05 Abril 2017
É preciso construir uma economia e uma Internet que funcionem para todos. Como a longa história das cooperativas pode contribuir para isso?
O artigo é de Trebor Scholz, publicado como segundo capítulo, revisado e adaptado por Outras Palavras, do livro Cooperativismo de Plataforma, publicado no Brasil pela Fundação Rosa Luxemburgo e editoras Elefante e Autonomia Literária. A tradução é de Rafael Zanatta.
Leia aqui o primeiro capítulo: Para que a internet não devaste a sociedade.
Eis o artigo.
Como começar? Em termos de bem-estar social e sustentabilidade ambiental, para cada vez mais pessoas, o capitalismo não está funcionando. Em teoria, a Internet pode ajudar a construir um mundo mais justo. Mas como a rede poderia ser distribuída e governada de modo diferente, para que fortaleça a solidariedade?
Se você está pensando em empregos seguros, salários mínimos, Saúde e Previdência dignas, nenhum desses assuntos pode ser resolvido fundamentalmente sem uma reorganização do trabalho, sem reformas estruturais. Nenhum desses assuntos pode ser enfrentado efetivamente se não revigorarmos a solidariedade, mudarmos a propriedade e introduzirmos a governança democrática.
Empresas da “velha guarda” geralmente oferecem aos trabalhadores o mínimo. A desconfiança no velho modelo extrativo, a economia da vigilância, o monopólio e a proliferação do ambiente de trabalho sem fronteiras levaram muitas pessoas a reviver o espírito do cooperativismo. Quais são as perspectivas de longo prazo para cooperativas digitais? Não seriam as cooperativas um modelo organizacional ultrapassado para o trabalho? Quem faz essa afirmação deve primeiro considerar que, globalmente, a economia solidária está crescendo: cooperativas empregam mais pessoas do que todas as multinacionais juntas.
Em seu livro Collective Courage, Jessica Gordon Nembhard descreve a experiência negra das cooperativas nos EUA como algo ligado a ativismo, enraizado na experiência da luta pelos direitos humanos. As cooperativas de consumo no Japão atendem a 31% dos lares no país, e a Mondragon, a maior corporação industrial da Espanha, é uma rede de cooperativas que, em 2013, empregava 74.061 pessoas. A Emilia-Romagna, uma área na Itália que incentiva participação dos empregados na propriedade, cooperativas de consumo e cooperativas agrícolas, tem taxas de desemprego menores do que outras regiões no país.1
Cerca de 40% de 36% do mercado de varejo da Dinamarca são formados por cooperativas, de acordo com Kelly. Já 45% do Produto Interno Bruto do Quênia e 22% do Produto Interno Bruto da Nova Zelândia vêm das cooperativas. Apesar de muitos percalços, seria difícil argumentar que o modelo está acabado.
No Reino Unido, por exemplo, mais de 200 mil pessoas trabalham em mais de 400 cooperativas de trabalho. Em Berlim, cidadãos estão formando cooperativas de bens essenciais para comprar e operar o sistema de energia da cidade.2 Na cidade alemã de Schönau, outra cooperativa de consumo coordena e opera tanto o sistema de energia quanto o fornecimento de gás da cidade.
Sem dúvidas, os desafios para as cooperativas são vastos. Pense na Walmart, que, depois do Departamento de Defesa dos EUA e do Exército de Libertação Nacional da China, é a terceira maior organização do mundo.3 Para as cooperativas, competir com tais gigantes não é nenhum passeio no parque. Mas, mesmo assim, nessa batalha para a imaginação do futuro do trabalho, quem devem ser os agentes de mudança? Seriam os donos das grandes plataformas de internet, os executivos-chefes, os capitalistas de risco? Ou deveríamos nos concentrar nos coletivos de trabalhadores ao lado de movimentos pela ampliação da cidadania?
Desde a primeira cooperativa moderna em Rochdale, na Escócia, em 1844, houve muito tempo para falar sobre cooperativas, dizem os críticos, para quem o modelo não funciona. Parcialmente, estão certos: em muitos países a maioria das cooperativas de propriedade dos trabalhadorxs não foi bem-sucedida. Mas também vale a pena ter em mente, como John Curl observa, que:
A própria existência de cooperativas desafia corporações e o capitalismo. Estas corporações sempre trabalharam para enfraquecer, descreditar e destruir cooperativas por meio de guerras de preços, aprovando legislações que minam sua viabilidade, rotulando-as na mídia como subversivas e como uma falha, e usando muitos outros estratagemas.4
Rosa Luxemburgo também era cautelosa quando se tratava de pensar as cooperativas como alternativas integrais ao capitalismo.
