O sofrimento foi privatizado, diz autor de livro sobre neoliberalismo e depressão social

Fonte: PxHere

10 Mai 2022

 

Recém-lançada pela Apple TV, a série Severance acompanha o dia a dia de algumas pessoas que foram trabalhar em uma companhia que divide a memória dos trabalhadores em dois momentos: quando ele entra na empresa, não se lembra dos desejos e nem da quantidade de horas trabalhadas, não há sofrimento, o trabalhado é transformado em um autômato: o sonho dos arquitetos sociais do neoliberalismo. Não há conexão entre a vida social e o trabalho.

 

Mas, enquanto a eliminação do sofrimento e da memória da classe trabalhadora ainda reside apenas na esfera da ficção científica, no campo da vida social o fato é o aumento constante de pessoas com depressão ou algum distúrbio psíquico. Para os médicos pesquisadores, as doenças psíquicas, com destaque para a ansiedade e depressão, são o mal do século XXI.

 

De acordo com a Pesquisa Vigitel 2021, do Ministério da Saúde, em média 11,3% dos brasileiros relatam ao médico sintomas que formam o diagnóstico de depressão. O estudo foi realizado em 2021 e divulgado neste mês. O percentual do Vigitel 2021 é maior do que a média apontada pela Organização Mundial da Saúde (OMS) para o Brasil, de 5,3%. O Vigitel é um estudo anual sobre a saúde dos brasileiros e pela primeira vez trouxe dados sobre a depressão. A pesquisa Vigitel revela que a incidência de pessoas com depressão, em média, superou a de diabete (9,1%), doença crônica considerada muito comum.

 

O estudo também revelou que a frequência de adultos com diagnóstico médico de depressão variou muito entre as capitais: 7,2% em Belém a 17,5% em Porto Alegre. As mulheres foram as mais afetadas com a doença: 14,7%. Entre os homens, o percentual ficou em 7,3%.

 

Em entrevista à Fórum, o historiador e pesquisador (UFPE) Heribaldo Maia, que está lançando o livro Neoliberalismo e Sofrimento psíquico (Ruptura Editorial), considera que o número de pessoas com depressão apresentado pelo Ministério da Saúde está defasado e que, apesar de alarmante, deve ser maior. Para o autor, esse fenômeno da depressão está diretamente conectado com o atual momento político e histórico do Brasil, mas também com o processo do neoliberalismo enquanto modelo de gestão que corroeu as políticas de solidariedade social.

 

“O neoliberalismo é um sistema especialmente cruel. E aqui há um outro ponto: seja você de esquerda, comunista, socialista, anarquista, social-democrata, centro-esquerda, centro, direita, bolsonarista, fascista, nazista ninguém vai dizer: “eu sou contra a liberdade”, a priori todos são a favor da liberdade, estão lutando por liberdade... o Monark fala de liberdade, o Bolsonaro diz que defende a liberdade, mas, que tipo de liberdade a gente está falando?”, questiona Heribaldo Maia.

 

A entrevista é de Marcelo Hailer, publicada por RBA, 06-05-2022.

 

Eis a entrevista.

 

Segundo levantamento do Ministério da Saúde, a depressão já superou, no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS), o número de pessoas com diabetes. Como você avalia tal quadro?

 

Se a gente pegar outros relatórios de nível mundial esse número deve ser muito maior. Na Inglaterra a depressão é a doença com o maior número de afastamento no mundo do trabalho. É também a que mais causa invalidez.

 

Esse cenário tende a se espalhar para outros países. A chegada disso no Brasil, a consolidação desse tipo de dado no Brasil não é de espantar. O Brasil é o segundo país das américas em número de ansiosos, só fica atrás dos Estados Unidos. O Brasil também tem um número muito alto de depressivos, é um dos maiores consumidores de Rivotril no mundo.

