06 Agosto 2018
O mandamento é claro e categórico. Durante séculos, a Igreja contemporizou com a mentalidade do mundo e não somente abençoou como também aplicou a pena de morte nos próprios Estados Pontifícios. Em 1969, após o Concílio Vaticano II (que também deu seus frutos neste âmbito), Paulo VI aboliu a pena capital no Estado vaticano. Mas, no Catecismo da Igreja, seguia aberta a possibilidade de aplicá-la, ainda que somente em casos muito extremos. Pois, agora, nem isso. Francisco proclama que o “não matarás é não matarás”. Sem exceções.
O comentário é de José Manuel Vidal, publicado por Religión Digital, 04-08-2018. A tradução é de Graziela Wolfart.
A imensa maioria do povo católico exulta com o Papa abolicionista. Já era a hora! No final das contas, nas mãos de Francisco, a Igreja dá passos de gigante para recuperar esses "duzentos anos" de atraso, como dissera o grande cardeal Martini.
Como era de se esperar, os ultras (acostumados a aplicar sempre o império da lei ao estilo dos fariseus) choram pelos cantos. Os “infovaticarcas” (em afortunada expressão de nosso habitual comentarista Hugo Z.) sobem pelas paredes, anunciam todo tipo de males, sem sombra de bem algum e, proclamam, mais uma vez, o aguardado cisma, que nunca chegará.
Dói para eles a decisão do Papa sobre a abolição da pena de morte, porque tanto eles, como os políticos de sua corja, caem por terra sem o álibi eclesial. A partir de agora, quem estiver a favor da pena de morte estará contra a doutrina oficial da Igreja.
A partir de agora, nenhum governante que se diga, ou passe por ser católico, pode aceitar a pena de morte na legislação de seu país. E se tal legislação está vigente, deve comprometer-se a aboli-la. Uma decisão que atinge especialmente aos governantes dos Estados Unidos, país com um grande percentual de católicos e no qual ainda subsiste a pena capital. Ou o Peru, onde se quer voltar a implantar. Ou as Filipinas, de Duterte.
E isso é o que mais incomoda aos conservadores: que o Papa Francisco tenha partido o melão doutrinal. Porque, em uma Igreja “semper reformanda”, a doutrina não é somente um museu para ser visitado, admirado e para impor, como eles acreditam, mas uma realidade viva, que se transforma e se regenera em consonância com os sinais dos tempos, como já dissera o Vaticano II.
Francisco abriu uma fenda no bloco doutrinal que os “infovaticarcas” acreditavam ser monolítico, eterno e inalterável. E uma vez aberta a fenda... Por que não se poderia aplicar esta mesma dinâmica evolutiva doutrinal a outros temas, como a moral sexual (leia-se contraceptivos) ou o acesso da mulher ao altar?
Fica claro, pois, que a primavera de Francisco não se alimenta somente de gestos, de sextas-feiras da misericórdia e de reformas estruturais. A primavera toma corpo doutrinal e, portanto, veio para ficar. E isso é o que mais incomoda aos que querem ver em Francisco um pontificado de transição, uma simples tempestade de verão.
E também fica claro, mais uma vez, e como sustenta há tempo nosso colunista Juan Masiá, que Francisco segue optando pela via reformadora do discernimento. O Papa está muito longe do caminho do tradicionalismo inflexível, mas tão pouco opta pela revolucionária, pura, dura e, menos ainda, pela diplomática e conciliadora (a famosa terceira via).
Francisco aposta, antes, pela quarta via, que não é o consenso diplomático entre a direita eclesial mais conservadora e a esquerda radical, mas um consenso fundacional, que permite à centro-direita e à centro-esquerda eclesial caminhar pela quarta via da transformação mútua até a meta das reformas criativas. Como a da abolição da pena de morte. E as que virão. Sempre à escuta do "povo santo de Deus", que tanto proclama Francisco.
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Francisco, o Papa abolicionista: "O que mais incomoda aos conservadores: que foi partido o melão doutrinal" - Instituto Humanitas Unisinos - IHU