Trabalhadores que formam cooperativas no campo da produção enfrentam a necessidade contraditória de se governar com o mais elevado absolutismo. Eles são obrigados a tomar, para si próprios, o papel de empreendedor capitalista – uma contradição que conta para o fracasso habitual das cooperativas de produção, que ou se tornam empreendimentos capitalistas puros ou, se os interesses dos trabalhadores continuam predominando, terminam se dissolvendo.5
Todos os métodos são utilizados para permitir que um empreendimento aja contra seus competidores no mercado, escreveu Luxemburgo.6
Há, entretanto, o inegável e importante efeito que as cooperativas em todo o sistema. As cooperativas existentes mostraram que possuem empregos mais estáveis e proteções sociais mais confiáveis que modelos extrativos tradicionais. Não seria de nenhuma ajuda enxergar as cooperativas como alternativas cor de rosa; elas funcionam dentro do contexto capitalista onde são forçadas a competir. Redes de cooperativas como Mondragon não podem se dissociar da cadeia de fornecimento exploratória que dá combustível ao capitalismo.
Uma objeção comum às cooperativas é que elas são tão suscetíveis às pressões do mercado quanto qualquer empreendimento capitalista, o que torna a autoexploração inevitável. Eventualmente, as cooperativas também podem resultar em artimanhas para estágios não pagos e trabalho voluntário não compensado. As cooperativas estão expostas à competição sem dó do mercado, mas, à luz do lucro de 20% a 30% que empresas como Uber estão ganhando, uma possível resposta seriam cooperativas digitais que oferecessem seus serviços por preços mais baixos. Elas poderiam ter 10% de lucro, que seria parcialmente convertido em benefícios sociais para os trabalhadores. As cooperativas também poderiam florescer em mercados de nicho, focalizando, por exemplo, clientes de baixa renda como público-alvo.
As cooperativas têm sido um importante instrumento para a construção de poder econômico para grupos marginalizados. Karla Morales, da cooperativa de cuidado infantil Beyond Care, descreve os benefícios: “Em meu trabalho agora tenho licença médica, férias e direitos trabalhistas”.7 Os estados do sul dos EUA, por exemplo, têm uma longa história de cooperativas agrícolas que construíram autodeterminação econômica e social para comunidades afro-americanas.
Os céticos indicam o fato de que cooperativas de crédito não transformaram a economia como um todo, e as cooperativas de trabalhadores não se tornaram a linha de frente do socialismo. Mas é preciso pesar o benefício incontestável a longo prazo nesses empreendimentos. Aqui, os trabalhadores controlam seu próprio trabalho de um modo que contribui para seu crescimento. As cooperativas, não importa quão pequenas, constroem uma lógica que não se apoia na exploração dos trabalhadores. As cooperativas podem trazer criatividade não apenas ao consumo dos produtos, mas também à reorganização do trabalho.
Hannah Arendt observou que um vira-lata tem mais chance de sobreviver quando recebe um nome. Por isso, deem boas-vindas ao cooperativismo digital.
O conceito tem três partes. Primeiro, baseia-se na clonagem do coração tecnológico de Uber, TaskRabbit, Airbnb ou UpWork. Ele recebe a tecnologia, mas quer colocar o trabalho em um modelo de propriedade distinto. Adere a valores democráticos, para desestabilizar o “capitalismo de compartilhamento”, que beneficia somente poucos. É nesse sentido que o cooperativismo de plataforma envolve mudança estrutural, uma mudança de propriedade.
Segundo, o cooperativismo digital trata de solidariedade, que faz muita falta nessa economia baseada em força de trabalho dispersa e muitas vezes anônima. As plataformas tecnológicas capazes de viabilizar tal cooperativismo podem ser criadas e operadas por sindicatos inovadores, municípios e várias formas de cooperativas – por exemplo, as multissetoriais, as de propriedade dos trabalhadores ou as plataformas cooperativas de propriedade dos “produsuários”.
Terceiro, o cooperativismo digital é construído na ressignificação de conceitos como inovação e eficiência, tendo em vista o benefício de todos, e não a captura de lucros para poucos. Proponho dez princípios para o cooperativismo de plataforma, sensíveis aos problemas críticos que a economia digital enfrenta hoje.
De início, ao explicar o conceito de cooperativismo digital, preciso esclarecer que ele não tem a ver com a paixão ocidental pelos avanços na tecnologia – ele é uma mentalidade. Evgeny Morozov e Siva Vaidhyanathan estão absolutamente corretos em suas narrativas contra as “soluções tecnológicas” e o “a crença na Internet como solução”.8
O cooperativismo digital é um termo que descreve mudanças tecnológicas, culturais, políticas e sociais. O cooperativismo digital é um horizonte da esperança. Não é uma utopia concreta; é uma proposta emergente. Alguns modelos que serão apresentados a seguir já existem há dois ou três anos, enquanto outros ainda são aplicativos imaginários. Alguns são protótipos, outros são experimentos; e todos introduzem um conjunto alternativo de valores.
