Onlife: tempos, espaços e implicações sociais e no mundo do trabalho. Entrevista com Luciano Floridi

Foto: Ryan Lee | Flickr CC

02 Dezembro 2021

 

Para compreender o presente e o futuro do smart working, é preciso olhar para o modo como essa modalidade de trabalho se relaciona com a sociedade, as tecnologias e os desejos das pessoas.

 

Sobre esse tema, a revista WeEconomy, novembro/2021, entrevistou Luciano Floridi, filósofo italiano e professor de Ética da Informação na Universidade de Oxford.

 

A tradução é de Moisés Sbardelotto.

 

Eis a entrevista.

 

As organizações estão experimentando uma reconfiguração do seu habitat natural, que inclui o escritório e os horários de trabalho. O que essa transformação envolve?

 

Nos últimos dois anos, vivemos uma reestruturação completa das nossas experiências. Do meu ponto de vista, ocorreram três grandes transformações concatenadas:

 

1) demos o salto definitivo para o onlife, um ambiente híbrido em que não existem mais barreiras entre físico e virtual, online e offline;

2) esse ambiente mudou o nosso modo de viver o tempo;

3) o tempo – investido pela mudança mais importante – reconfigurou os espaços.

 

Juntas, essas três passagens têm profundas implicações culturais. Porque todos os rituais comunitários da modernidade funcionaram graças a uma “localização interativa”. Até meados dos anos 2000, foi o espaço que nos permitiu viver o tempo social. Pensemos na missa: ela ocorre em tempos específicos, porque, para se encontrar e interagir, as pessoas precisam estar no mesmo espaço ao mesmo tempo. Essa sincronização alcançou o seu ápice na segunda metade do século XX, quando o relógio social atingiu a perfeição: então, todo ritual nosso era marcado no espaço-tempo: horário escolar, horário no escritório, fechamento das lojas, fins de semana ou férias de verão. São aspectos que dizem respeito também aos escritórios das empresas, nascidas para viver em uma fisicidade analógica, porque, na ideia de tempo social do século XX, a coordenação dos recursos tinha que ocorrer por meio da sincronização, estando todos no mesmo espaço.

 

Com o digital, muitas vezes podemos abrir mão de tudo isso: não é mais importante que algo seja feito junto com os outros ao mesmo tempo. Hoje é possível coordenar fluxos operacionais com formas de controle que não requerem a localização em um espaço pré-estabelecido nem a fisicidade. Além disso, não é mais necessário verificar se o cronograma temporal das atividades é respeitado.

 

Por outro lado, é importante supervisionar a subdivisão das tarefas, mesmo quando a sua execução ocorre em níveis temporais diferentes, em lugares diferentes. Em síntese, para dialogar e trocar informações com um colega, não há mais a necessidade do escritório, e, portanto, abrem-se novas possibilidades para reestruturar o tempo de trabalho.

 

Na sua opinião, o que aprendemos com o smart working de emergência que vivemos? E qual pode ser o futuro dessa modalidade de trabalho?

 

Durante a pandemia, houve uma remotização do trabalho. Isso é muito diferente do smart working, que implica uma redefinição da produção, dos papéis e das relações entre os trabalhadores. Vivemos uma forma de adaptação necessária, porque a Covid-19 nos pegou de surpresa, mas hoje temos que repensar com calma a nova modalidade de trabalho.

 

Um dos elementos centrais do smart working é trabalhar sobre os deliverable, sobre os projetos, e não mais sobre as tarefas individuais, porque, como mencionei, os horários fixos de trabalho muitas vezes não são necessários. E pensar além da remotização também significa tomar consciência das atividades que sempre precisarão da presença física.

 

Na minha experiência, o ensino está entre estas, porque precisa de feedbacks imediatos, não só visuais ou auditivos, mas também comportamentais. Por exemplo, presencialmente, posso entender instantaneamente se um estudante está cansado e é preciso parar, se alguém não está acompanhando e devo retornar a um ponto que ficou pouco claro. Considerando essas variáveis, cada instituição e cada empresa poderá ter um smart working diferente, que também muda de acordo com a própria maturidade.

 

O smart working, de fato, se baseia em um baixo nível de controle, um enorme nível de autonomia dos indivíduos e, portanto, uma ótima coordenação, pois quanto mais um sistema é distribuído, maior deve ser a coordenação das suas partes. O ponto sobre o qual ainda temos que nos interrogar é: o que acontece se um projeto gerido com o smart working não funciona? E quando os prazos de entrega não são respeitados? É uma questão de accountability, que, se não for abordada, leva a enormes riscos de produtividade.

