Por: André | 09 Mai 2014
Para discernir os pastores dos mercenários, a última frase do evangelho de hoje nos oferece uma pista interessante: “Eu vim para que as ovelhas tenham vida e para que a tenham em abundância” (Jo 10,10b). O que quer dizer que cada vez que escutamos uma palavra que liberta, que salva, que reconforta, que dá esperança e vida, devemos seguir a voz de quem a profere. Mas quando ouvimos uma voz que julga, condena e exclui, há fortes indícios de que estamos na presença de um mercenário, de um falso pastor, de um ladrão ou de um salteador.
A reflexão é de Raymond Gravel, padre da Diocese de Joliette, Canadá, e publicada no sítio Réflexions de Raymond Gravel, comentando as leituras do 4º Domingo da Páscoa – Ciclo A do Ano Litúrgico (11 de maio de 2014). A tradução é de André Langer.
Referências bíblicas:
Primeira leitura: At 2,14a.36-41
Segunda leitura: 1Pd 2,20b-25
Evangelho: Jo 10,1-10
Eis o texto.
Todos os anos, o quarto domingo da Páscoa é o domingo dedicado às vocações, inspirado no evangelho de João 10, o Bom Pastor, dividido em três partes; este ano, temos a primeira parte: Jo 10,1-10. Nesse trecho, o Jesus de João não se apresenta como o pastor das suas ovelhas; ele se apresenta como a porta do curral das ovelhas: uma porta grande e aberta para a livre circulação. Que mensagens podemos extrair deste evangelho de hoje?
1. A vocação decorre do batismo
Durante muito tempo, na Igreja, o termo vocação era reservado às vocações consagradas: padres e religiosos(as). Hoje, com a diminuição do número de padres e religiosos(as), o termo vocação ampliou-se e dirige-se a toda pessoa que, pelo seu batismo, se sente chamada a exercer um ministério, uma função, na Igreja, em sua comunidade humana e cristã. É verdadeiramente vocação, pois decorre do batismo. No Pentecostes, nos diz o livro dos Atos dos Apóstolos, na primeira leitura de hoje, Pedro e os Onze Apóstolos anunciam a Ressurreição de Jesus e convidam todos a viver ressuscitados. Ao dizer que Deus fez de Jesus crucificado o Cristo e Senhor, Pedro dirige-se não somente aos judeus, mas também aos gregos, uma vez que os cristãos de origem judaica invocam Jesus como Senhor, ao passo que os cristãos de origem grega o invocam como Cristo.
E o texto precisa que todos aqueles e aquelas que escutam este anúncio da Ressurreição ficaram aflitos com o discurso de Pedro: “Ao ouvirem essas coisas, ficaram compungidos no íntimo do coração e indagaram de Pedro e dos demais apóstolos: ‘Que devemos fazer, irmãos?’” (At 2,37). E a resposta não foi tornar-se padre ou religioso(a); a resposta foi: o batismo da água e do Espírito, a conversão e o compromisso. “Arrependei-vos e cada um de vós seja batizado em nome de Jesus Cristo para remissão dos vossos pecados, e recebereis o dom do Espírito Santo” (At 2,38). É, portanto, pelo batismo que nos identificamos com o Cristo ressuscitado e é pelo dom do Espírito (a confirmação do batismo) que podemos nos comprometer a viver ressuscitados.
2. A quem se dirige esta parábola?
Recordemo-nos que no quarto Domingo da Quaresma tivemos o relato do cego de nascença (Jo 9), o texto que precisa a parábola de hoje. Neste relato, víamos muito bem a problemática que prevalecia no tempo de São João, quando os cristãos eram não somente perseguidos pelos romanos, mas também condenados pelos judeus e excluídos das suas sinagogas. Portanto, a parábola de hoje dirige-se em primeiro lugar aos fariseus, certamente, mas também aos chefes religiosos da Igreja primitiva que se achavam os únicos detentores da verdade sobre Deus e proprietários da fé do Povo de Deus. Esses chefes se consideravam como os únicos guias das ovelhas do Senhor. São João é muito duro com eles; ele os trata como ladrões e salteadores: “Em verdade, em verdade vos digo: quem não entra pela porta no aprisco das ovelhas, mas sobe por outra parte, é ladrão e salteador” (Jo 10,1). “O ladrão não vem senão para furtar, matar e destruir” (Jo 10,10a).
O verdadeiro pastor chama cada uma das suas ovelhas pelo seu nome (Jo 10,3). Assim, realiza-se a profecia de Isaías 43: “Chamei-te pelo teu nome, tu és meu”, e como canta tão bem o Salmo 22: “O Senhor é meu pastor, nada me faltará”. O mau pastor não conhece as suas ovelhas; é um desconhecido para elas. Elas têm medo dele, fogem dele, porque elas não reconhecem a voz dos desconhecidos (Jo 10,5). Na Igreja de hoje, os pastores devem dar provas de muito amor se quiserem testemunhar o Cristo da Páscoa, porque os cristãos se sabem amados por Deus. De sorte que, se os discursos da Igreja estão desconectados das pessoas, da sua vivência, da sua realidade, e se as nossas palavras condenam mais do que encorajam, dispersamos mais do que reunimos e as ovelhas não podem nos considerar como pastores.
