No emaranhado das teias da vida. Artigo de Faustino Teixeira

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09 Abril 2022

 

"A 'textura do mundo' é modelada pelo 'emaranhamento de trilhas entrelaçadas'. Qualquer ideia de superioridade não passa de uma ilusão, o que não significa negar o valor das singularidades. Não estamos à parte, mas somos parte do todo", escreve Faustino Teixeira, teólogo, colaborador do Instituto Humanitas Unisinos - IHU e do canal Paz Bem.

 

Eis o artigo.

 

Estudando aqui os livros de Tich Nhat Han, para um curso que estou dando na Vozes, deparo-me com questões que estão em profunda sintonia com os estudos que venho fazendo, como, por exemplo, os desenvolvidos por Emanuelle Coccia [1].

 

A ideia de que nascimento e morte estão sempre relacionadas a movimento. Coccia sublinha que "nascer significa esquecer o que já fomos antes" [2]. Nascer não é novidade, mas apenas o "acrescentar um elo na corrente de transformação da vida". As espécies existentes não são senão “metamorfose de todas aquelas que vieram antes” [3]. A metamorfose é, fundamentalmente, “essa potência de todo ser vivo de chocar em seu seio a capacidade de fazer variar a vida que o anima” [4]. Os seres vivos, em sua singularidade, expressam "a vida do planeta inteiro, passado, presente e futuro" [5]. Cada nascimento, diz Coccia, é a "penetração em um corpo estranho" [6].

 

Levando a sério o que o papa Francisco diz na Laudato Sì’, de que todos somos terra e que nosso corpo "é constituído pelos elementos do planeta" [7], somos provocados a superar o mundo das superfícies e compreender que nós mesmos não somos diferentes de tudo aquilo que nos rodeia. Estamos num emaranhado de laços que configuram uma irmandade cósmica, ou um inter-ser, como gosta de dizer Tich Nhat Hanh [8]. A “textura do mundo” é modelada pelo “emaranhamento de trilhas entrelaçadas” [9]. Qualquer ideia de superioridade não passa de uma ilusão, o que não significa negar o valor das singularidades. Não estamos à parte, mas somos parte do todo.

 

Assim como o nascimento não é o começo, a morte não é também o fim. O "cadáver" não está isolado dos outros seres vivos. Ele também entra, de outra forma, na ciranda da vida [10]. A ressurreição pode ser vista como uma "distorção" dessa compreensão mais ampla, quando deslocada desta perspectiva de inter-relação.

 

 

Como mostra Coccia, no cadáver também brilha a vida, sob outra forma. Ele diz: "Afirmar que não há nada depois da morte, que a vida que anima um corpo termina com a transformação deste último, significa pronunciar um ato de fé que pretende reinscrever a subjetividade do ser vivo na imagem que nós nos fazemos do corpo humano" [11].

 

Ainda seguindo a reflexão de Coccia: "É fácil imaginar a continuidade material do universo: não temos problema nenhum em admitir que a nossa carne vem de outro lugar, que habita este planeta há muito mais tempo do que nosso nascimento. Todos os nossos átomos deram um corpo a milhares de vida antes das nossas - humanas, vegetais, bacterianas, virais, animais - e darão realidade a outras numa dança que nunca poderá ser interrompida".

 

Por isso Gilberto Gil contestou Caetano Veloso, quando na oração ao tempo disse que nós sairemos do "círculo do tempo", e que "não serei nem terá sido". Para Gil, diversamente, o que vai ocorrer é uma "transformação": a transformação das "velhas formas do viver". Ainda melhor: "Tudo permanecerá do jeito que tem sido, transcorrendo, transformando, tempo e espaço navegando todos os sentidos" [12].

 

O mestre zen Tich Nhat Han trabalhou o tema num livro maravilhoso: Sem morrer, sem temer [13]. Com base na tradição budista, sublinha que a natureza da pessoa é, de fato, "uma natureza sem nascimento e sem morte" [14]. Se você perde uma pessoa amada, diz o suave monge, basta caminhar em meditação, e olhar em profundidade para poder identificar a pessoa em "todas as folhas, pássaros e gotas de orvalho" [15]. Os nossos amados permanecem sempre conosco. Em verdade, nunca há realmente morte, mas continuação [16].

 

Na verdade, como diz Thay, “nascemos da Terra e retornaremos à Terra”. E continua: “Em vez de buscar um outro lugar que nem sequer estamos seguros que exista, podemos aceitar este lugar como a nossa pátria” [17].

