12 Junho 2018
Trata-se de um “dispositivo teórico” que realiza, mediante uma indiscutível fineza retórica, um resultado predeterminado: impedir toda mudança e fazer prevalecer, afetivamente antes ainda que conceitualmente, um primado do antigo sobre o moderno. É um “dispositivo de bloqueio”, que bloqueia afetivamente, “por apego”, todo projeto de reforma.
A opinião é do teólogo italiano Andrea Grillo, professor do Pontifício Ateneu Santo Anselmo, em Roma, do Instituto Teológico Marchigiano, em Ancona, e do Instituto de Liturgia Pastoral da Abadia de Santa Giustina, em Pádua.
O artigo foi publicado em Come Se Non, 10-06-2018. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
“Ad discendum item necessario dupliciter ducimur, auctoritate atque ratione. Tempore auctoritas, re autem ratio prior est.”
(Aug., De ord., II, IX, 26 [CCL, XXIX, 121, 2-122, 4])
Neste texto, gostaria de analisar com uma certa precisão um “modelo de argumentação” que, a partir dos anos 1970, se difundiu no discurso eclesial e assegurou progressivamente uma verdadeira “paralisia” daquela orientação à reforma e aos processos de atualização que o Concílio Vaticano II tinha reintroduzido providencialmente na vida da Igreja.
Em outros lugares, já abordei o fenômeno, identificando uma espécie de “estilo magisterial”, que se baseava em uma estratégia paradoxal: negando a própria autoridade, ela conserva toda a sua autoridade (cf. “Igreja ‘em saída’ e exercício da autoridade: para além de um ‘lugar-comum’ do magistério recente”).
Retomo brevemente o sentido daquele primeiro raciocínio.
No texto citado, eu já observava há dois anos que, no debate eclesial decorrente das palavras proféticas do Papa Francisco sobre a “Igreja em saída” e sobre a “superação da autorreferencialidade” ainda não se havia compreendido claramente o quanto essa prioridade, que o papa enunciou com razão desde os primeiros dias de seu ministério – e que já estava claramente presente no seu texto apresentado à Congregação dos Cardeais em conclave –, requeria uma profunda revisão do estilo com que a Igreja pensa e age com relação ao tema do “poder” e da “autoridade”.
Para poder “sair da autorreferencialidade” e tornar-se realmente “heterorreferencial” – ou seja, para não pôr o centro em si mesma, mas o Outro e o outro – a Igreja, acima de tudo, deve reconhecer que é investida com uma autoridade real e eficaz.
Em outras palavras, ela deve poder confiar na possibilidade de intervir com autoridade sobre a própria doutrina e disciplina – sobre aquilo que pensa de si mesma e sobre aquilo que faz consigo mesma – sem ceder à tentação de “impedir-se uma reavaliação”, talvez em nome da fidelidade à tradição.
Se a Igreja pensa que o único modo de ser fiel ao Evangelho é continuar em tudo e para tudo como antes – tanto doutrinal quanto disciplinarmente – ela se convencerá imediatamente que deve permanecer absolutamente imóvel para ser plenamente si mesma. Fará do imobilismo a sua obsessão.
A essa tentação, Francisco quis responder com três anos de uma palavra profética, que, acima de tudo, quer persuadir a Igreja e o mundo de duas coisas:
- que a fidelidade é mediada pelo movimento, pela conversão, pela saída pelas ruas, não pela estase, pelo medo e pelo fechamento dentro dos muros;
- que, para se mover, é preciso reconhecer a autoridade de estar na história da Igreja e da salvação de modo partícipe e ativo, não como espectadores mudos e passivos, ou como simples “notários”.
Mas essa consideração encontra muitas resistências não apenas na inevitável inércia do modelo a superar, mas também em alguns “lugares-comuns” dos quais eu gostaria de considerar aquele que podemos expressar como a redução da autoridade à “renúncia à autoridade”. Trata-se de um lugar-comum muito fascinante, que às vezes assume uma notável relevância na experiência eclesial e que o magistério pode e deve utilizar em passagens complexas.
Ele se traduz, formalmente, em uma declaração de “non possumus”. Esse é um dos pontos-chave do “magistério negativo” que a tradição antiga, medieval e moderna cultivou com atenção e com cuidado.
Em última análise, trata-se de uma “autolimitação do magistério”. Mas tal autolimitação, que por si só é garantia de “outro” e que, portanto, deveria conter e obstaculizar as formas da autorreferencialidade eclesial, entrou com grande força na experiência eclesial das últimas décadas, particularmente a partir do fim dos anos 1970.