3. Cristo é a porta
E é uma porta grande e aberta que favorece a circulação com toda a liberdade: “Eu sou a porta. Se alguém entrar por mim será salvo; tanto entrará como sairá e encontrará pastagem” (Jo 10,9). As ovelhas ou os pastores entram pela porta: “Mas quem entra pela porta é o pastor das ovelhas” (Jo 10,2). Mas, o que fazemos para reconhecer o verdadeiro pastor? Nós o reconhecemos na sua relação com as ovelhas. É uma relação de intimidade, de confiança recíproca, de amor e de liberdade: “A este o porteiro abre, e as ovelhas ouvem a sua voz. Ele chama as ovelhas pelo nome e as conduz à pastagem” (Jo 10,3).
O bom pastor é, evidentemente, o Cristo, mas são também seus discípulos, aquelas e aqueles que trabalham para ele. Na Igreja de São João, eram Pedro, Tiago, João, Filipe, Paulo e todos os outros, mas também, sem dúvida, as mulheres: Maria Madalena e a outra Maria, Marta e tantas outras que testemunharam o Cristo vivo na vida das primeiras comunidades. Na Igreja de hoje, é o Papa Francisco que, no último ano, traz esse vento de frescor que nos diz algo do Ressuscitado. São também muitos bispos, padres, religiosos(as), cristãos e cristãs engajados em nome do seu batismo, que trabalham por um mundo melhor. Esses pastores não têm medo de abrir as portas para libertar as pessoas de uma religião esclerosada, uma religião de condenação e de exclusão. É por isso que esses pastores dão, muitas vezes, a sua vida para perseguir a missão do Cristo da Páscoa. Jesus dirá mais adiante: “Eu sou o bom pastor. O bom pastor dá a sua vida pelas ovelhas” (Jo 10,11). Ainda hoje, essas podem ser as consequências da missão...
No Concílio Vaticano II, o Papa João XXIII abriu as portas e as janelas da Igreja para arejar, para permitir uma melhor circulação, para libertar os cristãos que estavam doentes numa Igreja dogmática e doutrinal. A partir de então, procura-se por todos os meios fechar as portas para poder controlar melhor. Elevou-se a barra e as exigências ficaram mais severas. O resultado: há cada vez menos pessoas que se referem à Igreja, porque os cristãos não reconhecem mais os pastores de que necessitam. É por isso que o evangelho de hoje deve nos interpelar, a nós que somos da Igreja. Felizmente, temos um papa que reúne mais em torno do Cristo do evangelho. Ele compreendeu que é preciso abrir a porta que é o Cristo, grande, para permitir que todas as ovelhas circulem livremente. Se quisermos ser fiéis a Cristo e à nossa missão cristã, devemos abrir a porta para o mundo a fim de que todos possam entrar na Igreja com toda a liberdade.
Mas, cuidado com os mercenários! Eles estão por aí ainda hoje. Eles podem estar vestidos como discípulos de Cristo, mas são ladrões e bandidos. Para discernir os pastores dos mercenários, a última frase do evangelho de hoje nos oferece uma pista interessante: “Eu vim para que as ovelhas tenham vida e para que a tenham em abundância” (Jo 10,10b). O que quer dizer que cada vez que escutamos uma palavra que liberta, que salva, que reconforta, que dá esperança e vida, devemos seguir a voz de quem a profere. Mas quando ouvimos uma voz que julga, condena e exclui, há fortes indícios de que estamos na presença de um mercenário, de um falso pastor, de um ladrão ou de um salteador. Esse último não está a serviço das ovelhas; ele se serve delas para se convencer da sua autoridade e do seu prestígio pessoal.
Na Igreja de hoje, assim como naquela de São João, devemos dar provas de compreensão, de abertura, de acolhida, de compaixão, de tolerância e de perdão, caso quisermos multiplicar a vida em abundância e semear a esperança. Se nós asfixiamos as pessoas, se nos recusamos a acolhê-las sem julgá-las, se nós as condenamos, não podemos pretender querer dar a vida em abundância àquelas e àqueles que nos são confiados. Todos e todas nós temos esta responsabilidade de dar a vida em abundância. É a mais bela das vocações e é a única maneira de ser fiel ao Cristo Bom Pastor e de sê-lo em seu nome...
Para terminar, eu gostaria simplesmente de citar o comentário do teólogo francês Gérard Bessière, que nos convida a respirar o sopro de Deus: “Uma porta aberta. Jesus se compara a uma porta... aberta! Somos impactados pela luz que vem de fora e pelo ar vivificante. Nós ouvimos sua voz. Não é a uma tropa que ele se dirige, mas a cada uma e cada um. Ele conhece todos os nomes. Nada de manipulação de massas! À sua voz, nos colocamos em marcha, nunca devemos parar de caminhar... Ele disse que era o caminho, e também que ele veio para que os homens tenham a vida, a vida em abundância. Houve, há e haverá pretensos pastores, líderes, gurus, ídolos que roubam a liberdade, destroem as pessoas e asfixiam a verdadeira vida. Jesus, com frequência, dirigiu-se contra a pretensão daqueles que querem fazer a lei para os outros e impor seu poder. Jesus abre os olhos dos homens, coloca-os em pé, dá-lhes a palavra, convida-os a tomar o caminho. O oxigênio que aí respiramos é, parece, o sopro do próprio Deus...”.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Cristo: uma porta grande e aberta (Jo 10,1-10) - Instituto Humanitas Unisinos - IHU