"Coração é, na Bíblia, a sede da razão, da decisão, mais do que sentimento. Deus, fonte de conhecimento, colocou a lei no nosso coração (Jr 31, 3.33) para que possamos decifrá-la e vivê-la. A falta de razão das lideranças judaicas e romanas crucificaram Jesus na cruz." escreve Frei Jacir de Freitas Faria, OFM, ao comentar o Evangelho de João 19,31-37, e a sua relação com a festa do Sagrado Coração de Jesus, história e atualidade.
Frei Jacir é doutor em Teologia Bíblica pela FAJE-BH. Mestre em Ciências Bíblicas (Exegese) pelo Pontifício Instituto Bíblico de Roma. Professor de exegese bíblica. Membro da Associação Brasileira de Pesquisa Bíblica (ABIB). Padre Franciscano. Autor de dez livros e coautor de quatorze. Último livro: O Medo do Inferno e a arte de bem morrer: da devoção apócrifa à Dormição de Maria às irmandades de Nossa Senhora da Boa Morte (Vozes, 2019).
O evangelho sobre o qual vamos refletir é Jo 19,31-37. Trata-se da agonia final de Jesus na cruz. Ele acabara de morrer. Vieram soldados com a ordem de Pilatos para quebrar as suas pernas. Por que isso? Para que isso? A pergunta, com certeza, mais inquietante é por que ler essa passagem no dia dedicado ao Sagrado Coração de Jesus? A Sexta-Feira Santa já está distante. Estranho? Não. Então, que relação existe entre coração e cruz? Ah! Outra pergunta: o que significa jorrar água e sangue do lado aberto de Jesus? Resta-nos, então, refletir a partir desses quatro elementos que formam dois pares: o coração e a cruz, o sangue e a água.
Vamos à primeira resposta às perguntas, a de ordem histórica. A devoção ao Sagrado Coração de Jesus surgiu com a religiosa Margarida Maria Alacoque. Era o ano de 1675. Segundo a tradição, ela teve uma visão de Jesus mostrando-lhe o seu coração e pedindo que fosse realizada uma celebração em honra ao Sagrado Coração de Jesus, no oitavo dia depois da festa de Corpus Christi, isto é, numa sexta-feira. Nesse dia, todos deveriam comungar e fazer o desagravo do Coração de Jesus com muita piedade. O povo tinha medo de comungar. Havia um sentimento de poder comungar a própria condenação ao inferno. Essa visão é fruto dos ensinamentos de um holandês, chamado Cornélio Jansênio. Ele pregava um Deus carrasco que punia os pecadores. O pedido de comungar e, mais tarde, de nove sextas-feiras ou o ano todo, em honra ao Sagrado Coração de Jesus foi uma resposta ao jansenismo.
O outro pedido, o do desagravo do Sagrado Coração, é uma devoção, uma piedade popular antiga na Igreja que consiste em fazer um ato de reparação de algo que foi feito de maneira errada. Por exemplo: o Santíssimo foi profanado. Então, era necessário fazer um ato de desagravo do Santíssimo. O desagravo do Sagrado Coração de Jesus se justifica porque segundo o evangelho de João, e somente ele, Jesus recebeu um golpe indevido de lança no seu coração, uma violação (Jo 19,34), seu coração foi dilacerado. O amor não foi amado. E o que é pior, Jesus morreu na cruz sem ser culpado de nada. Esse é o sentido da festa do Sagrado Coração, que logo se espalhou pela Europa e pelo mundo cristão.
Na Bíblia há várias citações do substantivo coração. Ele aparece 853 vezes. Para exemplificar: povo tinha o coração indócil (J 5,23); o Faraó do Egito era de coração duro (Ex 7,14); mudar de vida é rasgar o coração (Jl 2,13); o judeu é chamado a ter um coração puro (Sl 51,12); Jesus é manso e humilde de coração (Mt 11,24-30).
