04 Junho 2025
No fundo, quem está só nessa questão é o governo Lula e o Congresso – isolados em uma realidade paralela que não considera a importância da existência de uma robusta legislação ambiental e da concreta demarcação dos territórios indígenas. E não se enganem os setores progressistas e os militantes coniventes ao pensarem que esse é o preço necessário a se pagar para evitar a vitória do extremismo. Ademais, tanto o projeto de lei 2159/2021, quanto o projeto de decreto legislativo 717/2024 são veículos do atraso, do autoritarismo e da implosão do Estado Democrático de Direito.
O artigo é de Gabriel dos Anjos Vilardi, jesuíta, bacharel em Direito pela PUC-SP e bacharel em Filosofia pela FAJE. É mestrando no PPG em Direito da Unisinos e integra a equipe do Instituto Humanitas Unisinos – IHU.
“A geração de Greta literalmente acusa os adultos de serem ladrões de futuro”, recorda Ailton Krenak. “Tem acusação mais terrível do que essa?”[1], interpela o pensador indígena. Mais terrível ainda se se considerar que a classe dirigente mundial possui todas as informações sobre a crise ecológica há anos e quase nada de efetivo tem sido feito para frear o colapso socioambiental. É tão difícil compreender que “não há nada mais importante do que a vida”[2]?
Muito já se falou e escreveu nos últimos dias sobre o episódio vergonhoso que aconteceu no Senado. Depois de horas sendo pressionada e atacada por todos os lados na Comissão de Infraestrutura, a Ministra Marina Silva não se calou e enfrentou com coragem as ofensas recebidas. Enquanto isso, os líderes do governo assistiam inertes e coniventes as ofensas inaceitáveis contra uma ministra de Estado. Agiriam assim se o ministro presente fosse Rui Costa (PT-BA) da Casa Civil? Ou no fundo se sentiam incomodados com a firmeza e a coerência da sucessora de Chico Mendes, na defesa intransigente do meio ambiente?
“Somos atingidos pela irrefreável interrogação: Nós humanos, ainda somos humanos, ou vivemos na pré-história de nós mesmos, sem nos termos descoberto como coiguais, habitantes na mesma Casa Comum?”, questiona Leonardo Boff. Nesse sentido, o teólogo comprova por meio de importantes dados que a destruição ecológica serve apenas a uma diminuta elite econômica:
“E mais, quando vemos que os chefes de Estado e os dirigentes das grandes empresas (CEOs) ocultam tais dados ou não lhes dão importância para não prejudicar seus negócios, devemos lhes gritar que eles estão cavando a sua própria sepultura. Pior ainda, quando a Oxfam e outros organismos nos mostram que apenas 1% da população mundial controla praticamente a maior parte do fluxo financeiro e que possui riqueza superior à metade da população mundial (4,7 bilhões) e que, no Brasil, segundo a Forbes, 318 bilionários possuem grande parte da riqueza em fábricas, terras, investimentos, holdings, bancos etc. – em um país em que milhões passam fome e outros milhões se encontram em insuficiência alimentar (comem hoje e não sabem o que comerão amanhã), milhões estão desempregados ou na informalidade”.[3]
Marina, a ambientalista que há décadas vem lutando contra a destruição da floresta, parece estar só em um governo que outrora prometera a proteção do meio ambiente e das minorias. Mas que infelizmente há muito parece ter desistido de se tornar um líder mundial na defesa da Natureza e dos Povos Indígenas. De que adiante ter a melhor ministra do Meio Ambiente da história do país, se os próprios pares a boicotam de dentro da máquina governamental?
Uma das interessantes propostas de Marina era a criação de uma independente e robusta Autoridade Climática, para dotar o país de instrumentos necessários de implementação e fiscalização de medidas de mitigação e resistência à crise climática. Resultado? O projeto ficou parado na antiambiental Casa Civil de Rui Costa. Falta de vontade política, de prioridade ou de efetivo convencimento sobre a centralidade da crise ecológica?
