07 Abril 2017
Fiquei pensando sobre isso e me dei conta de que, talvez, tenhamos construído no RS uma subcultura em torno de uma ideia genérica de 'supremacia gaúcha'. Se isso ocorreu, teremos sido amaldiçoados duplamente, pela burrice e pela arrogância, escreve Marcos Rolim, jornalista e doutor em Sociologia, em artigo publicado por ExtraClasse, 05-04-2017.
Eis o artigo.
Algo mais grave e profundo acontece com o Rio Grande. Não me refiro à política ou ao desastroso governo estadual, bem entendido, até porque, na comparação, há situações piores. Imaginem, por exemplo, o que devem ter passado os fluminenses com os governos de Sérgio Cabral, para lembrar apenas uma das lideranças do PMDB que sempre contou com “o poder, a simpatia, o algo mais e a alegria” de Lula e do PT.
Meu ponto é outro. Aliás, reduzir as dificuldades do RS à crise financeira do Estado já é sintoma. O que há de mais preocupante tem suas origens em tempos pretéritos e em uma pasmaceira que se firmou faz muito. O que deveria nos inquietar, assim, é o que vai do entorno à alma nossa; o que se prolonga dos pressupostos que compartilhamos ao futuro que, sem querer, estamos tecendo.
Ano passado, a convite da professora Esther Grossi, fui ao Maranhão para uma palestra aos professores da rede pública estadual. No dia em que cheguei a São Luís, os jornais traziam a notícia da abertura de concurso para a contratação de professores, decisão do governador Flavio Dino (PCdoB), e a informação do salário-base: R$ 5 mil. Li e me belisquei. Salário-base de 5 mil reais para professores do Estado, no Maranhão? Na terra destroçada pelos sarneys, lobões et caterva? A surpresa, na verdade, havia se apresentado apenas porque, no latifúndio de minha ignorância sobre o Maranhão, não havia espaço para uma política virtuosa; muito menos para uma decisão pública de investimentos tão expressivos em Educação.
Fiquei pensando sobre isso e me dei conta de que, talvez, tenhamos construído no RS uma subcultura em torno de uma ideia genérica de “supremacia gaúcha”. Se isso ocorreu, teremos sido amaldiçoados duplamente, pela burrice e pela arrogância. Viver no RS, nessa hipótese, significaria a ameaça de contentar-se com os “horizontes da cerca”, com a rusticidade do rancho, com uma ideologia, enfim, que naturaliza a pobreza de espírito e promove uma autocomplacente alienação regional.
O último grande texto literário de um autor gaúcho foi Assim na Terra, de Luiz Sérgio Metz. Ele foi lançado há mais de 20 anos, em 1995 (em 2013, houve uma reedição da Cosac Naify). A morte precoce do autor nos subtraiu o encantamento de uma prosa poética sem precedentes. Nos demais ramos da cultura que se produz no RS, o cenário também não autoriza otimismo. Nossos maiores artistas formam um pequeno clube de heróis que, por sobre dificuldades e descasos, alimentam ilhas de sensibilidade e bom gosto. O mesmo se pode dizer a respeito de cineastas, documentaristas, fotógrafos, dramaturgos, carnavalescos, produtores e sobre todos os demais protagonistas do campo cultural. Dificuldades análogas são experimentadas pelos cientistas e pesquisadores. Há, por certo, coisas importantes ocorrendo, gente com extraordinário potencial escrevendo, pintando, projetando, mas tudo sempre e radicalmente de forma isolada, longe das instituições, do financiamento e do grande público. Com o passar dos anos, inevitavelmente, também longe do RS. Tempos de vacas magras e leite contaminado, em síntese.
Pergunto, em que área o RS constitui vanguarda nacional? Quais os setores de excelência que, na comparação com os demais estados, se destacam? Podemos cogitar alguns exemplos, mas será conveniente confirmá-los. O que se pode afirmar é que, em várias áreas decisivas para o futuro, vamos de mal a pior. Os casos mais emblemáticos parecem ser os da Educação e da Segurança. Já houve tempo em que fomos referência na Educação Pública. Sem comentários. Na Segurança, tivemos, há algumas décadas, pelo menos o conforto de dizer que não tínhamos problemas comuns aos demais estados como presos em delegacias, lideranças policiais associadas ao crime organizado, guerra de facções, arrastões etc. Agora temos tudo isso e mais um tanto, enquanto estados tradicionalmente abalados pela violência tiveram conquistas estratégicas e foram capazes de reduzi-la significativamente (as experiências mais conhecidas são as de São Paulo, Rio, Minas e Pernambuco).
O historiador Tau Golin tem dito que o Rio Grande do Sul perdeu sua imaginação. Para ele, foi se alimentando entre os gaúchos um passadismo reacionário e mítico que reproduz uma perspectiva sempre avessa ao universalismo e à ilustração. Chamou isso de “a maldição do boi”, uma espécie de destino ruminante capaz de nos cativar, uns mais outros menos, em torno da repetição. Não sei se é isso, mas faz sentido. Alguém dirá que as lides campeiras e a relação com a natureza fundam dinâmicas que podem ser simbolizadas por valores culturais e estéticos apreciáveis. É verdade. Há, inclusive, mundos à parte, de competição e excelência, que traduzem a coragem, a determinação e a arte do homem do campo. Quem assistir aos episódios de Fearless, oito segundos para a glória (Netflix) conhecerá um desses mundos, o dos montadores de touros que disputam o campeonato mundial. Na prática, considerada uma das mais perigosas do mundo, os brasileiros superam os cowboys americanos, ganhando títulos, fãs e milhões de dólares. Os gaúchos até que poderiam se dar bem aí, não é verdade? Nossos campeões, entretanto, são todos paulistas, mineiros e goianos. Eita.
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A maldição do boi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU