“A Amazônia é a última região na superfície terrestre onde a mineração ainda pode se expandir. Há inúmeros estudos geológicos em andamento para descobrir novas reservas minerais que, em grande parte, se sobrepõem às terras indígenas, o que explica o crescimento dos conflitos envolvendo o setor da mineração, muitas vezes de forma ilegal, e os povos indígenas. Além disso, há uma sobreposição de dois modelos de extrativismo – dos povos extrativistas e do modelo extrativista predatório”.
Esta é a trágica análise que o Pe. Dário Bossi fez da situação da mineração na sua intervenção durante o sexto encontro pela série de debates [online] Brasil: emergências socioambientais e horizontes políticos, no último dia 10 de setembro, em iniciativa promovida pelo Cepat, com a parceria e o apoio de diversas instituições: Instituto Humanitas Unisinos – IHU, Núcleo de Direitos Humanos da PUCPR, Conselho Nacional do Laicato do Brasil – CNLB, Observatório Nacional Luciano Mendes de Almeida – OLMA e Departamento de Ciências Sociais, da Universidade Estadual de Maringá.
“Ligado a isso, avança Bossi na sua reflexão, existe uma infraestrutura do saque na região pan-amazônica (rodovias, portos, hidrovias, ferrovias...) em projetos já existentes ou em planejamento, que, certamente, terão impactos profundos sobre o desmatamento, a poluição, o deslocamento de comunidades... A mineração não impacta apenas o local propriamente de extração do minério, mas toda a região”.
O Pe. Dário Bossi faz parte da coordenação da rede ecumênica latino-americana Iglesias y Minería. Também assessora a Rede Eclesial Pan-Amazônica – REPAM, a equipe de ecologia integral da Conferência Latino-Americana e Caribenha de Religiosos e Religiosas – CLAR e a Comissão Especial para Ecologia Integral e Mineração da CNBB.
O Pe. Dário Bossi é organizador, junto com o Ir. Afonso Murad, do livro Igreja e Mineração: em defesa da vida e dos territórios, editado pelas Edições CNBB, 2015.
Pe. Dário Bossi (Igrejas e Mineração) no debate "Mineração, desastres ambientais e violações de direitos humanos"
Bossi iniciou sua exposição com uma caracterização de três modelos econômicos que estão em disputa.
O primeiro modelo é aquele que compreende o extrativismo como aquela capacidade das comunidades conviverem de modo equilibrado, integrado, sustentável e protagonista em seus territórios. É aquele extrativismo praticado pelos povos ancestrais ainda hoje e que é típico da economia da abundância. É próprio daqueles povos que dizem que “rico é aquele que não precisa de dinheiro”. Esse modelo nos ajuda a compreender a economia de maneira absolutamente nova, e sem representar uma volta ao passado; pelo contrário, mostra-se extremamente atual e em sintonia com um tempo que exige de nós um uso sóbrio dos recursos existentes.
Mas este extrativismo dos povos se opõe ao extrativismo predatório, aquele que nos países latino-americanos é chamado de “extractivismo”, de extrair, do latim “extraer” (extractus), que significa sugar até a raiz os recursos. Este extrativismo não é uma exclusividade da mineração, embora ali encontre o exemplo mais emblemático. É um “sistema de acumulação por desapropriação e violência”. O extrativismo não existe se não houver uma violência sistêmica, estrutural.
Os bispos da América Latina definem este extrativismo como “a desenfreada tendência do sistema capitalista para transformar em dinheiro os bens da natureza” (Discípulos missionários guardiões da Casa Comum – CELAM). O extrativismo se vincula à monocultura em todos os sentidos. A monocultura não é só um jeito de cultivar a terra com uma única planta (soja, eucalipto, pastagem...), mas é também a afirmação de uma cultura única, de relação exclusiva da relação humana com a natureza, que exclui as demais possibilidades, como aquela realizada pelas comunidades extrativistas. A monocultura nos força a entrar num ciclo destrutivo que nos leva a extrair, consumir e descartar. Este segundo modelo fez a opção pelas commodities, portanto, pela desindustrialização e pela reprimarização da economia, e tem sido adotado tanto por governos neoliberais (de direita) como por governos neodesenvolvimentistas (de esquerda), embora em graus diferentes.
Como se vê, o termo extrativismo presta-se a um mal-entendido e mesmo a uma visão oposta. O mesmo termo tem significados diferentes, podendo ser fonte de confusão. Para a distinção desses dois modelos, deve-se ter presente esta diferenciação semântica.
