As veias abertas do trabalho escravo no Brasil. Uma chaga do século XXI. Artigo de Gabriel Vilardi

Foto: Ministério Público do Trabalho

08 Mai 2024

No ano em que o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) comemora seus 40 anos de fundação, repensar as relações no campo é fundamental e inadiável. Esse modelo de exploração político-econômica da Casa Comum faliu há muito e o planeta já deu e continua dando inúmeros sinais de colapso. O caos e o estrago das inundações no Rio Grande do Sul são apenas o último grito angustiado da Pachamama.

O artigo é de Gabriel dos Anjos Vilardi, jesuíta, bacharel em Direito pela PUC-SP e bacharel em Filosofia pela FAJE. É mestrando no PPG em Direito da Unisinos e integra a equipe do Instituto Humanitas Unisinos – IHU.

Eis o artigo.

“A história não quer se repetir – o amanhã não quer ser outro nome do hoje -, mas a obrigamos a se converter em destino fatal quando nos negamos a aprender as lições que ela, senhora de muita paciência, nos ensina dia após dia”, adverte Eduardo Galeano (2021, p. 9). Mesmo após quase quatro séculos de escravidão no Brasil, desde a chegada do europeu colonizador até a abolição formal em 1888, pouco se conseguiu enfrentar dessa dolorosa história. O resultado é a presença da chaga da escravidão e seus muitos outros efeitos até os dias atuais.

Os “civilizados” não perderam tempo e logo no começo os indígenas já passaram a ser explorados com crueldade. Sua resistência a esse absurdo sistema de vida, ilógico para os Povos da Abya Yala que tem por princípio o Bem-Viver, lhes acarretou serem estereotipados – o que é reproduzido acriticamente ainda hoje – como preguiçosos ou ruins para o trabalho. Viver para o acúmulo desenfreado de bens desnecessários? Isso só podia ser coisa dos brancos!

Como alternativa, organizou-se o holocausto do tráfico de escravizados do continente africano, em que milhões foram arrancados violentamente de suas terras, culturas e espiritualidades para produzir a riqueza de uma pequena elite estrangeira e nacional. E mesmo diante de toda a brutalidade dos senhores de escravos, houve as mais variadas formas de insurgência, tais com os quilombos, as revoltas e o próprio candomblé – religião vítima de intolerância e muita perseguição. Já dizia o sempre atual Galeano, há mais de 50 anos:

“É a América Latina, a região das veias abertas. Do descobrimento aos nossos dias, tudo sempre se transformou em capital europeu ou, mais tarde, norte-americano, e como tal se acumulou e se acumula nos distantes centros do poder. Tudo: a terra, seus frutos e suas profundezas ricas em minerais, os homens e sua capacidade de trabalho e de consumo, os recursos naturais e os recursos humanos. O modo de produção e a estrutura de classes de cada lugar foram sucessivamente determinados, do exterior, por sua incorporação à engrenagem universal do capitalismo”.[1]

No último dia 22 de abril na sede da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), a Comissão Pastoral da Terra (CPT) lançou o seu indispensável Caderno Conflitos no Campo Brasil 2023, publicação anual que compila pormenorizadamente os dados sobre a violência agrária. Qualquer estudioso sobre o tema ou militante político que se preocupe com a situação tem no relatório, produzido desde 1985, uma fonte autorizada e confiável, elaborado por uma entidade com décadas de experiência e comprometimento com os pequenos agricultores e camponeses.

Conforme os dados divulgados foram resgatados no país, no ano passado, 2.663 pessoas em 251 estabelecimentos rurais. Trata-se do maior número em 10 anos! Nesse sentido, vale reconhecer a preocupação do governo Lula com a recomposição da força de trabalho dos servidores responsáveis pela fiscalização. Após anos de descaso e esvaziamento das equipes, foi autorizada a contratação de 900 auditores fiscais do trabalho, no próximo Concurso Nacional Unificado.

Desde o tempo das capitanias hereditárias seguidas das sesmarias, o Brasil foi dividido entre as poucas e quase mesmas famílias até os presentes dias. Há muito que já se dizia que o maior problema do Nordeste não era a seca, mas a cerca. E isso pode ser estendido para todo o território nacional, em que a concentração fundiária é absurdamente altíssima. Mesmo com toda a tecnologia das últimas décadas, a vida do trabalhador rural pouco mudou nesses séculos de exploração. Por outro lado, os proprietários rurais ficaram cada vez mais ricos, como apontou o estudioso uruguaio:

“Da plantação colonial, subordinada às necessidades estrangeiras e, em muitos casos, com financiamento estrangeiro, provém em linha reta o latifúndio de nossos dias. Este é um dos gargalos de garrafa que estrangulam o desenvolvimento da América Latina e um dos primordiais fatores da marginalização e da pobreza das massas latino-americanas. O latifúndio atual, mecanizado em grau suficiente para multiplicar os excedentes de mão de obra, dispõe de abundantes reservas de braços baratos. Já não depende da importação de escravos africanos nem da encomienda indígena. Funciona com o pagamento de diárias irrisórias, a retribuição de serviços em espécies ou o trabalho gratuito em troca do usufruto de um pedacinho de terra; nutre-se da proliferação de minifúndios, resultado de sua própria expansão, e da contínua migração interna de legiões de trabalhadores que, empurrados pela fome, buscam as sucessivas safras.”[2]