Mesmo com o evidente esgotamento do sistema econômico, há uma carência de políticos com ousadia e sensibilidade suficientes para apontar propostas alternativas. “O capitalismo tem tratado nosso corpo como máquina de trabalho porque é o sistema social que mais sistematicamente faz do trabalho humano a essência da acumulação de riqueza, e que mais precisou maximizar sua exploração”[4], denuncia Silvia Federici. A autora destaca a guerra total que se trava contra a Natureza e critica a ilusão de que a revolução tecnológica das Big Techs será suficiente para reestabelecer a paz:
“Falar de guerra não é assumir uma totalidade original ou propor uma visão idealizada da ‘natureza’; é ressaltar o estado de emergência em que vivemos atualmente e questionar, em uma época que promove a reconstrução de nosso corpo como um caminho para o empoderamento social e a autodeterminação, os benefícios que podemos obter de políticas e tecnologias que não sejam controladas a partir de baixo”.[5]
Como explicar que se conseguiu resistir às boiadas do antiprojeto extremista que antecedeu a atual gestão, mas será em um governo popular que se aprovará o maior retrocesso ambiental em décadas, o famigerado projeto de lei 2159/2021 que praticamente acaba com o licenciamento ambiental? Tem-se o pior e mais retrógrado Congresso da história? Certamente. Isso significa que o governo Lula pode se eximir da sua responsabilidade sobre tal descalabro? De forma alguma!
Por que não se posicionar enquanto governo, clara e peremptoriamente, contra essa tentativa de liberar a destruição ambiental no país, com pronunciamento oficial em cadeia nacional e outros meios de comunicação direta com a população? Por que ainda não houve uma orientação formal para que os ministros favoráveis, no mínimo se abstenham de todas e quaisquer declarações e ações de apoio a tal absurdo? Por que não houve a mobilização de outros ministros e a convocação de líderes partidários ao Palácio do Planalto, inclusive com o envolvimento direto do Presidente da República, para barrar essa pauta-bomba?
Perguntas incômodas e sem respostas por parte do governo que parece jogar toda a responsabilidade para uma solitária ministra do Meio Ambiente. Esconder-se atrás das alegações de se tratar de um governo de coalizão e da inexistência de apoio parlamentar são justificativas insuficientes para a inação governamental em desfavor do meio ambiente. Ora, não seria melhor perder lutando, mas com dignidade, do que participar de negociatas espúrias com os inimigos da Natureza?
Não se trata aqui de falta de meios ou sequer de estratégia de sobrevivência para se evitar o pior – como alguns militantes de esquerda tentam se enganar –, mas sim de escancarada e indecorosa falta de vontade política. E sobre isso é necessário nomear e cobrar. Afinal, qual a legitimidade do atual governo de liderar a COP 30 em meio a tais irresponsabilidades e covardias?
Ou a reunião climática não passará de um encontro de burocratas internacionais e empresários ávidos por aumentar seus lucros? “Como em todas as crises do capitalismo, esta representa um amontoado de oportunidades para os endinheirados, e après moi, le déluge (depois de mim, o dilúvio)”. Nesse sentido acentua Andreas Malm sobre a falta de medidas efetivas e disruptivas[6]:
“A planificação da economia é o tabu definitivo; a planificação do clima é digna de considerações mais aprofundadas, uma ideia aparentada com engenharia genética, sistemas de GPS, dispositivos smart, carne in vitro, guerra de drones e outros elementos naturais da hipermodernidade do capitalismo tardio. O capital fóssil não sobreviveria a uma transição, mas a geoengenharia pode infundi-lo com um novo sopro de vida; o que começou como subsunção real do trabalho precisa terminar como subsunção real da biosfera. Há o sentimento incômodo de que a materialização de uma frota de aviões carregados com enxofre é muito mais provável do que a de um ministério especial para a transição rumo a um futuro de baixo carbono. Hoje é mais fácil imaginar uma intervenção deliberada e de larga escala nos sistemas climáticos do que uma intervenção no capitalismo”.[7]
Como é possível falar em reconhecer o protagonismo dos Povos Indígenas e demais comunidades tradicionais na cúpula de Belém, enquanto há um ataque coordenado no país contra os direitos das comunidades originárias? O mesmo Senado que quis sufocar e colocar Marina no seu lugar – o lugar historicamente subalternizado e explorado dos povos da floresta – aprovou o projeto de decreto legislativo 717/2024, que anula as homologações das Terras Indígenas Morro dos Cavalos (Guarani Mbya) e Toldo Imbu (Kaingang), em Santa Catarina.