Coração é, na Bíblia, a sede da razão, da decisão, mais do que sentimento. Deus, fonte de conhecimento, colocou a lei no nosso coração (Jr 31, 3.33) para que possamos decifrá-la e vivê-la. A falta de razão das lideranças judaicas e romanas crucificaram Jesus na cruz. Nela, Jesus teve o coração dilacerados por anônimos soldados que representavam o poderoso Pilatos, de coração duro e mãos impuras, as quais foram lavadas com o sangue de Jesus.
Uma coisa é certa: a cruz tem relação com o coração e o coração com a cruz. Na cidade do Divino, Divinópolis (MG), está sendo construída uma cruz de 74 metros de altura dedicada ao Espírito Santo. Duas outras, no Líbano e no México, dedicadas ao Pai e ao Filho, já foram construídas. Chama a atenção, nas imagens de divulgação, a presença do coração de Jesus no centro da cruz.
Os dois outros elementos que aparecem em Jo 19,31-37 são o sangue e a água. Jesus e dois ladrões estavam crucificados. Era o final de uma sexta-feira. No sábado, que para os judeus começa às 18h da sexta-feira, não poderia ter um morto exposto. Isso causaria impureza no sábado de Páscoa. Portanto, era preciso terminar o serviço, isto é, causar a morte definitiva e tirar os corpos da cruz, expostos aos corvos famintos. Os soldados quebraram as pernas dos dois ladrões, de modo que pudessem morrer por asfixia. Ao aproximarem de Jesus, a surpresa, ele já estava morto. Isto quer dizer que Jesus é o cordeiro imolado sem defeito que seria oferecido na Páscoa judaica.
No corpo de Jesus, um dos soldados golpeia com a lança e abre o seu lado. Seria o lado do coração? Pode ser. Há quem interprete que a lança entrou pelo lado direito e atingiu o coração. Na aparição aos discípulos, Jesus mostra três vezes esse lado chagado (Jo 20,20.25.27). Como vimos, esse relato em Jo 19,31-37 tornou-se o mais importante para justificar o ato reparatório do Sagrado Coração de Jesus. O simbolismo do Jesus morto numa cruz injustamente nos convida a um ato de pedido de perdão, de reparação, de conversão em direção à uma vida nova que jorra do corpo morto. Que paradoxo, a salvação vem pela morte! Mas, como que de um corpo morto pode jorrar sangue e água?
Santo Agostinho e tantos outros intérpretes dessa passagem procuram respostas, das quais, destaco algumas. A água e o sangue são os preciosos líquidos que nos mantêm vivos. O nosso corpo é um rio de sangue que passa pelas veias, rodeadas de carne embebecida por um rio abundante de água, reabastecido a cada vez que a tomamos. Jesus, o Divino, é também humano, é o que quis dizer João com esse acontecimento.
O sangue significa a morte violenta de Jesus que nos salva, assim como os seus conterrâneos reparavam o pecado com sangue de bode aspergido no altar do sacrifício (Lv 16). O sangue faz a memória do corpo de Cristo na Eucaristia, assim como o doloroso o martírio dos primeiros cristãos que derramavam seu sangue para testemunhar a ressurreição de Jesus.
A água simboliza o banho que purifica o velho Adão, o ser humano. Ela nos purifica como com um novo dilúvio (Gn 6,5–9,17). As águas batismais nos purificam e nos preparam para uma vida a caminho, guiado pelo Espírito Santo, no Pai e no Filho.
João viu e deu o seu testemunho de que tudo aquilo era verdadeiro (Jo 19,15). Os outros que olharão são futuros adeptos da fé em Jesus.
Jesus, humanamente falando, é o ser humano, o Adão que dorme, morto na cruz, para dele sair a ‘mãe dos viventes’, a Eva que, simbolicamente, gera a comunidade de fé, a ‘nova mãe dos viventes’. A mãe que nos acolhe hoje. Nós, os cristãos seguidores do coração e da cruz, no sangue e na água da vida presente e futura. Amém! Amém! Amém!