 

É verdade que usamos o termo “morrer”, mas em realidade isto não é correto [18]. O suave mestre dá o exemplo da nuvem, que em verdade não desaparece, mas ganha outras formas: neve, água, oceano, chuva etc. Como diz: “Se olhamos a fundo a natureza de uma nuvem vemos que é impossível para uma nuvem morrer...”.

 

Para Thay, todos os fenômenos, "inclusive nós mesmos, são compostos. Somos constituídos de outras partes. Somos constituídos de nossos pais e mães, avôs e avós, do nosso corpo, sentimentos, percepções, formações mentais, da terra, do sol e de inúmeros elementos que não são nós mesmos". Em verdade, "tudo o que já existiu, existe ou existirá é interconectado e interdependente" [19].

 

Esse é um tema essencial do Budismo, também abordado por Thay: a originação interdependente (pratytyasamutpada). Em seu livro, Carta de amor à mãe Terra (2013), Thay nos diz que essa foi a primeira intuição de Buda. Não há início nem fim, criação ou destruição. “Milhares de condições se combinam para que nos manifestamos desta forma, surgem depois outras condições e então nos manifestamos de forma diversa” [20].

 

O professor Clodomir Andrade, aqui do nosso Programa de Pós-Graduação em Ciência da Religião, escreveu um belo livro sobre o Budismo [21], onde aborda com felicidade o tema:

 

A originação interdependente constitui “o núcleo central ao redor do qual gravitava o chamado Buddhadharma (o ensinamento de Buda) e que segundo ele próprio era de difícil compreensão e aplicação”. Como indica Clodomir, “o conceito indica que “as coisas, sejas elas o que quer que sejam e seja em que dimensão operarem, não podem ser compreendidas de forma separada de todo um concerto, de todo um conjunto” [22].

 

Ligado intimamente a este conceito, de interdependência ontológica, a ideia de impermanência [23] e de inexistência de uma substancialidade ontológica em nenhum ser, de forma autônoma e não relacional: “é a vacuidade de uma suposta substância que caracteriza de forma mais apropriada tanto ´existência` quanto os indivíduos” [24].

 

O suave monge vem em nossa ajuda para o delineamento de uma espiritualidade da Terra: por exemplo, o significado que ele concede o “Tocar a Terra”. Num belo poema, ele diz:

 

“Ande como se estivesse beijando a Terra com seus pés,
como se estivesse massageando a Terra.
As suas pegadas serão como marcas de um selo imperial
chamando o agora de volta ao aqui;
para que a vida esteja presente;
para que o sangue traga a cor do amor ao seu rosto;
para que as maravilhas da vida se manifestem,
e todas as aflições sejam transformadas em paz e alegria.”

 

Tocamos a Terra, diz Thay, e assim superamos a ideia de estarmos dela separados: nós somos a Terra e fazemos parte da Vida [25].

 

 

Quando caminhamos sobre a Terra, não estamos pisando em algo inabitado ou imóvel. De fato, “em cada grão de pó ou de areia existem inumeráveis bodhisattvas. Quando caminhamos conscientemente, os nossos pés entram em contato com o grande bodhisattva que é a Mãe Terra” [26].

 

Enquanto caminhamos, podemos dizer: “Amo a Terra, sou enamorado da Terra”. [27]

 

“Com cada passo retorno à Terra
Com cada passo retorno à minha Fonte” [28]

 

Thay nos conscientiza de que a verdadeira mudança só ocorre quando nos enamoramos por nosso planeta [29].

 

E quando também rompemos com o antropocentrismo teleológico, ou seja, aquele ingenuidade que nos faz considerar os humanos como patrões do universo [30].

 

O grande mestre Dôgen nos ensinou isto de forma maravilhosa em seu Shôbogenzô:

 

Ele nos diz que graças aos santos e sábios as montanhas se realizam como presença [31].

 

E ainda: “Aqueles que não têm Olho para ver as montanhas, não as percebendo conhecendo ou vendo, não entendem o princípio do caminho”. Aqueles que colocam em dúvida o movimento das montanhas, colocam em dúvida o seu próprio movimento, o caminho de si mesmo.