 

Muito provavelmente esses dados dos Ministério da Saúde ainda estão subestimados. Acho que ainda há uma demanda reprimida muito grande se a gente levar em conta o sucateamento da saúde pública, especialmente das políticas públicas de saúde mental, que há um sucateamento enorme. O resultado desse relatório do Ministério da Saúde era previsível, mas ele ainda não revela uma demanda total.

 

No ranking da OMS já era um número muito alto, mas esse aumento é muito alarmante. E não é à toa esse aumento se dar na atual situação política e econômica em que o Brasil está. Nós temos a impressão de que o sofrimento é algo muito particular, individual, do ser humano porque, em última instância, se você está sofrendo, se eu estou sofrendo, somos nós enquanto indivíduos que sentimos esse sofrimento, então dá a dimensão de que é algo muito subjetivo e privado.

 

Mas, o sofrimento, por ele ser expresso diferente do que certa neurociência tenta colocar, outros neurocientistas apontam o quanto que o sofrimento mental tem relação com o campo social, com o campo da linguagem, da cultura, da economia, da política, enfim, de todo um campo que está em volta de nós. Ele determina como a gente sofre.

 

Por exemplo, se eu estou com amidalite eu faço exame de imagem, o médico olha e vai definir precisamente quais são os procedimentos através de um exame de imagem onde o paciente não precisa falar nada. O sofrimento mental tem uma dinâmica que as pessoas precisam falar o que elas sentem e na medida que você precisa falar algo, você está intermediado por questões morais, éticas, que definem um pouco como você vai relatar esse sofrimento.

 

Nos últimos anos a gente acompanha a corrosão do poder de compra das pessoas, corrosão da expectativa da vida familiar, então o pai e a mãe de família não têm certeza se os filhos terão uma vida melhor da que eles tiveram. A quebra desse horizonte, a quebra das políticas de solidariedade e isso é fundamental para a questão da saúde mental. A gente viu a corrosão da solidariedade, que está ligada às políticas de pleno emprego, de renda, de acesso à saúde, acesso à educação, acesso à capacidade das pessoas terem de planejar a sua vida e ter um suporte para que esse planejamento não caia em um discurso abstrato e de um coach.

 

Há uma tentativa de individualizar uma coisa que é social.

 

Isso. Tanto que o termo depressão vem da economia para a saúde: quando uma economia vai mal, isso é chamado de depressão. Hoje o pessoal chama de recessão.

 

O campo da saúde mental captura essa linguagem, que é econômica para descrever um fenômeno psicossocial que é: as pessoas tentam planejar as suas vidas, tentam construir um relato sobre quem elas são, mas elas não têm condições de garantir que esses planejamentos e esses relatos sejam reconhecidos socialmente, tenham efetividade social e tenham capacidade de realização. Ou seja, cria-se uma depressão em relação a imagem, é uma espécie de cansaço de si mesmo. Você tenta se construir enquanto sujeito e não consegue.

 

Nós vivemos um tempo em que boa parte de nosso dia se dá nas redes sociais mediados por avatares, acredita que isso pode ter relação com o aumento de depressão no Brasil?

 

É difícil a gente definir qual é o impacto das redes sociais em relação ao número do relatório do Ministério da Saúde, porque a gente ainda não tem com precisão a qualidade da internet e qual é a capilaridade dessa internet na vida da maioria dos brasileiros.

 

Mas uma coisa é certa: em boa parte dos centros urbanos muita gente tem acesso à internet, muita gente tem acesso às redes sociais. E é óbvio, a rede social termina potencializando esse tipo de sociedade que tu me perguntas, que é a sociedade do desempenho, que tem uma característica muito importante.

 

Se a gente tomar como padrão a sociedade dos nossos avós nos anos 1950/1960 você tinha pessoas que entravam no emprego, passavam a vida toda trabalhando naquele emprego, elas sabiam muito bem o que tinham que fazer: o homem tinha que prover a casa, a mulher tinha que ser uma dona de casa, tinha que fazer isso e aquilo, padrões de comportamento definidos e muito rígidos. isso não significa que era uma sociedade melhor do a que nós temos hoje, significa apenas que nós passamos por uma transformação no modo como nós organizamos as relações humanas.