 

Então, o que pode ajudar as organizações a lidarem com o smart working? Elas devem se tornar menos hierárquicas e descentralizadas?

 

Acho que estamos caminhando nessa direção. E será uma transformação mais fácil se houver níveis de coordenação bem definidos que, porém, não podem se basear nos modelos tradicionais, nascidos como imitação das hierarquias militares. Aqui, os ritmos das atividades são marcados e coordenados em uníssono, com uma linha de comando que se encarrega de fazer as coisas funcionarem. Hoje, essa abordagem mostra todos os seus limites: não é flexível o suficiente para se adaptar à velocidade das mudanças nas quais estamos imersos. Já a descentralização dá agilidade aos processos. Mas a agilidade sem coordenação é desastrosa: todos os colaboradores correm o risco de ir aonde querem e quando querem, independentemente das necessidades dos negócios.

 

Além disso, os modelos flat funcionam muito bem com equipes pequenas, nas quais o nível de responsabilização é mais fácil de gerir e a comunicação não se transforma em um overhead insustentável, mas se tornam ineficientes à medida que o número de pessoas nos grupos de trabalho aumenta. Acima de um certo limiar, uma especialização das tarefas é inevitável. É por isso que, mesmo em uma organização de médio porte, a hierarquia é essencial no seu papel de coordenação.

 

Acredito que, no futuro, vão se afirmar modelos organizacionais híbridos, dotados de uma estrutura hierárquica e estratificada, capaz de coordenar subsistemas planos. Vamos imaginá-la como uma rede multidimensional, na qual pequenos grupos se coordenam de maneira molecular, geridos por figuras dedicadas a conectar e a orquestrar.

 

Nesse ínterim, porém, há cada vez mais pessoas que decidem sair do mundo do trabalho. Nos Estados Unidos, fala-se de great resignation. Qual leitura você faz desse fenômeno?

 

Pedir demissão nem sempre significa ser resignado, se é que posso usar um trocadilho. Acho que está em curso uma profunda reflexão sobre o significado do trabalho em relação à vida pessoal. É um fenômeno global. Com a pandemia, está crescendo a exigência de um reequilíbrio em todos os níveis: em relação à família, aos próprios interesses, a um trabalho mais saudável e às necessidades da coletividade.

 

Na Itália, por exemplo, há cada vez mais pessoas que optam pela fórmula do tempo parcial: renunciam a uma parte do salário para investir em valores alternativos, mais atrativos do que os de um trabalho decepcionante e enfadonho, que só é mantido para pagar as contas.

 

Também existem outras formas de reequilíbrio, que dizem respeito aos profissionais mais qualificados. Depois, principalmente nos Estados Unidos, as pessoas pedem demissão para buscar caminhos de desenvolvimento pessoal, adquirir novas habilidades e – talvez – se candidatar a cargos com um maior impacto na sociedade.

 

Para compreender a fundo essa mudança, devemos parar de pensar que o trabalho é enobrecedor em si mesmo, independentemente do que ele acarreta. O que realmente satisfaz é o compromisso com um projeto a realizar.

 

Mas, além das oportunidades, estão nascendo novas “lacunas” com a quarta revolução industrial. Como interpretá-las e como enfrentá-las?

 

Se olharmos para a Itália, temos hoje duas lacunas enormes: a primeira diz respeito às pessoas que não têm nem os instrumentos nem as competências para viver onlife. A segunda envolve aquelas que, apesar de saberem dominar os ambientes digitais, se encontram do lado errado da economia. Penso, por exemplo, nos entregadores e naqueles trabalhadores da gig economy que não têm dificuldade em usar as plataformas nos seus próprios celulares, mas se encontram na base da sociedade da informação.

 

São duas lacunas correlatas, mas precisam de respostas diferentes. A primeira é um problema de cidadania e requer infraestrutura, formação, investimentos públicos. A segunda é um problema de mercado e de regulamentação. Diz respeito a questões como o salário mínimo e o direito ao trabalho, isto é, conquistas das sociedades analógicas que agora devem ser traduzidas para o mundo digital. O aspecto positivo é que temos todos os instrumentos para regular o mercado.

 

O maior risco que eu vejo, em vez disso, é a confusão entre os dois níveis, o que levaria a utilizar os instrumentos errados para as questões erradas. Por exemplo, acredito que as formas de boicote aos serviços de delivery não são uma resposta, porque não atuam para preencher essas lacunas.