 

Na antropologia, Tim Ingold mostrou isto claramente, quando trata do emaranhamento do ser humano com toda a realidade:

 

Ele diz que onde quer que haja vida, há movimento: o sol, as árvores, os ventos estão vivos e se movem [32]

 

Tudo está envolvido num rebuscado emaranhado, num complexo tecido de nós. Um entrelaçamento que constitui a “textura do mundo” [33].

 

 

Trata-se de um emaranhamento que envolve uma linda ressonância. Como diz Dôgen: “Uma flor eclode, e o mundo se levanta” [34].

 

Fala-se em “espiritualidade da ressonância”

 

Retomando o nosso suave monge, podemos com ele entender que a Terra é viva. Diz ainda que “grande parte de nosso medo, da separação, do ódio e da raiva derivam da ideia de que estamos separados do planeta. Não basta salvar uma árvore, diz Thay, é necessário 'modificar a nossa relação com a Terra'” [35].

 

Em sua linda carta de amor ao planeta, Thay fala de sua “reverência” [36] à Terra:

 

És a grande Terra, És Terra, És Gaia, esse belíssimo planeta azul. És o bodhisattva que renova a Terra” [37].

 

Notas: 

 

[1] Emanuelle Coccia. Metamorfoses. Rio de Janeiro: Dantes, 2020.

[2] Ibidem, p. 24.

[3] Ibidem, p. 15.

[4] Ibidem, p. 80.

[5] Ibidem, p. 31.

[6] Ibidem, p. 32.

[7] Papa Francisco. Carta encíclica Laudato si. Sobre o cuidado da casa comum. São Paulo: Paulinas, 2015, n. 2.

[8] Tich Nhat Hanh. Caminhos para a paz interior. 11 ed. Petrópolis: Vozes, 2021, p. 91-95.

[9] Tim Ingold. Estar vivo. Ensaios sobre movimento, conhecimento e descrição. Petrópolis: Vozes, 2015, p. 120-121.

[10] Emanuelle Coccia. Metamorfoses, p. 124.

[11] Ibidem, p. 124.

[12] Carlos Rennó. Gilberto Gil. Todas as letras. São Paulo: Companhia das Letras, 2003, p. 344-345.

[13] Tich Nhat Hanh. Sem morrer, sem temer. Sabedoria confortante para a vida. Petrópolis: Vozes, 2020.

[14] Ibidem, p. 17.

[15] Ibidem, p. 17.

[16] Ibidem, p. 34.

[17]Thich Nhat Hanh. Lettera d´amore alla madre Terra. Milano: Garzanti, 2016, p. 40.

[18]Ibidem, p. 41. []

[19] Tich Nhat Hanh. Sem morrer, sem temer, p. 23.

[20] Thich Nhat Hanh. Lettera d´amore alla madre Terra. Milano: Garzanti, 2016,p. 42.

[21] Clodomir Andrade. Budismo e a filosofia indiana antiga. São Paulo: Fonte Editorial, 2015. Ele também publicou pela Vozes o livro: Budismo em sete lições.

[22]Clodomir Andrade. Budismo e a filosofia indiana antiga, p. 63.

[23]Mujô, Anytya.

[24]Ibidem, p. 64.

[25] Thich Nhat Hanh. Lettera d´amore alla madre Terra, p. 59.

[26] Ibidem, p. 32-33.

[27] Ibidem, p. 33.

[28] Ibidem, p. 34.

[29] Ibidem, p. 21.

[30] Ibidem, p. 78.

[31] Maître Dôgen. Shôbôgenzô. Tome 1 (Sansuikyo – Montanhas e rios como sutras). Paris: Sully, 2005, p. 119.

[32] Tim Ingold. Estar vivo. Ensaios sobre movimento, conhecimento e descrição. Petrópolis: Vozes, 2015, p. 122-123.

[33] Ibidem, p. 120-121.

[34] Maître Dôgen. Shôbôgenzô. Tome 1, p. 222

[35] Thich Nhat Hanh. Lettera d´amore alla madre Terra, p. 9

[36] Algo que foi lembrado belamente aqui no Brasil por Ailton Krenak: “a falta de reverência que temos o tempo todo com as outras companhias que fazem essa viagem cósmica”: Ideias para adiar o fim do mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 2019, p. 31,

[37] Thich Nhat Hanh. Lettera d´amore alla madre Terra, p. 65. Thay nos recorda aquelas fotografias da Terra feita pelos astronautas em 1969, e que também encantaram Caetano Veloso: aquela imagem esplêndida: Ibidem, p. 37.

 

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