá-la, “com uma escova de dentes”, é igualmente verdade que a “pirâmide” como um todo, em nível global, está abalada, às vezes derrubada, progressivamente, pela maior redistribuição do poder geopolítico e genealógico da história bimilenar da instituição.

A ponto de nos perguntarmos qual é o objetivo autêntico do papa: entre o alvo imóvel da Urbe, que, de ano em ano, deslegitima e desestabiliza com ironia (um dentista, atendo-nos à célebre comparação do jesuíta De Mérode, observaria que, não conseguindo curar a cárie, é preciso desvitalizá-la e encapsulá-la, para conter o seu dano), e o cenário do Orbe, onde, inversamente, o movimento e a mudança se mostram contínuos e irreversíveis.

Um fio dourado que, de viagem em viagem, através de uma tenaz e sagaz tessitura de nomeações cardinalícias, modificou a pigmentação purpúrea do mapa-múndi e colocou as “Igrejas-crianças” em vantagem sobre Roma e Jerusalém.

Um “código Bergoglio”, que, a partir do obstáculo de Lampedusa e do emaranhado de Bangladesh-Myanmar, leva diretamente ao limiar da Capela Sistina, onde será escolhido o eleito ao sólio, com a bagagem de genialidade e ingenuidade, inexperiência e desenvoltura que o escolhido traz como dote. Enquanto ressoam as palavras do profeta: “Você não é realmente a menor capital... De você sairá um líder que apascentará o meu povo”.

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