 

Em suma, o mundo do trabalho mudou, mas não por causa da inteligência artificial, que deveria ter substituído os seres humanos, mas falhou nessa promessa. No entanto, a inteligência artificial está cada vez mais disseminada...

 

Na última década, a narrativa sobre a inteligência artificial foi vítima de uma bolha midiática que, por um lado, desenhou cenários apocalípticos e, por outro, vendeu uma visão salvífica. Acho esses dois relatos cansativos, superficiais e até prejudiciais. Eles nos fizeram perder tempo e não nos ajudaram a abordar essa tecnologia na perspectiva certa.

 

Felizmente, são narrativas que estão perdendo credibilidade, e, a esse respeito, eu sinto uma frustração satisfatória. Porque já sabíamos que as máquinas não roubariam postos de trabalho: fenômenos como a automação e a robotização, de fato, estão em curso há 40 anos na indústria. E, nos países onde esse fenômeno é mais avançado, como Coreia do Sul, Alemanha e Estados Unidos, não há desemprego tecnológico.

 

Em vez disso, penso que as mil formas de inteligência artificial devem ser enquadradas como uma grande reserva de capacidade de ação. Antes de pensar nas suas aplicações, imaginemo-la como a eletricidade, um “portador de energia” capaz de movimentar músculos digitais que podem ser usados por nós para resolver problemas sob demanda, onde quer que sejam necessários, e para melhorar nossa produtividade. Mas os músculos não ajudam a decidir o que é importante, nem quais são as prioridades, nem o que é oportuno delegar às máquinas. Esses são perímetros humanos e sempre serão exclusivamente humanos.

 

Então, do meu ponto de vista, é injusto culpar a inteligência artificial quando lemos – por exemplo – sobre algoritmos bancários que agem de forma discriminatória, negando empréstimos às mulheres e concedendo-os a homens brancos. Em vez disso, devemos nos interrogar sobre quem deixou um algoritmo tomar essa decisão e nos perguntar por que esse banco não tem políticas para promover a igualdade de gênero.

 

Então, a grande questão a ser abordada é: quem gerirá esses músculos digitais? Quem os controlará? Quem terá acesso a essa enorme capacidade de ação? Hoje as respostas provêm de poucos sujeitos privados que dominam o mercado. E que, portanto, se concentram naquilo que gera lucro. É por isso que há mais dinheiro investido em algoritmos de recomendação aplicados à publicidade online do que naqueles voltados ao enfrentamento de problemas ambientais e sociais.

 

Na minha opinião, há a necessidade de uma apropriação colaborativa da inteligência artificial e, felizmente, o Artificial Intelligence Act da Comissão Europeia vai nessa direção. Trata-se de um marco normativo dos sistemas de inteligência artificial, que tem como objetivo direcionar essa força produtiva também para o bem da sociedade, conciliando-a com as necessidades dos negócios e com a defesa dos direitos individuais. É claro, não devemos nos iludir de que teremos resultados imediatos, porque uma coordenação nesse nível leva tempo. Mas isso não deve nos desencorajar.

 

Embora a tecnologia se mova mais rapidamente, eu não subestimaria as capacidades humanas de tomar decisões pela coletividade. Afinal, o caminho que levou ao Regulamento Geral sobre a Proteção de Dados também não foi curto, mas, hoje, a Europa tem a normativa mais avançada do mundo sobre a proteção de dados.

 

Você defende que o verde e o azul são a base do desenvolvimento humano. Como esse tema afeta também as organizações?

 

Para mim, o “azul”, ou seja, o digital, em prol do “verde”, entendido como todos os ambientes em que passamos o nosso tempo, permite economias enormes e novas oportunidades. O perímetro do verde hoje é muito amplo: inclui também o bem-estar nos espaços de trabalho e sociais.

 

Hoje, uma estratégia e uma cultura que integrem o verde e o azul podem fortalecer os ativos intangíveis, cada vez mais importantes para determinar o valor das organizações: eles representam mais de 80% das empresas do S&P 500. Em suma, não é algo que deva ser abordado apenas nas suas implicações morais e éticas, porque isso correria o risco de envolver apenas as empresas que podem se dar ao luxo de fazer investimentos importantes e uma perspectiva de longo prazo. Em vez disso, o verde e o azul são o business de hoje. Se bem administrados, geram lucros; se são uma fachada, provocam danos enormes.

 

Interpretar o verde e o azul apenas como marketing e relações públicas é uma perda sob todos os pontos de vista: ainda requer investimentos, não muda a abordagem de mercado e, além disso, por ser inautêntico, afasta os talentos das organizações.

 

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