 

Essas transformações passam por coisas diferentes: reestruturação do mundo do trabalho, por exemplo, você vê muitas pessoas dizendo “você tem que ser um trabalhador flexível”, “se adaptar em várias funções”, “não pode se acomodar em seu emprego”. Hoje em dia quando você vê uma pessoa trabalhando no mesmo emprego por 10 ou 15 anos sem ter uma promoção você já começa a achar a pessoa acomodada.

 

Essa é a primeira mudança: a concepção do que é um bom trabalhador. O trabalho tem um papel central nesse aspecto de reconhecimento social e subjetivo, na forma como a gente se enxerga no Outro. O outro aspecto é a mudança política: a gente saiu de um capitalismo do século XX, um capitalismo onde a intervenção do Estado nas instituições de solidariedade social acontecia: seguridade social, saúde pública universal, educação pública universal, políticas de moradia etc. para um tipo de gestão do Estado neoliberal inaugurada com a tríade Pinochet, Thatcher e Reagan.

 

Essa tríade inaugura um modelo de gestão do Estado que é perpassada pela ampliação da esfera do mercado para todas as outras esferas da vida social, proteção da esfera do mercado. Ou seja, não é que o neoliberalismo é um Estado mínimo, ele é um estado que defende um certo tipo de intervenção. Os neoliberais atacam as intervenções do tipo de solidariedade social.

 

A ideia central é: você destruindo essas instituições e aparatos de solidariedade você produz uma competição. Nós competimos entre nós para tentar sobreviver no mundo. Trata-se de uma luta de todos contra todos, uma espécie de "darwinismo social". Se você não tem um campo de seguridade social, você obriga as pessoas a terem de batalhar pela sobrevivência. Você limita a vida das pessoas ao mero sobreviver.

 

O terceiro ponto é uma mudança cultural. Há uma mudança e isso fica muito explícito na propaganda. Na propaganda dos anos 1950 era o filho, no Dia das Mães, dando um liquidificador pra mãe, cenas com o homem trabalhando, a mulher em casa, etc. Hoje o marketing mudou e segue a linha do "fala você mesmo", na ideia de que você pode fazer acontecer, quando na prática as pessoas não conseguem ser quem elas são, quem elas queiram ser espontaneamente. Isso é o imperativo ético que vai permeando a sociedade.

 

A junção desses três fatores produziu uma sociedade que não é mais controlada por uma "instância externa". Se nós fracassamos na empreitada de eu ter a minha própria identidade e viver bem com ela, porque afinal de contas "nada é impossível"... o reverso dessa medalha de toda essa consequência é justamente uma depressão, ou seja, você cria uma imagem de que é possível você se construir e ser quem você quer, só que essa imagem é frustrada por um mundo, e isso não nos contam, que não dá pra todo mundo ser quem você quer ser. Na verdade, esse mundo elimina a maior parte das pessoas. Essa é a lógica desempenho.

 

Sair do neoliberalismo é um dos remédios para nos curarmos dessa depressão social?

 

O sofrimento tem um aspecto social, e o social influencia no sofrimento. A gente também tem que entender por outro lado que, viver é também lidar com uma parcela de dor e sofrimento. Isso é algo inescapável, da essência humana.

 

Existe uma dimensão social do sofrimento, uma dimensão subjetiva do sofrimento, uma dimensão química/orgânica do sofrimento, biológica, mas existe uma dimensão social e essa dimensão a gente pode atacá-la enquanto sociedade.

 

O problema é que a gente está em uma sociedade em que tanto o sofrimento individual como a gramática psiquiátrica, como também as políticas de saúde pública voltada para o trato da pessoa em sofrimento, são políticas que individualizam e silenciam esse aspecto do sofrimento.

