27 Novembro 2020
"Minha raiva é pelos ambientes católicos que não tematizam a violência de forma alguma, pelo contrário, eles estão satisfeitos que o moralismo dissuade seus filhos de levantarem as mãos, fingindo que não os induza a afrouxar a língua com a mesma maldade. Por outro lado, a violência continuará a rastejar sorrateiramente até que se admita, até mesmo em consideração ao ministério ordenado, que o poder, mesmo quando é explicitado como serviço, sempre permanece violento em si, porque impõe uma presença. A falta de uma reflexão honesta sobre o poder dos ministros (todos do sexo masculino) muitas vezes implica e sinaliza sua ingenuidade sobre o que é violência de gênero, ingenuidade que, de fato, reverbera também sobre os leigos, inexoravelmente", escreve Alice Bianchi, em artigo publicado por Il Regno delle donne, 23-11-2020. A tradução é de Luisa Rabolini.
Eis o artigo.
Todo 25 de novembro, já há vários anos, compartilho um pedacinho da minha história - gesto que paradoxalmente é sempre um pouco violento porque coloca outras pessoas na frente de um nu. Faço isso não porque minha história seja particularmente grave, aliás, é apenas mais uma entre muitas, mas porque intercepta um mundo que muitas vezes acredita estar a salvo do exercício da violência de gênero: o católico. Sexismo entre os católicos? possivelmente. Violência? claro que não! Mesmo assim, todos os “meus” homens eram católicos, aqueles com os quais pelo menos por um momento imaginei meu futuro, e por católicos não me refiro apenas no papel, quero dizer fiéis praticantes, estimados em suas paróquias, frequentadores assíduos das iniciativas pastorais juvenis, inclusive ex-seminaristas. É com eles - não com todos - que tive a experiência que com o tempo aprendi a chamar de "violência", sem medo de parecer exagerada: receber perguntas doentias às quais não queria responder, julgamentos culpabilizantes "em nome da verdade", comentários sobre maquiagem e roupas, ter que deletar fotos das redes sociais, prestar contas de meus atos, sempre ter que me dobrar a compromissos, ter que dizer "não" duas vezes, ter que justificar cada "sim".
O poder, um tema tabu
Na verdade eu gostei muito dos homens que se confundem nessas linhas. Falar de violência ainda me faz sentir culpada em relação a eles, porque são todas pessoas que tentei entender profundamente e, portanto, sei realmente que eles não sabiam, não entendiam, não queriam. Eu uso o plural de propósito, obviamente colocando todos no mesmo saco, para proteger alguns mais do que outros. Mas isso não é vingança, contra nenhum deles. Estou com raiva de outras pessoas. Minha raiva é pelos ambientes católicos que não tematizam a violência de forma alguma, pelo contrário, eles estão satisfeitos que o moralismo dissuade seus filhos de levantarem as mãos, fingindo que não os induza a afrouxar a língua com a mesma maldade. Por outro lado, a violência continuará a rastejar sorrateiramente até que se admita, até mesmo em consideração ao ministério ordenado, que o poder, mesmo quando é explicitado como serviço, sempre permanece violento em si, porque impõe uma presença. A falta de uma reflexão honesta sobre o poder dos ministros (todos do sexo masculino) muitas vezes implica e sinaliza sua ingenuidade sobre o que é violência de gênero, ingenuidade que, de fato, reverbera também sobre os leigos, inexoravelmente.
Sufocados pela pastoral vocacional
Porém o meu j’accuse maior se dirige a uma pastoral juvenil que ainda insiste sobre a vocação como definição de si mesma em relação ao outro sexo - especialmente para as mulheres para as quais a maternidade ainda parece ser o único caminho - ou no casamento ou na consagração. Muitas das minhas colegas, nascidas nos anos 1990, estão chegando aos 30 anos com a angústia de ainda ter que esperar a própria realização em um casal: a vocação nunca foi explicitada para elas em termos, por exemplo, profissionais, porque ainda é difícil pensar realmente ao laicato como um caminho viável de vida cristã fora do casamento. "Somente" o batismo parece pouco para dizer que se escolheu um caminho? O meu j'accuse é pela atenção obsessiva, na catequese, na pregação e no acompanhamento espiritual, a uma parte do corpo da mulher: a gravidez potencial das adolescentes, a gestão da sexualidade de casal que se espera (apenas) delas, a gravidez "a não ser perdida" das jovens a quem o relógio biológico é constantemente lembrado, sendo a gravidez o único motivo de reverência prestada, para nós, criaturas milagrosas a sermos protegidas sob uma redoma de vidro. Somos sempre mães, mães, mães, mães, mães, de meninos, de namorados e de maridos, e como mães temos que: cumprir o papel, dar regras, ser impecáveis, servir de alicerce. Este é um jugo apenas pesado, aqui não há boas novas. Alguém, mesmo com a melhor das intenções, já me esmagou várias vezes.
No 25 de novembro, sinto apenas raiva, com a qual me recordo dos homens que realmente amei. É por eles que eu gostaria que as Igrejas estivessem mais cientes das responsabilidades que têm em conter a violência de gênero. Gostaria que católicos homens, padres e leigos, pudessem pensar sobre seus papéis de poder e sobre sua masculinidade antes que sobre a feminilidade alheia. E gostaria, acima de tudo e para todos, de uma pastoral vocacional libertadora. Que também seria uma pastoral evangélica.
Nota do Instituto Humanitas Unisinos - IHU:
Reproduzimos a seguir dois comentários postados no artigo acima, publicados na versão italiana:
1.- Alfredo Jacopozzi: "Como padre católico e ex-formador de seminaristas posso testemunhar a total insensibilidade sobre temas tão delicados. No fundo, em ambientes masculinos como o seminário a mulher simplesmente não existe. É o absurdo de uma Igreja que não quer mudar.
2.- Giuliana Babini: "Talvez algum marido tenha pensado um pouco sobre o seu ser masculino, constrangido pelas circunstâncias, mas padres e leigos comprometidos? Eles se sentem sempre mais preparados que tu sem que sejam... e nunca buscam uma colaboração pensada... Há um desperdício, neste sentido, na Igreja que até agora não foi enfrentado, ainda que se possa ver alguns sinais... esperemos que seja uma aurora e não somente um fogo de artifício.
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Violência contra as mulheres: a deseducação dos jovens católicos - Instituto Humanitas Unisinos - IHU