Os atingidos não são apenas as centenas de pessoas que vivem nessas localidades e que lutam por esses territórios ancestrais há décadas, mas todas as comunidades indígenas que aguardam o reconhecimento de suas terras tradicionais pelo Estado brasileiro. Isso porque a iniciativa do Congresso pretende sustar o artigo 2º do decreto 1775/1996 e alterar o procedimento administrativo de demarcação de terras indígenas. Mais um golpe mortal infligido aos primeiros habitantes deste país, que só soube lhes perseguir e exterminar com toda a crueldade refinada dos autoproclamados “civilizados”.
O ódio misógino à Marina significa o mesmo ódio à Natureza e aos Povos Indígenas: o ódio dos colonizadores que nunca deixaram de se achar donos de tudo e de todos. Para Federici, o patriarcado nunca tolerou quem se atrevesse a lhe opor resistência e a ex-líder seringueira e os povos originários parecem ser o último obstáculo a ser eliminado:
“No entanto, a abolição da escravidão não pressupôs a desaparição da caça às bruxas do repertório da burguesia. Pelo contrário, a expansão global do capitalismo, por meio da colonização e da cristianização, assegurou que essa perseguição fosse implantada no corpo das sociedades colonizadas e, com o tempo, posta em prática pelas comunidades subjugadas em seu próprio nome e contra seus próprios membros”.[8]
Apesar da colonialidade do poder que não cessa de querer silenciar os descartados do sistema neoextrativista que suga a Natureza, as comunidades originárias não aceitarão passivas o estrangulamento de seus territórios. Recentemente, mais de 68 lideranças indígenas reunidas na aldeia Açaizal, no município de Oiapoque, no Amapá (AP), divulgaram uma dura carta rejeitando a exploração de petróleo na foz do Rio Amazonas. Serão ouvidas ou Brasília só terá ouvidos para os grandes senhores do Amapá?
Cumprirá o governo Lula o direito das comunidades afetadas à consulta livre, prévia, informada e de boa-fé, previsto no Convenção 169 da OIT? Ou agirá como no fiasco socioambiental de Belo Monte, que deixou profundas e tristes marcas na região de Altamira, no Pará? Continuar apostando em petróleo não é a solução! Adiar a descarbonização da economia implica em antecipar o caos ecológico. É inadiável a adoção de políticas ousadas no presente, não em um futuro hipotético e distante, nos termos apontados por Krenak:
“Para começar, o futuro não existe – nós apenas o imaginamos. Dizer que alguma coisa vai acontecer no futuro não exige nada de nós, pois ele é uma ilusão. Então, pode-se depositar tudo ali, como em um jogo de dados. [...] Mas a verdade é que estamos vivendo cada vez mais a projeção de futuros muito improváveis, embora continuemos preferindo essa mentira ao presente. Ao focarmos nesse futuro prospectivo acabamos construindo justamente aquilo que Chimamanda Ngozi nos recomenda evitar: um mundo com uma única narrativa. O risco de projetar um futuro assim é muito grande, pois vem embalado em ansiedade, fúria e uma tremenda aceleração do tempo. Olhar sempre para o futuro, e não para o que está acontecendo ao nosso redor, está diretamente associado ao sofrimento mental que tem assolado tanta gente, inclusive os jovens. É uma experiência que penetra por todos os poros e reflete em nosso estado emocional. O vasto ecossistema do planeta Terra também está sofrendo o estresse dessa aceleração”.[9]
Marina parece estar só e sem apoio político suficiente do núcleo duro do governo, mais preocupado em negociar o apoio dos coronéis da Amazônia e dos senhores do agro. Um governo iludido neste aspecto de considerar “a Terra como mera res extensa e sem propósito, transformada em um baú de recursos, tidos como infinitos, que permitem um crescimento/desenvolvimento também infinito”[10]. Um falso desenvolvimento que não serve ao país, nem ao seu povo ou à humanidade.
