25 Janeiro 2013
Para Thomas Merton, o contemplativo deve se identificar com as pessoas que são de algum modo oprimidas ou demonizadas pela sociedade. Enquanto a sociedade branca "persistir em se aferrar à sua condição atual e à sua própria imagem de si mesma como a única realidade aceitável", então não haverá espaço para a mudança real e "inevitavelmente haverá violência".
A opinião é do teólogo norte-americano Alex Mikulich, membro do Jesuit Social Research Institute, da Loyola University, nos EUA. Sua pesquisa versa sobre o racismo na Igreja Católica e na sociedade em geral. O artigo foi publicado na revista JustSouth Quarterly, da primavera de 2012. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
Enquanto muitos dos livros de Thomas Merton ajudaram um amplo público leigo a entender e a se engajar em práticas de misticismo e budismo ocidentais, a sua postura profética e contemplativa contra o racismo branco ainda precisa ser entendido, e muito menos praticado, por uma massa crítica de pessoas brancas de fé. Talvez isso se deva parcialmente ao fato de ele diretamente (embora compassivamente) chamar os brancos a confrontar a nossa cumplicidade em curso com o excesso de privilégios e a opressão das pessoas de cor.
Quando Merton escreveu Letters to a White Liberal [Cartas a um branco liberal], no início do verão de 1963, em resposta aos sinais dos tempos e à "Carta da Prisão de Birmingham" do Dr. Martin Luther King Jr., de 16 de abril de 1963, ele articulou uma espiritualidade duradoura de um contemplativo em ação. As “Cartas a um branco liberal” formam a base para o livro Seeds of Destruction [Sementes de Destruição] (Farrar, Straus and Giroux, 1964).
Por "branco liberal", Merton não se refere a progressistas partidários. Ao contrário, ele se refere a qualquer pessoa branca, especialmente cristã, que afirme boas intenções para com todas as pessoas, incluindo os afro-americanos.
Sementes da Destruição começa observando que a vida contemplativa não é uma abstração ou uma fuga do mundo. As comunidades monásticas estão totalmente envolvidas na pecaminosidade do mundo, explica Merton, e devem testemunhar a conversão batismal ao amor de Deus no meio do egoísmo e da injustiça mundanos. Quando as comunidades monásticas permaneceram em silêncio na Europa na primeira metade do século XX, nota Merton, muitas vezes elas estavam "apoiando publicamente os movimentos totalitários".
Contemplativos, leigos e monásticos são chamados a testemunhar a misericórdia, a verdade e a justiça de Deus em meio ao conflito terreno. Se eu devo viver um voto de pobreza, reflete Merton, "parece ilusório se eu não me identificar, de alguma forma, com a causa das pessoas que tem seus direitos negados e são forçadas, em grande parte, a viver na miséria abjeta".
O sucesso da legislação dos direitos civis "não é o fim da batalha, mas apenas o começo de uma fase nova e mais crítica do conflito". As alterações na lei não podem mudar as mentes, os corações ou a fonte da violência na sociedade. Assim como a análise de King dos triplos males do racismo, do militarismo e do consumismo, Merton também vê o racismo branco como intimamente interligado com o militarismo e a propensão norte-americana a pôr o lucro antes das pessoas.
O contemplativo deve se identificar com as pessoas que são de algum modo oprimidas ou demonizadas pela sociedade. Enquanto a sociedade branca "persistir em se aferrar à sua condição atual e à sua própria imagem de si mesma como a única realidade aceitável", então não haverá espaço para a mudança real e "inevitavelmente haverá violência".
Merton acreditava que o país estava em um impasse que exigia a transformação da sociedade. As sementes da destruição estão presas no solo dos desejos das pessoas brancas a manter o poder e o privilégio acima e contra a dignidade fundamental e os direitos humanos do Negro (para usar a linguagem dos anos 1960).
Em outras palavras, se a sociedade respeitar plenamente os afro-americanos como seres humanos, não como uma projeção dos medos ou dos ideais das pessoas brancas, "então, a sociedade será radicalmente alterada". Merton vê que a justiça racial irá demandar grandes sacrifícios em nome das pessoas brancas, incluindo a perda da respectiva vantagem econômica.
Na estimativa de Merton, há duas condições essenciais para a possibilidade da reparação branca. Uma genuína resposta branca à sede de amor e de justiça dos afro-americanos, diz Merton, deve consistir em duas coisas:
- Na reforma completa do sistema social que permite e alimenta tais injustiças;
- Que esse trabalho de reorganização seja feito sob a inspiração dos afro-americanos, cuja hora providencial chegou agora e que receberam de Deus a luz, o ardor e a força espiritual suficientes para libertar as pessoas brancas ao se libertarem das pessoas brancas.
Em outras palavras, a condição da possibilidade de que as pessoas brancas sejam transformadas pelo amor a Deus e ao próximo é a liberdade dos afro-americanos a prosperar como seres humanos.
A boa vontade e a caridade são insuficientes. Merton não questiona a sinceridade ou s generosidade brancas. Ao contrário, criar estruturas sociais, políticas e econômicas que sejam justos faz parte do ser transformado pelo amor de Deus ao mundo. Até mesmo trabalhar pela justiça é insuficiente sem o segundo ponto de Merton, um profundo voltar-se aos afro-americanos em sua experiência, sabedoria e verdade.
Merton chama os brancos a praticarem o "reino de humildade de Cristo", voltando toda a nossa atenção para as pessoas de cor na plenitude da sua humanidade, assim como elas são, não como os brancos as imaginam, temem ou projetam.
Praticar a humildade de Cristo significa que os brancos devem aprender com os afro-americanos sobre as formas como nós, brancos, estamos presos tanto a uma falsa idealização de nós mesmos, quanto a uma falsa demonização dos afro-americanos. Merton convida os brancos norte-americanos a verem a si mesmos assim como os afro-americanos nos viram e experimentaram ao longo da história. Quando os brancos se veem como afro-americanos, então eles podem ver onde Jesus se encontra.
Jesus se encontra junto aos demonizados da sociedade como uma forma de nos chamar à transformação através da solidariedade vivida e como uma forma de acabar com a demonização. Assim, Merton convida especificamente os brancos norte-americanos a ouvirem as canções de liberdade e gospel, a ler a "Carta da Prisão de Birmingham" de King e os livros proféticos de James Baldwin, dentre muitos outros.
Voltar-se aos afro-americanos significa prestar atenção à experiência e à sabedoria dos nossos irmãos e irmãs muçulmanos, incluindo Malcolm X. Isso também significa ouvir perspectivas contemporâneas, como o hip hop, como Laurie Cassidy expressa no nosso livro que será lançado no início de 2013, The Scandal of White Complicity in U.S. Hyper-incarceration: A Nonviolent Spirituality of White Resistance [O escândalo da cumplicidade branca no hiperencarceramento dos EUA: Uma espiritualidade não violenta de resistência branca] (Palgrave Macmillan), de minha autoria, juntamente com Cassidy e Margaret Pfeil.
Em última análise, o amor de Cristo convida à humildade diante de todos os outros que nos deram a vida e que revelam o amor infinito de Deus pelo mundo. Quando entramos na luz do amor ao próximo, lá entramos em Cristo, nossa luz e amor compartilhados, e caminhamos pelo único caminho de esperança para a libertação e a salvação.
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Cartas de Merton, um chamado à reparação branca - Instituto Humanitas Unisinos - IHU