Infelizmente, se consolidou um modelo agroexportador que investe na empobrecedora monocultura em detrimento da agricultura familiar. Essa sim produz os alimentos para a mesa das famílias brasileiras, apesar dos poucos incentivos oficiais, em termos comparativos. Enquanto o Plano Safra 2023/2024 alocou R$ 364,22 bilhões, o maior volume da história em recursos com juros subsidiados para o agronegócio, o Plano Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar recebeu R$ 77,7 bilhões, para atender 3,8 milhões de famílias responsáveis por 77% dos estabelecimentos rurais do país. Como alerta o clássico As veias abertas da América Latina:  

“(...) a monocultura é uma prisão. A diversidade, ao contrário, liberta. A independência se restringe ao hino e à bandeira se não se fundamenta na soberania alimentar. Tão só a diversidade produtiva pode nos defender dos mortíferos golpes da cotação internacional, que oferece pão para hoje e fome para amanhã. A autodeterminação começa pela boca”.[3]

Coronéis e tradings transnacionais detêm enormes fazendas com 30, 50, 100 mil hectares, mas ainda assim alguns se indignam com as comunidades indígenas (com milhares de pessoas!) que pedem a demarcação de seus territórios coletivos. Diferentemente de inúmeros países da Europa e dos Estados Unidos, o Brasil nunca conseguiu realizar a sua reforma agrária. Quando houve uma proposta concreta, logo deram o golpe civil-militar de 1964. Em períodos de extremismos como o que o país vive, apenas mencionar o tema é o suficiente para ser acusado de comunismo ou outro absurdo qualquer. E assim se segue carregando o enorme passivo agrário...

Entre as atividades rurais que mais usaram o trabalho análogo à escravidão estão as plantações de cana de açúcar com 618 pessoas resgatadas em 2023 e cerca de 10 mil desde 1995, com a criação dos grupos de fiscalização. Esse montante só é superado pela pecuária, que apesar de ter tido 156 trabalhadores libertados dessa condição no ano passado, historicamente lidera esse ranking. Como aponta o Caderno de Conflitos grandes empresas nacionais e multinacionais estão envolvidas nesses crimes:

“Em março de 2023, uma operação do governo federal resgatou 212 pessoas que plantavam cana-de-açúcar em fazendas da BP Bunge Bioenergia, joint-venture formada pela trading norte-americana Bunge e a BP, gigante britânica do setor de energia. Também em 2023 foi constatado o uso de mão de obra escrava em uma fazenda paulista fornecedora da usina produtora do Açúcar Caravelas, uma das mais conhecidas marcas do país. No ano anterior, outro caso fiscalizado pelas autoridades, desta vez em Minas Gerais, envolveu uma usina fornecedora da Coca-Cola e dos Postos Ipiranga”.[4]

A Emenda Constitucional 81/2014 estabeleceu, entre outras alterações do art. 243, a previsão de expropriação da propriedade rural e urbana onde for constatada a existência de trabalho análogo à escravidão. Foi um avanço depois de décadas de tentativas frustradas de aprovação, sempre barrada pelos representantes dos proprietários! Todavia, o dispositivo constitucional precisa ser regulamentado por uma lei e transcorridos dez anos nada avançou no Congresso Nacional. Cada dia de atraso no cumprimento da Constituição prejudica o enfrentamento ao trabalho escravo, uma vez que impede a utilização de um poderoso instrumento de coação a tais crimes.

De um Legislativo em que o latifúndio está sobrerepresentado pela poderosa bancada ruralista formada por 300 parlamentares, pouco se pode esperar. Afinal, trata-se de uma frente parlamentar comumente atrelada a interesses que vão da flexibilização da legislação ambiental, passando pelos ataques aos direitos dos Povos Indígenas e quilombolas até o enfraquecimento da proteção trabalhista. Se é verdade que uma parte considerável do agronegócio não compactua com a destruição do meio ambiente, a perseguição dos povos originários ou com o trabalho escravo, por que não pressionam seus representantes a agirem de uma forma mais republicana?

No ano em que o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) comemora seus 40 anos de fundação, repensar as relações no campo é fundamental e inadiável. Esse modelo de exploração político-econômica da Casa Comum faliu há muito e o planeta já deu e continua dando inúmeros sinais de colapso. O caos e o estrago das inundações no Rio Grande do Sul são apenas o último grito angustiado da Pachamama.

“O passado é mudo? Ou continuamos sendo surdos?” provoca Eduardo Galeano (2021, p. 10). O país aprenderá com o recorde escandaloso de trabalhadores reduzidos à escravidão ou continuará buscando o lucro acima de tudo e de todos? Quando se realizará uma justa e ecológica reforma agrária no Brasil? Haverá real e suficiente vontade política dos governos municipais, estaduais e federal, com os imprescindíveis apoios dos Poderes Legislativos, para finalmente decretar emergência climática e adotar um robusto plano de transição para um novo tipo de economia, em que não haja exploração de pessoas nem a destruição suicida do meio ambiente? As veias da América Latina estão há muito abertas e o tempo de reação está se esgotando.

Notas

[1] GALEANO, Eduardo. As veias abertas da América Latina. Porto Alegre: L&PM, 2021. p. 18.

[2] Idem, p.78.

[3] Idem, p. 11.

[4] CAMPOS, André e BARROS, Carlos J. As cadeias produtivas do trabalho escravo em 2023. In: Conflitos no Campo – Brasil 2023. Disponível aqui. Acesso em: 02 maio de 2024.

Leia mais