Mas, no fundo, quem está só nessa questão é o governo Lula e o Congresso – isolados em uma realidade paralela que não considera a importância da existência de uma robusta legislação ambiental e da concreta demarcação dos territórios indígenas. E não se enganem os setores progressistas e os militantes coniventes ao pensarem que esse é o preço necessário a se pagar para evitar a vitória do extremismo. Ademais, tanto o projeto de lei 2159/2021, quanto o projeto de decreto legislativo 717/2024 são veículos do atraso, do autoritarismo e da implosão do Estado Democrático de Direito.
Na verdade, Marina nunca esteve só. Porque junto com ela estão os Povos Indígenas, os ribeirinhos, os quilombolas, os pequenos agricultores, os movimentos sociais, os ambientalistas, as feministas, os extrativistas, as comunidades eclesiais de base (CEBs), as pastorais sociais e a Rede Eclesial Pan-Amazônica (REPAM), o Conselho Indigenistas Missionário (Cimi) e a Comissão Pastoral da Terra (CPT).
E se existe alguma possibilidade de interromper as violações socioambientais contra a Natureza e os povos originários, a esperança está exatamente na força desses corpos-territórios. Afinal, como diz Federici, não se pode esquecer “o fato de que nosso corpo é um receptáculo de poderes, capacidades e resistências que foram desenvolvidos em um longo processo de coevolução com nosso ambiente natural e em práticas intergeracionais, que fizeram dele um limite natural à exploração”[11].
É por isso que Marina, com seu corpo franzino e aparente fragilidade, causa tanto incômodo aos representantes do pseudodesenvolvimento. Seu corpo-território evoca a ancestralidade dos seringais amazônicos, a capacidade de organização e luta dos movimentos sociais, a fé encarnada de comunidades oprimidas, mas conscientes da possibilidade de libertação. Sua voz fina e assertiva faz tremer os políticos insustentáveis com seus discursos incoerentes, egoístas e imediatistas.
Mesmo quando os senadores e ministros acharem que te encurralaram, com sua soberba típica de macho-destruidores, o grito dos defensores e das defensoras da ecologia integral será o teu grito, Marina. Grite, ministra! Grite pelas crianças indígenas que correm o risco de não ter futuro. Grite pelo Rio Grande do Sul inundado, pelo ar irrespirável das grandes cidades, pelos rios contaminados pelo mercúrio do garimpo ilegal, pelas vítimas dos crimes de Brumadinho e Mariana. Grite por cada um de nós que está sufocado pela ganância do capitaloceno, prestes a engolir os rios e os bosques que ainda restam.
E então o seu grito será o grito de todos aqueles e aquelas que não querem ser cúmplices da destruição. Os que permanecerem omissos e silenciosos já terão escolhido um lado, o lado da extinção final da Casa Comum. Nestes tempos complexos, não há espaço para meias palavras, nem para conciliações inconciliáveis ou cálculos tíbios. Salve Marina e sua teimosa crença na dignidade inalienável da Natureza e dos povos que com ela vivem em harmonia! Salve as filhas da Mãe Terra e as matriarcas da resistência!
[1] KRENAK, Ailton. Futuro ancestral. São Paulo: Companhia das Letras, 2022. p. 106.
[2] Ibidem. p. 104.
[3] BOFF, Leonardo. Cuidar da Casa Comum: pistas para protelar o fim do mundo. Petrópolis: Vozes, 2024. p. 140.
[4] FEDERICI, Silvia. Além da pele: repensar, refazer e reivindicar o corpo no capitalismo contemporâneo. São Paulo: Elefante, 2023. p. 23.
[5] Ibidem, p. 22.
[6] MALM, Andreas. Capital fóssil: a ascensão do motor a vapor e as raízes do aquecimento global. São Paulo: Elefante, 2025. p. 508.
[7] Ibidem, p. 504.
[8] FEDERICI, Silvia. Calibã e a bruxa: mulheres, corpo e acumulação primitiva. São Paulo: Elefante, 2023. p. 422.
[9] KRENAK, op. cit., p. 96-98.
[10] BOFF, op. cit., p. 26-27.
[11] FEDERICI, Silvia. Além da pele: repensar, refazer e reivindicar o corpo no capitalismo contemporâneo. São Paulo: Elefante, 2023. p. 161.