28 Novembro 2019
"Eis uma experiência concreta de luta pela terra que pode inspirar muitas outras lutas por direitos sociais", escreve Gilvander Moreira, frei e padre da Ordem dos Carmelitas.
Frei Gilvander é doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Ciências Bíblicas; assessor da CPT, CEBI, SAB, CEBs e Movimentos Sociais Populares; prof. de “Movimentos Sociais Populares e Direitos Humanos” no IDH, em Belo Horizonte, MG.
A construção da barragem de Itapebi, em Salto da Divisa, na região do Baixo Jequitinhonha, MG, causou imensa devastação socioambiental e deixou centenas de famílias sem as condições mínimas de sobrevivência. A solução foi se engajar na luta pela terra a partir do Acampamento Dom Luciano Mendes, que se iniciou na madrugada do dia 26 de agosto de 2006, no mesmo dia da morte de Dom Luciano Mendes. Dona Cleonice dos Santos Silva Souza (tia Kilene), da coordenação do Acampamento Dom Luciano Mendes, Sem Terra nascida na Bahia em Itapebi, teve que migrar para Minas Gerais, para o município de Salto da Divisa. Ela narra sua história de luta assim: “Eu nasci e me criei aqui na região, lá na Gameleira seca. Minha família trabalhava para um fazendeiro. Depois que me casei, fui com meu esposo para outra fazenda aqui da região trabalhar como empregada, mas tivemos que ir embora para o Salto da Divisa para viver na rua (cidade), pois lá o ordenadinho estava muito pequeno e não dava pra nada. Tenho cinco filhos que tiveram que ir embora para São Paulo, Belo Horizonte e para o Paraná. Estão doidos para a gente conquistar a fazenda Monte Cristo para eles voltarem a viver conosco e trabalhar aqui na terra. Eles continuam pobres, pagando aluguel lá na cidade grande. Quando chegamos aqui em Salto da Divisa, eu passei a ser lavadeira no rio Jequitinhonha daquele povo lá da cidade ganhando uma merrequinha que ajudava a comprar o café, o açúcar, para ajudar meu companheiro, mas quando construíram a barragem acabou com tudo. Isso durante muitos anos na beira do rio Jequitinhonha, antes de eles fazerem a Barragem de Itapebi aqui ao lado da cidade do Salto. Meu companheiro começou a fazer bicos. Sou uma das massacradas por essa barragem. Durante a construção, eles diziam que a gente não seria atingida. Mentiram pra nóis, pois nóis fomos mais do que atingidos, fomos massacrados. Em 2001, quando, em uma semana, encheram a barragem, ficamos sem poder lavar a roupa dos outros e, portanto, sem poder ganhar uma merrequinha. Dezenas de famílias do Acampamento Dom Luciano Mendes vieram pra cá, porque foram atingidas pela barragem de Itapebi. Sem poder lavar roupa, sem poder pescar, sem poder pegar areia no rio, fazer o quê? Comer o quê? A gente teve que entrar na luta pela terra. Aliás, o que eu gosto mesmo é de plantar, todo mundo junto. A gente quando trabalha no coletivo é aquela multidão. A gente trabalha para todos, não é escravidão. É bom demais. Graças a Deus que o MST surgiu e chegou aqui e nós viemos pra cá. De primeiro, a gente era escravo dos latifundiários. Aqui no acampamento nossa vida está melhorando. Não estamos mais debaixo do pé de latifundiário. Aqui nós trabalhamos para nos manter. Fazemos biscoitos, plantamos nossa horta e vendemos na rua biscoitos, couve, alface, coentro, cebolinha, tomate, na bacia de casa em casa. Basta de patrão. A gente já enjoou de ser mandado por patrão. Queremos trabalhar por nós mesmos. Os fazendeiros viviam empurrando os ribeirinhos para a cidade, mas depois que nós ocupamos a fazenda Manga do Gustavo, os ribeirinhos se animaram e fizeram onze casas aqui ao lado e vieram outros 11 posseiros lá da fazenda Monte Cristo para a Manga do Gustavo. Com a nossa luta os posseiros ribeirinhos se sentiram fortalecidos também e fizeram ou melhoraram suas casas”.
Havia muitas famílias sobrevivendo em muitas ilhas do rio Jequitinhonha, no município de Salto da Divisa, mas no início do Acampamento elas tinham pouco contato com as famílias acampadas no Acampamento Dom Luciano, porque os fazendeiros divulgavam calúnias contra os Sem Terra espalhando que eram invasores e ladrões de terra. Assim, muitas das famílias que sobreviviam nas ilhas do rio Jequitinhonha preferiam não estreitar convivência com os acampados. Mas com o tempo essa rejeição construída foi se arrefecendo e depois as relações com o povo das ilhas se tornou razoável.
Na cidade de Salto da Divisa havia e há muita gente sobrevivendo debaixo da cruz do aluguel, “pagando de 350 reais a 1 salário-mínimo por uma casa simples”, segundo Aldemir Silva Pinto, agora assentado no Assentamento Dom Luciano Mendes, na Fazenda Monte Cristo. Tem várias pessoas que compram terreno e fazem várias casas para alugar. Vivem ganhando dinheiro com isso.
As principais notícias de jornais e as atas de reuniões em que lideranças do MST participavam eram fixadas em um mural no Centro Comunitário do Acampamento Dom Luciano. “O povo precisa ler e se informar sobre o que está acontecendo relativo à nossa luta”, ponderava irmã Geraldinha. Muito eloquente a decoração do Centro Comunitário com as paredes grafitadas com letras de músicas da luta, gritos de luta, menção às principais conquistas e datas. Sinal de que na luta pela terra e por direitos a dimensão simbólica precisa ser cultivada também.
No Acampamento Dom Luciano Mendes havia trabalho em mutirão no mandiocal coletivo, no galinheiro de quatro famílias, em algumas pocilgas, nas hortas e nos roçados.
Eloquentes são os nomes das ruas do Acampamento Dom Luciano: rua Che Guevara, rua 26 de agosto de 2006, rua CPT, rua MST, rua Antônio Conselheiro, rua 7 de setembro e rua Popular. Todos esses nomes têm um grande significado para as famílias do Acampamento Dom Luciano. São pessoas de luta; datas importantes como 26 de agosto de 2006, que foi o dia da ocupação; rua Sete de setembro, por ter se tornado o dia do Grito dos Excluídos, que foi um momento forte na luta da terra em 2006, 2007 e 2008. Quando deram o nome da rua, o povo decidiu que não participaria mais do Grito dos Excluídos, em Salto da Divisa, uma vez que o grito lá tinha se tornado grito do poder público; a rua Popular está no ponto mais alto do acampamento, lugar de oração e vigília, onde foi fincada a cruz das Santas Missões populares, realizada no segundo ano de resistência das famílias no acampamento.
Enfim, eis uma experiência concreta de luta pela terra que pode inspirar muitas outras lutas por direitos sociais.
Obs.: Os filmes e vídeos nos links, abaixo, versam sobre o assunto tratado, acima.
1 - Acampamento Dom Luciano, do MST, tomando posse da Fazenda Monte Cristo, em Salto da Divisa. 22/10/14
2 - Acampamento Dom Luciano, do MST, em Salto da Divisa, MG, festeja conquista da Fazenda Monte Cristo
3 - Palavra Ética, na TVC/BH: frei Gilvander-Acampamento Dom Luciano/MST, Salto da Divisa/MG. 22/09/14
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Barragem violenta, mas a luta pela terra liberta - Instituto Humanitas Unisinos - IHU