29 Janeiro 2015
Merton realizou uma jornada interior que o tornou nosso contemporâneo e companheiro nas múltiplas rotas da fé e da dúvida.
A reflexão é do teólogo leigo italiano Christian Albini, coordenador do Centro de Espiritualidade da diocese de Crema, na Itália, e sócio-fundador da Associação Viandanti. O artigo foi publicado na revista Jesus, de janeiro de 2015. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
"Os atos ordinários da vida cotidiana – comer, dormir, caminhar etc. – tornam-se atos filosóficos que abrangem os princípios últimos da vida na própria vida e não em abstração." É a descoberta da história humana de Thomas Merton, nascido no dia 31 de janeiro de 1915, em Prades (França), e falecido no dia 10 de dezembro de 1968, em Bangkok, que foi um "viandante de reinos" desconhecidos, nos quais se adentrou antes de outros.
Muitos o conhecem pelo livro A montanha dos sete patamares (1948), o relato autobiográfico da sua juventude e do seu ingresso na abadia trapista de Gethsemani (Louisville, Kentucky, EUA), que vendeu milhões de cópias e é um dos textos de espiritualidade mais conhecidos do século XX. O livro é literatura autêntica, cuja prosa foi comparada com o jazz de Charlie Parker, que expressa a labuta da consciência ocidental e o vórtice da vida urbana entre os dois conflitos mundiais. Como um rio na cheia, a escrita atravessou toda a sua existência, derramando-se em uma produção enorme de ensaios, poemas, meditações, diários, milhares de cartas que influenciaram gerações de leitores.
Merton, verdadeiro "homem ardente", tocou múltiplas dimensões da experiência humana; o centro da sua viagem, porém, sempre foi Cristo, do qual se esforçou para reconhecer os traços do rosto em tudo e em todos. "O coração do sábio vive em Cristo. 'Fora' de Cristo, ao contrário, tudo se torna um abismo, e não há nem mesmo uma corda bamba para atravessá-lo."
Em uma primeira fase da sua experiência cristã, Merton buscou Cristo rejeitando e contestando o mundo moderno pelo materialismo consumista e pela violência que o impregnavam e o levavam na direção da guerra. Nessa fuga na separação, o mosteiro era uma antecipação terrena da cidade celeste, lugar para se encontrar com Deus na anulação de si e para se confiar às prescrições rituais e litúrgicas da vida trapista. Uma atitude desse tipo também se beneficiava das suas vicissitudes pessoais, marcadas pela morte precoce dos pais, ambos pintores, que se encontraram no ambiente artístico de Paris.
A juventude de Merton foi nômade e substancialmente indiferente à religião, com deslocamentos entre França, Inglaterra, Estados Unidos e viagens à Itália e à Alemanha. Sensível e intelectualmente curioso, alimentou-se desordenadamente de pintura, música, política, arquitetura e, especialmente, de literatura, estudada antes em Cambridge e depois na Columbia University de Nova York, com uma voracidade que ia do predileto William Blake a James Joyce e sonhando em se tornar um escritor. Nas suas andanças, não faltaram episódios de transgressão, que lhe deixaram o peso do sentimento de culpa, e aventuras amorosas.
A leitura das obras filosóficas de Etienne Gilson sobre a Idade Média e dos escritos com os quais Jacques Maritain atualizava o tomismo ofereceram a Merton uma chave de leitura da realidade, dando início à sua aproximação ao catolicismo, até receber o batismo em 1938.
Na fé católica, Merton finalmente encontrou uma casa, experimentando uma forte atração pela oração e pela mística alimentada pela leitura de Teresa de Ávila, pelos Exercícios Espirituais de Inácio de Loyola e, em particular, pela via da infância espiritual de Teresa de Lisieux. A intensidade da sua experiência de fé o levou a enfrentar radicalmente, e não sem um certo tormento, a interrogação vocacional no equilíbrio entre o compromisso social em tempo integral em meio aos pobres do Harlem e a vida monástica.
"A fé é o abrir-se de um olho interior, o olho do coração que deve se encher com a luz divina. A fé não é um simples assentimento, é vida. Abrange todos os setores da vida." Entrando no Gethsemani no dia 10 de dezembro de 1941, Merton queria se fazer esquecer, encontrar paz no anonimato e no escondimento. A paixão pela escrita, porém, continuava a habitá-lo, e o abade o encorajou a cultivá-la, pondo-a a serviço da comunidade e da Ordem.
Assim, o sucesso o projetou em um palco planetário, tornando-se, a despeito dele mesmo, uma espécie de testemunha da vida religiosa. Ele sempre foi permeado por uma tensão entre a atividade de escrita, projetada para o mundo externo, e o desejo de aprofundar cada vez mais a experiência contemplativa, sem circunscrevê-la aos momentos rituais e às prescrições da regra, mas estendendo-a à totalidade da existência.
A esse propósito, textos conhecidos e significativos são Sementes de contemplação, de 1949, depois reescrito e que se tornou Novas sementes de contemplação (1961), e Nenhum homem é uma ilha (1955).
