01 Julho 2016
"Há uma tendência em se sustentar como fatalidade a desigualdade econômica e a discriminação de pessoas por sua cor, religião e outras diferenças, pela chamada “consciência possível” ou seja, quando um determinado poder político-social dominante, seja ele privado (como o da casa grande) ou público (como o do Estado) consiga sentir que uma determinada forma do seu exercício é opressora, injustificada, desumana e cruel sobre outras pessoas (senzala), só então reagindo para corrigi-la", escreve Jacques Távora Alfonsin, procurador aposentado do estado do Rio Grande do Sul e membro da ONG Acesso, Cidadania e Direitos Humanos.
Eis o artigo.
Dia 3 de julho próximo completam-se 65 anos da famosa lei Afonso Arinos (nº 1390 de 1951), a primeira lei brasileira prevendo pena para a discriminação de pessoas, por “preconceito de raça ou de cor.”
Zumbi morrera em 1695, a “abolição” da escravatura - se é que ainda se pode chamar assim - deu-se em 1888, e só quase um século depois esse preconceito sofreu censura em lei como uma simples contravenção penal. Até ser reconhecido como crime a ser punido com mais rigor, ampliando-se as hipóteses da sua verificação, exigiu muito sofrimento e humilhação das suas vítimas como se pode ver nas leis subsequentes a 1390.
A lei 7437 de 1985 acrescentou ao preconceito de raça e de cor os de sexo e estado civil e a lei 7716 de 1989, posterior a Constituição Federal vigente, foi alterada pela 9.459, de 1997, acrescentando os de etnia, religião ou procedência nacional. Essa buscou dar efeito concreto aos incisos XLI e XLII do artigo 5º da Constituição Federal. O primeiro prevê que “a lei punirá qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais” e o segundo dispõe: “a prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível.”
Direta ou indiretamente outras leis procuram ampliar a previsão de casos suscetíveis de caracterizarem discriminação indevida de pessoas, não somente por sua cor ou etnia. Até o Superior Tribunal de Justiça, por sua Corregedoria, baixou o Provimento 52, facilitando o registro de nascimento de filhos havidos por reprodução assistida, feito por casal hetero ou homoafetivo, sujeitos de direito sabidamente discriminados no Brasil.
Tramita na Câmara dos deputados um projeto de lei da Deputada Maria do Rosário (7582/2014), cujo artigo 2 º determina:
Toda pessoa, independentemente de classe e origem social, condição de migrante, refugiado ou deslocado interno, orientação sexual, identidade e expressão de gênero, idade, religião, situação de rua, e deficiência, goza dos direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sendo - lhe asseguradas as oportunidades para viver sem violência, preservar sua saúde física e mental e seu aperfeiçoamento moral, intelectual e social.
Esse histórico indica como a evolução da lei pretensamente garante de direitos humanos, e de correção de desigualdades geradas por exclusão social é muito mais lenta e sofrida do que as impostas em favor de direitos patrimoniais. Com poucas exceções os males do racismo e de outras discriminações se refletem predominantemente em pessoas pobres, aí alcançando também a etnia branca. A defesa de muitas dessas formas de separar, humilhar, dividir e desprezar as pessoas, sem qualquer justificativa plausível tem resistido, introjetada ideológica e culturalmente em parte grande na parte da uma sociedade que facilmente se absolve da sua responsabilidade sobre as causas dessa fratura social.
Entendendo-se legitimada por sua superioridade de renda, essa jamais admite seu propósito de ser preservada e reproduzida, independentemente do prejuízo que isso provoque no povo pobre. O eu se cuda contra o tu e nem quer saber do nós. Em “A verdade e as formas jurídicas” (Rio de Janeiro: Nau, 2009) Michel Foucault mostra o efeito desse modo de condicionar a realidade sobre as próprias leis, em moldura realista e crua. Ele recorda a palavra de um bispo Watson, dirigindo-se à classe rica do seu tempo (1804), parecendo nem notar o seu cinismo:
“As leis são boas, mas infelizmente, são burladas pelas classes mais baixas. As classes mais altas, certamente, não as levam em consideração. Mas esse fato não teria importância se as classes mais altas não servissem de exemplo para as mais baixas” {...} “Peço-lhes que sigam essas leis que não são feitas para vocês, pois assim ao menos haverá a possibilidade de controle e de vigilância das classes mais pobres”
Com o maior respeito às opiniões em contrário, como costumam dizer os juristas, a avalanche de projetos de lei, ora em tramitação no Congresso Nacional, particularmente impulsionados durante a presidência de Eduardo Cunha na Câmara, atendem, como sempre disfarçado na letra, o espírito da proposta desse bispo. O governo interino parece disposto a seguir esse modelo, tão grande tem sido o seu empenho em explicar as “duras e amargas medidas” necessárias para o Brasil “recuperar a sua credibilidade”. Não a credibilidade social, evidentemente.
Há uma tendência em se sustentar como fatalidade a desigualdade econômica e a discriminação de pessoas por sua cor, religião e outras diferenças, pela chamada “consciência possível” ou seja, quando um determinado poder político-social dominante, seja ele privado (como o da casa grande) ou público (como o do Estado) consiga sentir que uma determinada forma do seu exercício é opressora, injustificada, desumana e cruel sobre outras pessoas (senzala), só então reagindo para corrigi-la.
Trata-se de uma desculpa extraordinariamente cômoda para quem foi ou é racista, afeito a opressão sobre outras pessoas como coisa natural, e extraordinariamente ofensiva para quem sofre todas as humilhações e injustiças da discriminação. É como se a dignidade de qualquer vítima dessa injustiça dependesse de terceiros que estão aguardando um chamado do seu juízo para não fazer o mal e fazer o bem.
Depois de tantos anos da lei Afonso Arinos, espera-se que tantos retrocessos sociais como os que estão sendo programados agora, não exijam ser vencidos por novas lutas populares, como as que João Bosco e Aldir Blanc celebrizaram na voz de Elis Regina, em homenagem ao marinheiro negro João Candido, chefe da famosa “Revolta da Chibata” de 1910, que passou a história com o apelido de Almirante Negro. A canção, ainda hoje entoada nos encontros ds movimentos de defesa dos direitos humanos termina assim:
Glória a todas as lutas inglórias / Que através da nossa história
Não esquecemos jamais. / Salve o navegante negro/ Que tem por monumento / as pedras pisadas do cais / Mas faz muito tempo.
Justamente por fazer tanto tempo, a lição deve ter sido aprendida e a luta de hoje não pode ser inglória.
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Uma data para lembrar o racismo como parte da exclusão social - Instituto Humanitas Unisinos - IHU