 

Há uma privatização do sofrimento. O aspecto social é recalcado, ele é jogado para debaixo do tapete. O sofrimento, por possuir esse aspecto social, também possui um aspecto crítico: as pessoas podem associar o seu sofrimento aos problemas sociais e isso pode gerar um problema político. Isso pode gerar uma capacidade maior das pessoas se organizarem politicamente.

 

Historicamente, há movimento que transforma o sofrimento subjetivo em luta política: o movimento por direitos civis nos EUA, a luta anticolonial em África, ou seja, havia uma sensação de injustiça que provocava sofrimento e partir disso se organiza uma luta política. Nesse processo há uma dupla dimensão: a primeira é resgatar esse aspecto social do sofrimento que é colocado para debaixo do tapete.

 

O outro ponto é: de fato, o neoliberalismo é um sistema especialmente cruel. E aqui há um outro ponto: seja você de esquerda, comunista, socialista, anarquista, social-democrata, centro-esquerda, centro, direita, bolsonarista, fascista, nazista ninguém vai dizer: “eu sou contra a liberdade”, a priori todos são a favor da liberdade, estão lutando por liberdade... o Monark fala de liberdade, o Bolsonaro diz que defende a liberdade, mas, que tipo de liberdade a gente está falando?

 

Os neoliberais, entre eles o Hayek (Friedrich Hayek, economista e considerado o fundador do pensamento neoliberal/1899-1992), vão dizer que as pessoas têm de ser livres para, inclusive, morrer de fome. O Hayek vai questionar: é melhor você morrer de fome em um país livre ou viver em um país com pleno emprego, mas com forte intervenção do Estado? Para o Hayek, apesar da existência da seguridade social, esse mundo é pior, pois você não é livre.

 

A política também é a disputa pelo significado de alguns conceitos (liberdade, justiça etc.) e isso tem implicância direta na saúde mental. A forma como a gente sofre está ligada com a forma de vida da gente, ou seja, esse tipo de liberdade neoliberal, a filosofia deu nome para isso, a “liberdade negativa”, onde as pessoas acham que são livres para fazerem o que elas querem. Esse tipo de liberdade que circula leva, desde Hegel (Georg Hegel, filósofo referência na teoria da dialética/ 1770-1831), a esse diagnóstico. Ele já tinha intuído isso no início do século XIX quando ele critica o liberalismo.

 

Ou seja, ele já tinha intuído que modelo de liberdade se generalizado pode provocar pressões subjetivas que joga a pessoa numa espécie de incerteza completa. A pessoa não consegue falar sobre si, agir sobre si, pois ela não tem condições sociais para isso. Ou seja, nós somos seres sociais, nós precisamos de uma dinâmica social para que a gente realize as nossas potencialidades, realize as nossas capacidades...fora que ninguém pode ter a sensação de bem-estar morrendo de fome.

 

Se Hayek diz que as pessoas podem ser livres para passar fome, o mesmo não se dá para a saúde mental. Não dá para a pessoa ser feliz vendo o seu filho passando fome, sem a certeza de que amanhã vai ter comida na mesa da sua família. Isso produz sofrimento psíquico e um campo de ansiedade social gigantesco.

 

Em um processo de desemprego enorme como nós estamos vivendo e você corta dinheiro do SUS, corta dinheiro da educação, do ensino superior, da pesquisa etc., as pessoas olham e se sentem desamparadas e esse desamparo potencializa essa sensação de incerteza que é típica desse modelo de liberdade que o neoliberalismo produz.

 

Nós temos que combater o neoliberalismo não somente na sua instância política e imediata, mas também em sua concepção ético-política, ou seja, combatê-lo naquilo que ele impõe como modelo de vida, modelo de amor etc. Mas derrotar o neoliberalismo não significa acabar como sofrimento, mas significa colocá-lo em outro patamar de problema.

 

Leia mais