Agora, gostaria de identificar mais claramente o coração de tal argumentação em um raciocínio artificioso – que, em certos aspectos, parece ser uma espécie de “sofisma” – e que não é difícil de atribuir a J. Ratzinger, em uma parábola temporal de pelo menos 35 anos, que vai de 1977 a 2012.
Trata-se de um “dispositivo teórico” que realiza, mediante uma indiscutível fineza retórica, um resultado predeterminado: impedir toda mudança e fazer prevalecer, afetivamente antes ainda que conceitualmente, um primado do antigo sobre o moderno. É um “dispositivo de bloqueio”, que bloqueia afetivamente, “por apego”, todo projeto de reforma.
Antes de analisar as principais etapas desse interessante fenômeno, que, resumidamente, chamarei de “dispositivo-Ratzinger”, gostaria de esclarecer melhor a peculiaridade da minha abordagem:
a) A contribuição desse “modelo de pensamento” é bastante significativo, pois diz respeito primeiro ao Ratzinger arcebispo, depois ao Ratzinger prefeito e, por fim, ao Ratzinger papa: ou seja, é o fruto não do “primeiro Ratzinger”, livre de compromissos pastorais, mas do “segundo e último Ratzinger”, comprometido com responsabilidades crescentes em nível diocesano e, depois, muito em breve, de Igreja universal.
b) O cerne da argumentação é o resultado não apenas de uma indiscutível competência teológica, mas também da abdicação da razão, de uma forma bastante marcada, para dar espaço a um “afeto”, ou, melhor ainda, a um “attachement”, a um “apego” irrenunciável e assumido como auctoritas indiscutível: a ratio cede a uma auctoritas afetivamente sobredeterminada e, por isso, incontrolável.
c) Por esse motivo, ouso atribuir ao raciocínio a qualificação de “dispositivo”: ele não explica racionalmente, mas valoriza retoricamente e impõe juridicamente uma solução que não tem bases sólidas, senão em um afeto. Isso determina o efeito de fazer “evaporar” toda reivindicação legítima de mudança, que a transforma imediatamente, e eu diria quase violentamente, em uma contradição com os afetos e, por isso, em uma negação e em uma ameaça da tradição.
d) Ele funciona, por fim ou talvez acima de tudo, como suporte teórico perfeito, quase como axioma indiscutível, para afirmar uma estrutura resistente e imóvel da Igreja, diante de um mundo ameaçador e traiçoeiro, ao qual a Igreja não deve se curvar. Recuperando temas e motivos do antimodernismo de um século antes, o “dispositivo” funciona perfeitamente como “bloqueio” contra um Concílio Vaticano II percebido cada vez menos como recurso e cada vez mais como “desvio”.
Neste texto, gostaria de mostrar esse “dispositivo-Ratzinger” em quatro versões, historicamente progressivas, quase como uma “implementação” cada vez mais afinada e afiada dele.
A apresentação irá abranger, em ordem, quatro documentos eclesiais totalmente característicos dessa abordagem: a “Carta sobre a primeira confissão” do arcebispo de Munique de 1977; a carta apostólica Ordinatio sacerdotalis de 1994; a instrução Liturgiam authenticam de 2001; o motu proprio Summorum pontificum, de 2007; ao qual deve ser acrescentada a “carta aos bispos alemães” sobre a questão do “pro multis” de 2012.
No cerne de cada um desses documentos, em um arco de nada menos do que 35 anos, encontra-se o mesmo mecanismo argumentativo, claramente reconhecível, fascinante e distrativo, límpido e ao mesmo tempo obscuro, em que apego e razão se fundem e se confundem.
Uma breve investigação será capaz de trazer à luz o seu ponto cego, mas também a dívida que todos temos para com esse modo de pensar e de definir a reflexão sobre a tradição eclesial e do qual, se quisermos reler significativamente o Concílio Vaticano II, deveremos, mais cedo ou mais tarde, nos libertar.
3.1. A conclusão é insinuada nas premissas: Carta sobre a primeira confissão
O primeiro “lugar doutrinal” onde é posto em operação o “dispositivo-Ratzinger” é a relação entre primeira confissão e primeira comunhão, que o então arcebispo de Munique redefine “contra” a virada impressa pelo seu antecessor, o cardeal J. Doepfner, que havia deslocado a primeira confissão para depois da primeira comunhão.
A pretensão é de contrastar um “uso pedagógico” da tradição, mas a teologia que deveria guiar o novo aviso se identifica, simplesmente, com a “evidência afetiva” do princípio de autoridade. No texto da carta pastoral “Primeira confissão e primeira comunhão das crianças” (1977), Ratzinger chega a inverter o sentido da tradição, a fim de garantir a sobrevivência da prática (para ele) mais tradicional, afirmando um primado de um sacramento de cura em relação a um sacramento de iniciação, em grave tensão até mesmo com o Concílio de Trento e com a diferença “de dignidade” que ele exige que seja reconhecida entre os sacramentos.
De fato, ele afirma: “Somente com a confissão pessoal tornam-se verdadeiras as invocações de perdão da liturgia eucarística e essa liturgia eucarística da Igreja conserva a sua grande profundidade pessoal que, aliás, é o pressuposto da verdadeira comunhão” (n. 9).
Ele chega, assim, a subordinar a comunhão eucarística à confissão pessoal, como regra de abordagem original ao sentido da própria comunhão, com uma evidente e grave forçação da tradição.
Tudo isso, além disso, argumentado com uma motivação realmente surpreendente: o novo arcebispo pede que os agentes de pastoral “abandonem as próprias ideias mais caras pelo bem da comunidade”, mas, de fato, com essa carta, ele impõe suas próprias ideias mais caras – aquelas para ele afetivamente mais urgentes – em detrimento do caminho de amadurecimento da comunidade.
Usar a Didaqué como texto-chave para afirmar o primado da confissão individual sobre a comunhão eucarística é uma argumentação desprovida de fundamento e um uso da “auctoritas” totalmente anacrônico e desprovido de confirmação histórica.
Mas aqui, pela primeira vez, aparece o “dispositivo-Ratzinger”: argumentando sem verdadeiro rigor e de modo puramente afetivo, ele obtém apenas uma “conformação autoritária” do comportamento, sem motivação teológica consistente.
3.2. Documentos não infalíveis e práticas infalíveis: a explicação da Ordinatio sacerdotalis
Muitos anos depois, em 1994, com a Ordinatio sacerdotalis, da qual Ratzinger, então prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, foi o grande inspirador, sobre o tema da “ordenação das mulheres ao sacerdócio”, ele retomou com força esse estilo, declarando que “a Igreja não tem absolutamente a faculdade de conferir a ordenação sacerdotal às mulheres”.
Com uma declaração de “não autoridade”, e da qual ele mesmo esclarece mais tarde a natureza “não infalível”, quer-se encerrar a questão, embora não excluindo que “outras ordenações” sejam aceitáveis.
A negação da autoridade determina a confirmação da forma clássica do poder eclesial e até pretende reconhecer, não infalivelmente, uma tradição infalível. Desloca a infalibilidade do documento para a tradição, com um salto mortal argumentativo bastante arriscado. Sem assumir nenhuma nova autoridade, reconhece-se autoridade apenas ao passado, sem tematização alguma das novidades culturais, antropológicas e eclesiais que o último século trouxera, como se a história não existisse.
No coração do documento e da sua explicação subsequente, aparece com clareza, novamente, o “dispositivo-Ratzinger”: afeto, apego e autoridade substituem a razão teológica. Sentimento e poder no lugar da razão. Antes, a razão deveria, a posteriori, limitar-se a justificar o sentimento de apego e o princípio de autoridade.
3.3 Para contradizer a experiência: tradução literal, até mesmo sem destinatário na Liturgiam authenticam e na carta sobre o “pro multis”
Alguns anos depois, em 2001, Ratzinger foi o inspirador da Quinta Instrução sobre a Reforma Litúrgica Liturgiam authenticam, a partir da qual surgia uma nova versão do “dispositivo de bloqueio”, com a absoluta afirmação do “primado do latim” sobre as “línguas vernáculas”.
O efeito dessa teoria desprovida de qualquer fundamento histórico – na qual se chegava a estabelecer a irrelevância da língua dos destinatários e a pretensão de “transliterar as figuras retóricas latinas” – era duplo: a paralisia da relação entre periferia e centro na gestão das traduções litúrgicas e o esquecimento de que a “vida eclesial” não pulsava mais nas veias do latim, mas sim nas das línguas nacionais, que não eram mais, há 50 anos já, línguas de tradução, mas línguas de experiência e de criação.