Por fim, há um terceiro modelo que vem ganhando força e se apresenta muito sedutor. Trata-se da “economia verde”. É um modelo que, percebendo a crise do sistema, apresenta de maneira camuflada os mesmos princípios do saque, de maneira que seja tolerado em nome de um “ecologismo” voltado exclusivamente para a acumulação do dinheiro. Aproveita-se da crise climática para ganhar dinheiro (mercados de carbono) ou se manifesta em propostas ambíguas e perigosas, como o projeto Amazônia 4.0, que pretende facilitar a entrada na região de grandes empresas com tecnologia de ponta para defender as produções das comunidades.
Contra isso, os próprios bispos da Amazônia brasileira têm se insurgido, dizendo: “A sustentabilidade da Amazônia não será alcançada por projetos baseados em economias tecnologicamente sofisticadas, intensivas em investimentos. Virá, antes, pelo respeito ao direito dos povos aos territórios e pelo fortalecimento das economias locais, subsidiadas, qualificadas e sabiamente conectadas às cidades” (Tempo de sonhar. Uma política para o bem comum na Amazônia, set. 22).
Em síntese, temos um modelo predatório (do extrativismo), um modelo da maquiagem (da economia vede) e um modelo da convivência com os territórios (das comunidades extrativistas). Deve-se observar, no entanto, que o modelo do extrativismo predatório também fez sua opção pela maquiagem, fazendo acreditar que é possível uma mineração verde.
Pe. Dário Bossi (Igrejas e Mineração) no debate "Mineração, desastres ambientais e violações de direitos humanos"
Para ilustrar esta parte da sua reflexão, o Pe. Dário recorre à pintura “A Balsa da Medusa”, de Théodore Gericault (1818). O sistema podre ao qual se refere é o capitalismo. Este sistema assenta-se sobre a expansão, o crescimento linear e infinito. Para isso, necessita da incorporação contínua de terras e recursos. Mas, como fazer isso em uma Terra que tem recursos limitados? Nesta lógica, não há mundo para todo mundo. É este sistema que impulsiona, através do sistema financeiro, os principais atores causadores de impactos e violações de direitos humanos e da natureza (mineração, agrotóxicos, armamentos, extração de gás...).
Essas empresas controversas são alimentadas (as mineradoras, por exemplo) pelos bancos, companhias de seguro e empresas de investimentos. Elas investem diretamente ou em fundos cotados nas Bolsas de Valores das mineradoras que, a partir desses financiamentos, operam seus negócios provocando impactos nas comunidades. É importante compreender este ciclo para perceber que não se trata apenas de impactos físicos, mas também de responsabilidades cada vez mais vinculadas à financeirização do sistema mineral. Portanto, trata-se de uma corresponsabilidade dos dois atores econômicos.
O Pe. Dário passa a dar alguns exemplos dessa vinculação entre o mundo financeiro e os impactos predatórios da mineração: a) a alta da cotação do ouro tem provocado um aumento na extração do mineral; b) o crime da Vale em Brumadinho, MG, em 2019: no dia seguinte ao rompimento da barragem, as ações da Vale caíram 24%, o que significou perdas equivalentes a 72 bilhões de reais. É praticamente o dobro da reparação, assinada apenas dois anos depois (37 bilhões de reais). No entanto, apenas um ano depois do crime, a Vale recuperou seu valor financeiro de antes do rompimento; c) os fluxos de capitais ilícitos: entre 2009 e 2015, a Vale deixou de pagar 23 bilhões de reais em impostos por vender seu minério primeiramente à Suíça (onde está sua sede fiscal) a um valor menor, para depois vendê-lo à China. Dessa maneira, o povo brasileiro deixou de arrecadar este dinheiro, que poderia ser usado em políticas públicas sociais. É o dobro do dinheiro que foi confiscado à Vale por ocasião do rompimento de Brumadinho.
Por isso, a Articulação Brasileira da Economia de Francisco e Clara fala, referindo-se à corresponsabilidade do sistema financeiro, em “violência financeira”. E o Papa Francisco diz que “a economia não pode mais recorrer a remédios que são um novo veneno” (EG 204).
A Amazônia é a última região na superfície terrestre onde a mineração ainda pode se expandir. Há inúmeros estudos geológicos em andamento para descobrir novas reservas minerais que, em grande parte, se sobrepõem às terras indígenas, o que explica o crescimento dos conflitos envolvendo o setor da mineração, muitas vezes de forma ilegal, e os povos indígenas. Além disso, há uma sobreposição dos dois modelos de extrativismo – dos povos extrativistas e do modelo extrativista predatório.
Ligado a isso existe uma infraestrutura do saque na região pan-amazônica (rodovias, portos, hidrovias, ferrovias...) em projetos já existentes ou em planejamento, que, certamente, terão impactos profundos sobre o desmatamento, a poluição, o deslocamento de comunidades... A mineração não impacta apenas o local propriamente de extração do minério, mas toda a região.
Para exemplificar o que está afirmando, o Pe. Dário apresenta algumas das maiores ameaças: a PL 191/2020 referente à exploração de minério em terras indígenas; incentivos ao garimpo (lavagem de dinheiro e circuitos ilegais de comercialização; cf. o PL de Joenia Wapichana e Vivi Reis que propõe o rastreamento da cadeia do ouro no Brasil); subvenções públicas, isenções fiscais, facilitação de créditos que estão tornando a “Amazônia o paraíso extrativo e tributário das transnacionais da mineração”; Política de Apoio ao Licenciamento Ambiental de Projetos de Investimentos para a Produção de Minerais Estratégicos.
Como as mineradoras enxergam as Igrejas? Elas partem do princípio de que o mundo precisa de minérios. Porém, a mineração está “quebrada”. Por quais razões? Porque a rentabilidade das minas está diminuindo; a relação entre mineradoras e comunidades é cada vez mais tensa; e, finalmente, está cada vez mais difícil encontrar novas minas.
Diante deste cenário, as próprias mineradoras reconhecem que o mundo precisa de uma mudança na estratégia de mineração. E a mudança passa pelo diálogo com, também, as Igrejas. Por exemplo, a proposta de um dia de reflexão com o Vaticano, com a Igreja Anglicana da Inglaterra, com os religiosos e religiosas... Assim, a estratégia das empresas não parece ser a de dialogar diretamente com as comunidades afetadas, e sim convencer de suas boas intenções outros atores relevantes, como as Igrejas... Buscam atrair atores carismáticos com autoridade moral reconhecida que possam voltar a tornar a mineração tolerável. A estratégia consiste em atrair um novo ator, desta vez moral, que são as Igrejas.
André Langer do Cepat e Pe. Dário Bossi (Igrejas e Mineração) no debate "Mineração, desastres ambientais e violações de direitos humanos"
Essa relação com as Igrejas está permeada de contradições por parte dos chamados “guardiões do mundo financeiro”. Algumas dessas contradições são: a busca permanente de adjetivos para maquiar o capitalismo ou a mineração; recorrem também à fé para demonstrar que fazem algo de bom (vão do greenwashing ao faithwashing); o capitalismo inclusivo é um oxímoro (não há mais mundo para todos, para um sistema que só existe para se expandir); a admissão de falência: “O capitalismo tirou bilhões de pessoas da pobreza, mas muitos na sociedade ficaram para trás e o Planeta pagou um preço elevado”.
O que as Igrejas podem fazer diante deste cenário de sedução? A Rede Igrejas e Mineração propõe a escuta, não dos de cima, mas das comunidades atingidas e fazendo a defesa dos territórios; elas podem também encampar a campanha do desinvestimento nos setores não amigáveis com a Terra; e não aceitar o dinheiro, muitas vezes tão sedutor, das empresas mineradoras ou que promovem o desmatamento, como no caso de dom José Ionilton Lisboa de Oliveira, da prelazia de Itacoatiara, AM.
Por fim, o Pe. Dário passou às possíveis formas de resistência. Recuperou trecho do documento final do Sínodo dos Bispos:
"Podemos não ser capazes de modificar imediatamente o modelo de desenvolvimento destrutivo e extrativista, mas precisamos saber e deixar claro onde estamos, quem somos, que perspectiva assumimos, como transmitimos a dimensão política e ética de nossa palavra de fé e vida. Por isso: a) denunciamos a violação dos direitos humanos e a destruição extrativista; b) assumimos e apoiamos as campanhas de desinvestimento das empresas extrativistas relacionadas com os danos socioecológicos da Amazônia, a começar pelas próprias instituições eclesiais e também em aliança com outras Igrejas; c) pedimos uma transição energética radical e a busca de alternativas" (Documento Final do Sínodo dos Bispos ao Santo Padre Francisco no final da Assembleia Especial do Sínodo dos Bispos para a Região Pan-amazônica (06 a 27 de outubro de 2019) sobre a Amazônia, n. 70).
Acrescentou algumas outras categorias a essas resistências, tais como: a indissociável conexão entre corpo e território, assim como não é mais possível separar as vidas humanas da vida inteira, relação que se torna mais forte ainda na luta das mulheres; o direito a dizer não e o direito à consulta prévia, livre e informada; e realmar a economia.
Por fim, trouxe algumas propostas que constam do documento “É tempo de sonhar”, referido anteriormente. São elas: demarcação imediata de todas as Terras Indígenas e demais comunidades tradicionais; desmatamento zero na Amazônia; fim do garimpo e da expansão/abertura de novos projetos da grande mineração na Amazônia; fim da construção de novas hidrelétricas na Amazônia, projetos ecocidas e insustentáveis; e suspensão imediata dos projetos de novas vias de escoamento das commodities...
Abaixo, disponibilizamos a íntegra da exposição e debate.