"Beleza da luz solar caindo sobre um grande vaso de cravos brancos e vermelho e folhas verdes sobre o altar da capela do noviciado. A luz e a escuridão. (…) Esta flor, esta luz, neste momento, este silêncio. Dominus est. Eternidade. Ele passa. Ele permanece."
Na observação da natureza e das pequenas coisas, Merton intuiu uma via espiritual de encontro com Deus, orientando-se para a direção eremítica que a Ordem trapista, na época, não previa. Ele captava a solidão como possibilidade daquela intensidade da qual sentia a falta, intuindo a necessidade de uma renovação da vida religiosa que a libertasse da rigidez, dos pesos e das estratificações.
"Em Louisville, na esquina entre a Fourth Avenue e Walnut, no centro do distrito de compras, de repente fui tomado pela percepção de que eu amava todas aquelas pessoas, que elas eram minhas e eu era elas, que não poderíamos ser alienados uns aos outros, mesmo que fôssemos totalmente estranhos."
Tendo ido à cidade para uma comissão trivial, no dia 19 de março de 1958, Merton viveu uma espécie de experiência mística que pôs fim ao seu chamado "sonho de separação". Era a percepção clara de uma comunhão interior com o próprio tempo e a humanidade, alcançada dentro da solidão monástica.
Não por acaso, ele se apaixonou pela teologia da Bonhoeffer e pelo seu cristianismo "não religioso" que busca a Deus no centro do mundo de hoje na sua secularidade. O episódio, recontado no Diário de uma testemunha culpada (1966), é um divisor de águas simbólico, marca a passagem para a segunda fase da sua experiência cristã.
O lugar autêntico da espiritualidade, para ele, não é mais um espaço sagrado, mas a vivência humana na sua totalidade, feita de corpo, de afetos, de risadas, de pequenos prazeres, de convivência cotidiana,de a participação nas vicissitudes da história... Como se, entre mundo e mosteiro, não houvesse um muro, mas um canal de comunicação.
Merton intensificou as trocas de cartas com pessoas comuns e com intelectuais como Boris Pasternak, Erich Fromm, Henry Miller, com personalidades eclesiais e religiosas (entre as quais Jean Leclerc, Abraham Heschel, Daisetz T. Suzuki), ultrapassando as fronteiras confessionais do catolicismo e da própria religião cristã, com ativistas no campo social e político.
Ele se tornou o marginal que participava do debate público, a "testemunha culpada", que, assimilando a mensagem do Mahatma Gandhi, denunciava uma cultura de opressão e violência da qual se sentia cúmplice, expondo-se em primeira pessoa pelos direitos civis dos afro-americanos, contra a guerra que brinca com a vida e com a morte (eram os anos do Vietnã) e pelo desarmamento nuclear.
São posições que lhe causaram contrastes e até mesmo censuras dentro da Ordem, tanto que o livro A paz na era pós-cristã permaneceu inédito até 2004. Apesar disso, ele recebeu atestados de estima de João XXIII, que recorreu a ele na redação da encíclica Pacem in terris, e de Paulo VI.
"A verdadeira comunicação no nível mais profundo é mais do que uma simples partilha de ideias, de conhecimentos conceituais ou de verdades formuladas. O tipo de comunicação que é necessário nesse nível profundo também deve ser 'comunhão' além dos limites das palavras."
Na dilatação dos horizontes de Merton, o encontro com outras tradições espirituais antecipou as aberturas do Vaticano II e assumiu cada vez mais espaço, levando-o a se interessar pelo budismo e pela meditação zen, pelo hinduísmo e pela prática do ioga, pelo sufismo e pelo taoísmo, e dando origem a livros como A via simples de Chuang Tzu (1965) e O zen e os pássaros do apetite (1968). Para ele, foram todas ocasiões para explorar aqueles sendeiros de interioridade que podem levar a purificar e enriquecer a espiritualidade cristã.
"Nossa verdadeira jornada é uma jornada interior: é uma questão de crescimento, de aprofundamento e um abandono cada vez maior à ação criadora do amor e da graça nos nossos corações." Merton escreveu isso aos amigos em 1968, às vésperas da partida para a Ásia, onde ele se encontrou também com o Dalai Lama, que ficou positivamente marcado pelas suas palestras.
Infelizmente, a descarga elétrica de um ventilador com defeito o matou, enquanto ele se encontrava na Tailândia para um congresso monástico. O seu Diário asiático foi publicado postumamente em 1972.
Na sua vida, Merton efetivamente realizou essa jornada interior que o tornou nosso contemporâneo e companheiro nas múltiplas rotas da fé e da dúvida. Gregório Magno conta que São Bento teve uma visão em que contemplou todo o mundo reunido "como em um único raio de sol". Thomas Merton continua iluminando ainda hoje, justamente como um raio de luz em que está contido um mundo inteiro.
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Merton, o profeta da fé ardente encarnada na vida. Artigo de Christian Albini - Instituto Humanitas Unisinos - IHU