Uma retomada subsequente, na Páscoa de 2012, pelo Papa Bento XVI de uma carta aos bispos alemães sobre a questão do “pro multis” trazia à tona, mais uma vez, a força do “dispositivo-Ratzinger”: a tradução literal “fuer viele” devia se impor “afetivamente” e “com autoridade”, porque, no plano conceitual, devia ser desmentida por uma catequese acurada, que explicasse como “por muitos” significa “por todos”. Uma imagem de singular evidência da contradição interna ao “dispositivo-Ratzinger”.
3.4. Paralelismo ritual, com efeito anárquico: Summorum pontificum, monstrum romanae curiae
A última etapa desse percurso eficaz do “dispositivo” se encontra em 2007, com o motu proprio Summorum pontificum, mediante o qual, enquanto se criava um paralelismo de formas rituais do mesmo “rito romano”, fazia-se um despojamento da autoridade de orientar a liturgia eclesial ao longo das linhas da Reforma Litúrgica e colocavam-se novamente em vigor os ritos que a própria Reforma quisera superar, denunciando seus limites e suas distorções.
Também nesse caso, o Magistério “se autolimita” porque não teria a autoridade para orientar a tradição e as escolhas dos ministros ordenados individuais, mas, desse modo, restitui autoridade a formas de experiência pré-conciliar. O “dispositivo-Ratzinger” aqui argumenta de novo de modo a-histórico: “Aquilo que foi santo uma vez deve poder sê-lo sempre”.
Portanto, a Igreja não se reconhece nenhum poder de Reforma. Aquilo que foi, por si só, se perpetua sem qualquer possibilidade de orientação ou de conversão. E um princípio argumentativo, por si só negativo e puramente a-histórico, dá origem a efeitos históricos bastante graves: perda de controle dos bispos diocesanos, centralização do controle em um órgão “afetivamente condicionado” – a Comissão Ecclesia Dei –, a difusão de uma relevância “política” – em sentido eclesial e em sentido mundano – da “forma extraordinária” como “forma reacionária”.
O dispositivo de bloqueio não freou as coisas: certamente bloqueou o desenvolvimento da Reforma e gerou um verdadeiro “monstrum romanae curiae”, com consequências dilacerantes facilmente previsíveis.
Como é evidente, todos esses empregos do “dispositivo”, mesmo na sua diversidade de contextos e de intenções, fazem recurso a um “lugar-comum” secular do magistério. Todos têm em comum uma sutil dialética entre “perda de poder” e “tomada de poder”: no momento em que o magistério diz que “não tem autoridade”, ele deixa o “status quo” na autoridade. Ele tende a identificar aquilo que é com aquilo que deve ser. E, portanto, bloqueia o debate sobre a relação entre iniciação e cura, sobre o papel ministerial das mulheres, das formas da inculturação litúrgica e sobre o caminho orgânico da reforma litúrgica.
Não é difícil notar que esse “não reconhecimento de autoridade” se identifica com uma conservação do poder adquirido, muitas vezes se tornando princípio e alimento de uma arriscada inclinação à autorreferencialidade. E, como vimos, no “dispositivo-Ratzinger”, esse resultado é obtido mediante uma síntese original entre “apego afetivo” e “razão teológica reduzida ao princípio de autoridade”.
Em comparação com isso, o “retorno ao Concílio” do Papa Francisco parece marcado pela exigência de “restaurar autoridade” à ação eclesial. Só assim ela poderá sair da “tentação da autorreferencialidade”.
Mas, para fazer isso, ela deve assumir uma abordagem à tradição diferente. A Igreja não se reconhece como uma “história fechada”, como um “museu de verdades para guardar”, mas como um “jardim para cultivar”.
Por isso, seria muito útil reler o pontificado de Francisco, a cinco anos do seu início, não como uma forma incerta e “soft” de ministério pastoral, mas como uma reavaliação da forma com que a Igreja não renuncia a exercer a autoridade e supera o “dispositivo de bloqueio” que J. Ratzinger havia elaborado com tanta fineza há 35 anos.
Francisco assume a exigência de exercício da autoridade que os seus antecessores haviam suspendido, determinando sempre resultados caracterizados por “paralisia”. Francisco desarmou o dispositivo, mudando tanto o papel do apego afetivo, quanto o papel da razão teológica. Aqui, parece-me, coloca-se um elemento de profunda continuidade com o Concílio Vaticano II e de inevitável descontinuidade em relação ao “dispositivo-Ratzinger”. Cuja incidência, no entanto, ainda não entrou em declínio.
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''Dispositivo-Ratzinger'': uma das raízes da atual paralisia eclesial. Artigo de Andrea Grillo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU