A Vida Religiosa Consagrada em uma mudança de época. Horizontes para a pós-pandemia

Foto: Needpix

Por: Wagner Fernandes de Azevedo | 24 Agosto 2020

A pandemia trouxe questionamentos variados para todos os que tem fé. O grande problema teológico de compreender o porquê de Deus, se onipotente e bondoso, permitir o "mal", a morte de centena de milhares e o adoecimento de milhões de pessoas, confronta a própria fé. Diante destes problemas, qual a ação pertinente às pessoas de fé? Em meio a uma pandemia em que o contato é ameaçador e os templos de oração fechados, como ser cristão e exercer a vocação para qual se é chamado? Nesta semana, a Conferência dos Religiosos do Brasil – CRB exortou em carta que “os conturbados tempos da Covid-19 também podem ser uma oportunidade, por paradoxal que isso possa parecer, para avançar no essencial”. Na conclusão desta Semana da Vida Religiosa Consagrada, confira algumas das reflexões publicadas pelo Instituto Humanitas Unisinos que traçam pistas de ação para “este essencial”.

A Semana Nacional da Vida Consagrada, organizada pela CRB, tem como tema “Amados e Chamados por Deus”. Na abertura, a organização divulgou uma carta do papa Francisco para os consagrados e consagradas do Brasil. O pontífice ressaltou a sua percepção de que se vive mais que uma época de mudanças, mas uma “mudança de época”. “Diante dos desafios impostos pela sociedade atual, que vive numa mudança de época, é preciso estar vigilantes, a fim de se evitar a tentação de ter um olhar mundano, que nos impede ver a graça de Deus como protagonista da vida e nos leva a sair à procura de qualquer substituto”, alertou Francisco.


Irmã Lydia D'sa ajuda um homem idoso a comer, em sua rotina diária no lar de idosos Cheshire, no Quênia. Foto: Doreen Ajiambo | CNS

A CRB reforçou o compromisso diante do cenário da pandemia e das inúmeras crises que se vive no mundo: “como religiosas e religiosos somos chamados a ser na sociedade uma presença do Evangelho. Mais do que palavras, testemunho; mais do que proclamações, serviço”.

As mudanças no comportamento e nas relações sociais, impactam no jeito de ser igreja e no exercício da vocação religiosa, exigindo discernimento e conversão para enfrentar os novos desafios. Para a irmã Liliana Franco, presidente da Conferência Latino-americana de Religiosos e Religiosas – CLAR, em entrevista a Luis Miguel Modino, e publicada pela IHU On-Line, a pandemia pode ser vista como um chamado: “Há algumas grandes lições que esta pandemia está nos deixando. É um chamado urgente para que nós, como vida religiosa, consideremos nosso lugar, e nosso lugar é no meio dos mais pobres, no meio de quem mais sofre. É uma dívida que existe de nós como sociedade, como vida religiosa. Os mais pobres não podem ser um número, não vale a pena dizer cinco mil mortos, não sei quantos infectados”.


Missionária da Caridade em casa de suporte, em Porto Príncipe, Haiti. Foto: Paul Jeffrey | CNS

No artigo de Fábio Pereira Feitosa, publicado pela IHU On-Line, o fortalecimento de uma Igreja em Saída, conforme pede o papa Francisco, passa pelo desafio de ressignificar a vida religiosa consagrada. Para Feitosa essa ação ainda é vista com suspeita por algumas ordens e lideranças, mas por vezes ainda é posta em prática. “Diante dos mais diversos desafios da atualidade, a Vida Religiosa Consagrada com todo o seu dinamismo se põe a refletir e atuar. Uma das formas encontradas por este segmento foi a adesão a um constante estado de ressignificação de suas práticas e de seu apostolado”.


Irmã Josephina Kisku, irmã Sushma Ekka e irmã Susan Tudu, todas Irmãs da Caridade de Nazaré, distribuindo comida em Chatra, na Índia. Foto: Irmãs da Caridade de Nazaré

O cardeal João Braz de Aviz, prefeito da Congregação para os Institutos de Vida Consagrada e as Sociedades de Vida Apostólica, em entrevista publicada pela IHU On-Line, cobra uma radicalismo evangélico dos vocacionados para a Vida Consagrada. Segundo o cardeal “A mudança de época está provocando uma nova sensibilidade para retornar ao seguimento de Cristo, a uma vida fraterna sincera em comunidade, a reforma dos sistemas de formação, a superação do abuso de autoridade e a transparência na posse, uso e a administração dos bens. Porém velhos e pequenos modelos evangélicos ainda resistem a uma mudança necessária para um testemunho do Reino de Deus inserido no momento presente”.

O convite urgente para a ressignificação da vida religiosa também cresce à medida que o coronavírus afeta diretamente a estrutura das congregações religiosas. A União Internacional de Superioras Gerais repassou a suas filiadas 900 mil euros para ajudar na manutenção dos institutos, dos seus ministérios e cuidados com as irmãs idosas. Ainda, foram muitos os casos de contágio dentro das congregações religiosas: surtos ocorreram na casa de padres xaverianos de Parma, na Itália; na Paróquia Nossa Senhora da Paz que acolhe uma missão scalabriniana na cidade de São Paulo; na casa das irmãs felicianas no estado de Michigan, nos EUA; no convento das Pequenas Irmãs Missionárias da Caridade, em Tortona, também na Itália. Uma reportagem da National Catholic Reporter, de 20 de julho, publicada em português pela IHU On-Line, apresenta números mais detalhados da intensidade do número de mortes entre religiosas consagradas: “61 religiosas já morreram, entre elas 10 irmãs Combonianas no norte da Itália; 7 irmãs de Santa Cruz, em Montreal; 7 irmãs ursulinas na região de Montreal; 6 irmãs de Santa Ana, em Quebec; e 6 pequenas irmãs Missionárias da Caridade, no norte da Itália”, apurou o jornalista Dan Stockman.


Homenagem às treze irmãs felicianas que morreram em decorrência da covid-19. Foto: Dan Stockman | NCR

No entanto, os altos números de contágios, embora ainda exija um estudo mais aprofundado, revelam o paradoxo da vida religiosa. O cardeal João Braz de Aviz constata que “consagrados e consagradas adoeceram e morreram por proteger a vida das pessoas e por estar muito próximos de quem sofre. Devemos dar graças a Deus por esse testemunho de santidade e nos inspirarmos nele para fazer crescer nossa disponibilidade para o Reino de Deus”.

E no caso das mulheres consagradas é ainda mais emblemático o trabalho de cuidado. São elas que administram e trabalham em hospitais, clínicas, lares de idosos e cuidam das irmãs idosas, estando na “linha de frente” no combate ao coronavírus. Essa condição foi debatida em Simpósio on-line promovido pelas embaixadas dos EUA e Inglaterra no Vaticano. A irmã comboniana Alicia relatou que se deslocou de Jerusalém para Bérgamo, na Itália, para ajudar no cuidado da casa da congregação onde 45 das 60 irmãs residentes estavam contaminadas (e 10 vieram a óbito). Acrescenta-se ainda o contínuo trabalho de assistência aos pobres, crianças e a luta contra o tráfico humano.

Porém, o paradoxo do extenuante trabalho de cuidado ainda precisa confrontar as marcas do clericalismo. Para Giovanni Cucci, a vida religiosa feminina sofre ainda mais com esse mal, visto que nem todas os institutos e congregações abriram-se ao ar fresco do Vaticano II. “O vento de renovação gerado pelo Concílio Vaticano II e pelo magistério subsequente não foi vivido da mesma maneira nas várias congregações religiosas. Alguns deram origem a uma difícil, mas eficaz obra de atualização e reforma; outras, por outro lado, não foram bem-sucedidos nesse objetivo, seja por falta de forças ou por estarem convencidas de que as práticas até agora praticadas ainda pudessem constituir a modalidade ideal de governo. Infelizmente, a história ensina que, sem esse esforço de confronto e busca de novos caminhos, corre-se o risco de perder o frescor do carisma, iniciando um declínio lento, mas irrefreável”, escreve.


Foto: CNS

O Vaticano há tempos alerta sobre o cansaço e a síndrome de burnout que acometem as religiosas, que para além da sobrecarga de trabalho, são sofridas em meio a relações de abusos de poder, e por vezes sexual. Em entrevista ao caderno Donne Chiesa Mondo, do L'Osservatore Romano, o cardeal Braz de Aviz relatou que “muitas casas estão fechando, há muitos abandonos. A vida consagrada tem raízes muito fortes, mas não há a percepção de que algumas coisas devem ser mudadas porque envelheceram. A formação em primeiro lugar, depois a questão da fraternidade e, finalmente, a relação autoridade-obediência. Sem esquecer a relação homem-mulher: por que o consagrado e a consagrada devem ser tão separados?”.

A irmã Véronique Magron, em entrevista publicada pela IHU On-Line, já vê conscientização e mudanças nessas relações. "Vejo com esperança. Porque vejo hoje uma autêntica conscientização de muitos sobre esses fatos dolorosos e uma vontade real de lutar contra toda prática desviante e de se formar adequadamente. Eu acredito que a vida consagrada pode se tornar simplesmente mais evangélica a partir dessa tempestade. Se a nossa Igreja não vai muito bem – é impossível ignorar – eu ainda acredito que o Evangelho vai muito bem".

Dentre tantos desafios, a CRB destaca a estratégia principal para a Vida Consagrada para este momento e o futuro pós-pandemia: "Unir forças é fundamental para configurar um horizonte de esperança no qual os valores do Reino possam constituir uma realidade tangível".

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