Por Rafael Zanatta
A história do cooperativismo no Brasil está ligada ao início da República e aos movimentos migratórios da Europa para substituição do trabalho escravo, em razão do processo de urbanização e mudanças das matrizes produtivas no país.
Em 1890, por meio do Decreto n. 796, foi criada a cooperativa de consumo “Cooperativa Militar do Brazil”, com objetivo de compra e venda de bens a militares. A cooperativa foi montada com divisão de quotas a sócixs acionistas, estrutura de deliberação e divisão dos lucros (acionistas, compradorxs, empregadxs e fundo de reserva).9 Em 1901, por meio do Decreto n. 4.287, foi criada a “Cooperativa Operária Carioca”, fechada a empregadxs da Fábrica de Fiação e Tecidos Carioca. O objetivo da cooperativa era garantir alimentos e restaurante pelos menores preços possíveis. Aos moldes das cooperativas inglesas, havia uma loja da cooperativa para venda de mercadorias ao público.10
Em 1903, no governo Rodrigues Alves, os sindicatos rurais e industriais foram autorizados a criar “cooperativas de produção e de consumo”. Após a Revolução de 1930, “consórcios profissionais cooperativos” poderiam se constituir livremente, bastando registro na Diretoria da Organização e Defesa da Produção, do Ministério da Agricultura.11 Durante esse período, surgiram inúmeras cooperativas agrícolas e cooperativas de trabalhadorxs imigrantes, especialmente alemãxs, italianxs e japonesxs. Em 1936, por exemplo, o Congresso dos Lavradores de Origem Alemã decidiu pela “instalação de uma cooperativa central em Curitiba em estreita conexão com a União Rural Paranaense”, o que evidencia a expansão do cooperativismo na área rural.12 Já no governo Vargas, surgiu em São Paulo o Departamento de Apoio ao Cooperativismo, responsável por políticas de fomento ao cooperativismo.
Entre as décadas de 1930 e 1970, o cooperativismo tornou-se mais próximo do Estado, com o apoio dos governos por meio de legislações específicas e incentivos fiscais. Em 1970, durante o regime militar, surgiu a Organização das Cooperativas Brasileiras (ocb), em substituição à União Nacional das Cooperativas (Unasco) e à Associação Brasileira das Cooperativas (abcoop).13 A partir de 1971, o governo federal e os governos estaduais diminuíram os incentivos às cooperativas, reformaram as instituições varguistas de apoio à “doutrina cooperativa” e estimularam uma visão empresarial aplicada ao cooperativismo.
A mudança da visão de cooperativismo, da empresarial à economia solidária, ocorreu com o governo Lula (2002-2010) e a criação da Secretaria Nacional da Economia Solidária dentro do Ministério do Trabalho do Emprego, responsável por fomentar formas solidárias e democráticas de organização do trabalho.
Atualmente, o setor agropecuário e o setor de crédito são os grandes setores do cooperativismo brasileiro. Segundo dados da ocb, as cooperativas movimentaram R$ 5,3 bilhões em 2015, exportando para 148 países. O Brasil possui mais de 6,5 mil cooperativas, reunindo 13 milhões de cooperadxs. No entanto, há raras cooperativas dedicadas ao setor de tecnologia e serviços online.14
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Notas:
1. Kelly, Marjorie. Owning Our Future: the emerging ownership revolution. Berrett-Koehler, 2012.
2. Das-ziel. Büerger-Energie Berlin.
3. Cf. Daniel Schlademan, da OurWalmart: Schlademan, Daniel. Platform Cooperativism: The Internet, Ownership, Democracy. 13 nov. 2015.
4. ver.di. Innovation und Gute Arbeit. Digitale Arbeit.
5. Citado por Gasper, Phil. Are Workers’ Cooperatives the Alternative to Capitalism? International Socialist Review, n. 93, 1-4 jul. 2014.
6. Ibidem.
7. Morales, Karla. Platform Cooperativism: The Internet, Ownership, Democracy, 13-14 nov. 2015.
8. N.R. Para referências, ver Morozov, Evgeny. To Save Everything, Click Here: The Folly of Technological Solutionism. PublicAffairs, 2014 e Vaidhyanathan, Siva. The Googlization of Everything: And Why We Should Worry. University of California, 2011.
9. Brasil. Decreto n. 796, de 2 de outubro de 1890.
10. Brasil. Decreto n. 4.287, de 23 de dezembro de 1901.
11. Brasil. Decreto n. 23.611, de 20 de dezembro de 1933, art. 16. .
12. Congresso de Lavradores Paranaenses de Origem Allemã. A República, Curitiba, 8 jan. 1930.
13. Organização das Cooperativas Brasileiras. ocb: 44 anos desenvolvendo o cooperativismo brasileiro.
14. Zanatta, Rafael A. F. E se a internet deixar de ser capitalista? Outras Palavras. 02 abr. 2016.
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A ascensão do cooperativismo digital - Instituto Humanitas Unisinos - IHU