Qual será o SUS da próxima década? Entrevista especial com Dário Pasche, Gonzalo Vecina Neto e Ana Mendonça

Pesquisadores avaliam os 35 anos do Sistema Único de Saúde e destacam os principais desafios para o futuro

Foto: Fernando Frazão | Agência Brasil

14 Outubro 2025

“A maior invenção democrática da história recente do Brasil”. “Parte de um grande esforço de construção de uma sociedade mais igual”. “Resultado de uma luta contínua pela melhoria das condições de vida no nosso país”. Essas são algumas das formas como Dário Pasche e Gonzalo Vecina Neto se referiram ao Sistema Único de Saúde (SUS) no debate promovido pelo Instituto Humanitas Unisinos – IHU no mês passado, em comemoração aos 35 anos do SUS.

Dário Pasche relembrou a trajetória marcada por lutas, resistências e intensa atuação política. Gonzalo Vecina Neto destacou a necessidade de se reestruturar a Atenção Primária à Saúde e desenvolver a Estratégia de Saúde da Família. Ana Valéria M. Mendonça alertou para os riscos da desinformação em saúde na era digital.

O SUS foi instituído no país no processo de redemocratização e se consolida como a principal rede de assistência médica da população, atendendo mais de 75% dos brasileiros. No marco dos 35 anos, ressalta Pasche, “não podemos esquecer a nossa história; ela é marcada, sobretudo, por lutas e construção coletiva. Criação e resistência são as nossas marcas”.

A manutenção e a continuidade do SUS dependem, segundo o pesquisador, “da correlação de forças” que está em disputa no Brasil desde as origens do sistema. Apesar da inegável importância do Sistema Único de Saúde na vida dos brasileiros, os pesquisadores sublinham que a utopia da universalização à saúde ainda não foi alcançada. “Persistem distâncias importantes entre a discursividade, a base utópica do SUS e a vida de milhares de pessoas que encontram dificuldades de todas as ordens no campo da saúde, particularmente em relação à equidade do acesso e à qualidade do cuidado. O excesso de mortes maternas de pessoas negras, o adoecimento em larga escala da população indígena, o sofrimento de populações de rua e a desigualdade de acesso a especialistas são chagas que precisamos contornar”, diz Pasche.

A seguir, publicamos os principais trechos do evento, intitulado “O SUS em seus 35 anos. Transformação digital, (des)igualdades e proteção social”, no formato de entrevista.

Dário Pasche (Foto: Reprodução YouTube)

Dário Pasche é graduado em Enfermagem e Obstetrícia pela Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul (Unijui), mestre e doutor em Saúde Coletiva pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Foi professor do Centro de Ciências da Saúde da Unijui, coordenador nacional da Política Nacional de Humanização da Saúde no Ministério da Saúde entre 2007 e 2011, diretor do Departamento de Ações Programáticas e Estratégicas em Saúde (DAPES) entre 2011 e 2014 e diretor-geral da Secretaria de Saúde do Estado do Rio Grande do Sul (SES/RS) em 2014. Leciona no Departamento de Enfermagem da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e nos cursos de Saúde Coletiva e Psicologia Social da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). 

Gonzalo Vecina Neto (Foto: Reprodução YouTube)

Gonzalo Vecina Neto é graduado pela Faculdade de Medicina de Jundiaí e mestre em Administração, Concentração de Saúde, pela Escola de Administração de Empresas de São Paulo, da Fundação Getulio Vargas (FGV/EAESP). Foi secretário municipal de Saúde de São Paulo, secretário nacional de vigilância sanitária do Ministério da Saúde e diretor presidente da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), órgão que ele ajudou a fundar. É um dos idealizadores do Sistema Único de Saúde (SUS), professor assistente da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP) desde 1988 e ex-superintendente do Hospital Sírio-Libanês desde 2007.

Ana Valéria Mendonça (Foto: Reprodução YouTube)

Ana Valéria M. Mendonça é graduada em Filosofia pela Universidade de Brasília (UnB) e em Jornalismo e Relações Públicas pela Universidade Tiradentes (Unit), mestre em Comunicação e Cultura pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e doutora em Ciência da Informação pela UnB. É coordenadora do Laboratório de Educação, Informação e Comunicação em Saúde (LabECoS) e leciona no Departamento de Saúde Coletiva da UnB.

Confira a entrevista.

IHU – Como surgiu o SUS?

Dário Pasche – Antes de tudo, é preciso dizer que um sistema como o brasileiro, constituído há quase quatro décadas, depende da correlação de forças. Olhar para a conjuntura atual é muito importante, porque o Brasil se encontra num ápice de correlação de forças. Não podemos esquecer que, nos últimos dias, foi aprovada a PEC da Blindagem [na Câmara dos Deputados]. Ela fala muito da correlação de forças no Brasil e de como os poderes constituídos têm olhado para a vida social como um todo.

Gênese histórica do SUS

O SUS completa 37 anos em 5 de outubro, mas outros consideram que o SUS começou com a lei orgânica, em 1990. Isso mostra que temos alguma dúvida sobre a nossa própria gênese histórica. Em todo caso, é importante compreendermos a história como um processo, em que pesem processos de lutas e disputas que produzem marcos temporais importantes do ponto de vista concreto.

Efetivamente, o SUS foi criado pela Constituição Federal e por movimentos que antecederam a instalação da constituinte. Em 17-05-1988, a Assembleia Constituinte aprovou, em primeiro turno, o Artigo 196, que institui a saúde como um direito do cidadão e um dever do Estado. Mas o SUS não nasce ali nem nasce na Constituição; ele emerge da 8ª Conferência Nacional de Saúde, que, por sua vez, resulta de forças de movimentos muito variados no Brasil, que se acumulam a partir dos anos 1970. Tivemos, então, numa janela histórica a possibilidade de inscrição da saúde como direito na Constituição.

Por outro lado, o marco de 35 anos do SUS resulta de processos históricos nos planos jurídico e legislativo, que exigiram a árdua e intensa atuação política naqueles anos para vencer as resistências de implementação de um novo sistema, que foi disruptivo em muitos aspectos.

As resistências foram de muitas ordens: da cultura do Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência (Inamps) e, particularmente, aquela imposta pelos mercadores da doença, que, inclusive, se retiram da 8ª Conferência quando se deram conta de que assembleia iria tratar de saúde e da organização de um sistema público de saúde. Não podemos esquecer a nossa história; ela é marcada, sobretudo, por lutas e construção coletiva. Criação e resistência são as nossas marcas.

IHU – O SUS nasce da luta democrática?

Dário Pasche – O SUS não é apenas um sistema de saúde – o que já seria muito. O SUS talvez seja a maior invenção democrática da história recente do Brasil. Muitos de nós se inspira na célebre frase que Sérgio Arouca pronunciou na abertura da 8ª Conferência, onde ele disse que o SUS representava uma virada civilizatória que colocava o sistema de saúde como um instrumento de construção de uma nova sociedade que reconhece direitos, que quer superar iniquidades históricas e reconhece a vida plena a ser vivida, protegida e cuidada. Essa é uma questão bastante importante e distintiva como política pública.

Mas também convém reconhecer que o movimento que instala esse processo é o movimento pela reforma sanitária, cuja perspectiva é muito mais ampla que a do SUS. O SUS é uma ferramenta de um processo de reforma sanitária, mas obviamente não representa a totalidade do movimento. Como política de saúde, o SUS quer romper a lógica excludente e afirma a saúde como um direito. Ele colocou o Brasil ao lado de poucos países que ousaram dizer que a saúde é um direito de cada um.

As ideias de integralidade, universalidade e equidade carregam esta ousadia que nos inspirava naquele período de refundar o Pacto Social Brasileiro. O SUS compõe esse pacto social, e o Estado deve garantir as condições para que essa tripla tarefa do sistema – ser universal, integral e equitativo – se efetive.

Convém lembrar que o Estado brasileiro, na maior parte da sua existência, foi colonizado pelos interesses das elites, que se locupletam de recursos públicos de todas as ordens para produzir privilégios sustentados em iniquidades. O sistema de saúde brasileiro é privado, mas esse “privado” foi constituído com recursos públicos. Não há poucas experiências de constituição de serviços privados no Brasil que não tenham por trás recurso público. 

Nesse cenário de pensar o SUS para frente, as disputas políticas que vivemos na conjuntura atual do país revelam e escancaram os interesses de uma elite que quer manter os privilégios: ricos se negam a pagar impostos e impedem toda e qualquer iniciativa de aliviar a carga tributária que recai sobre os mais pobres. 

Quando a democracia funciona ou quando a democracia se coloca como um dispositivo de inclusão e de produção de justiça social, quando se coloca no entrave desses interesses, esses mesmos interesses atacam a democracia com golpes e ameaças. Ao mesmo tempo, o Estado, a quem remetemos a ideia do direito à saúde, é o mesmo que impetrou todas as reformas que atacam a vida. Esse Estado que ataca, produz e faz reformas é, ao mesmo tempo, uma marca das nossas lutas. Portanto, o Estado é uma possibilidade de construir o direito à saúde. Mas o direito à saúde não é garantido exclusivamente pela ação do Estado. Assim, estamos diante de um certo paradoxo.

IHU – Como ampliar o direito à saúde?

Dário Pasche – Apostar na manutenção e expansão daqueles movimentos instituintes do SUS, que 37 ou 35 anos atrás construíram as condições históricas para inscrição do direito à saúde na Constituição, deve se constituir uma das nossas estratégias centrais. Essa é uma questão absolutamente central para a manutenção de uma política pública que tenha a dimensão ética do SUS. Devemos manter, fomentar e garantir que esse movimento instituinte que constituiu o SUS não cesse, porque, sem essa força, o SUS se degenera.

IHU – A sociedade caminha nessa direção de reivindicar o fortalecimento do SUS?

Dário Pasche – A sociedade brasileira tem atuado nessa direção em diversas frentes. O SUS, enquanto movimento, não cessou de pulsar. Certos movimentos sociais, alguns já consolidados, outros emergentes, têm trazido à cena pautas que revigoram nossas lutas e causas. Aqui faço referência particularmente ao movimento das mulheres, dos negros, dos povos indígenas, dos transfóbicos, das periferias, do campo, das florestas, entre outros, que têm ampliado sua capacidade auto-organizativa, impondo reconhecer violências e opressões sistêmicas contra seus corpos e territórios. 

Essa é uma questão absolutamente vital para pensarmos o SUS, para que não imaginemos que, por essa correlação de forças, nós vamos, por dentro do Estado, garantir a regulação do privado. Esses movimentos, por outro lado, têm sido atacados de muitas formas. As reações do Estado brasileiro a essas movimentações são muito paradoxais. Não nos enganemos: é um Estado que responde com extrema violência.

IHU – A utopia universalista do SUS ainda deve ser buscada?

Dário Pasche – Precisamos reconhecer que o SUS ainda não cumpriu sua utopia universalista e nem poderia porque as utopias são forças que nos fazem caminhar e persistir. As utopias não são pontos de chegada; elas são pontos de partida. 

Ainda persistem distâncias importantes entre a discursividade, a base utópica do SUS e a vida de milhares de pessoas que encontram dificuldades de todas as ordens no campo da saúde, particularmente em relação à equidade do acesso e à qualidade do cuidado. O excesso de mortes maternas de pessoas negras, o adoecimento em larga escala da população indígena, o sofrimento de populações de rua e a desigualdade de acesso a especialistas são chagas que precisamos contornar.

IHU – O que se espera do SUS para a próxima década?

Dário Pasche – Estas são perguntas que precisam ser feitas: o que queremos para o SUS na próxima década? Um SUS fragilizado, entregue à mercantilização da vida, ou um SUS fortalecido, capaz de reduzir as desigualdades e ampliar a proteção social? Não tenho dúvida de que queremos um SUS fortalecido. Nessa direção, importa nos perguntarmos qual é a agenda para irmos na direção de fortalecer o SUS. Esse é um debate que tem muitas camadas. 

Trarei dois pontos principais, um mais macropolítico e outro molecular. Não os entendo como antagônicos nem justapostos, mas como estratégias distintas no campo da ação política.

Ponto macropolítico

Em primeiro lugar, convém nos darmos conta de que o cenário político e conjuntural que vivemos é complexo, com correlações de força bastante acirradas. Uma parte da sociedade brasileira é guiada por valores de uma democracia plural e, portanto, mais liberal, de grupos que se organizam em torno de pautas de gênero, étnico raciais e ambientais. Outra parte atua a partir de pautas antidemocráticas e de forma violenta em todos os espaços políticos e sociais. Além disso, é preciso reconhecer que aquela conformação sociopolítica que sustentou o contrato social e liberal da Constituição brasileira de 88 se dissolveu completamente.

O país está diante de uma encruzilhada e os desdobramentos dessa encruzilhada se refletirão tanto nas condições de manter e ampliar o SUS quanto no enfrentamento das iniquidades de todas as ordens. Diante desse cenário, não temos muitas alternativas. O primeiro ponto que está na nossa agenda é disputar e vencer as eleições do próximo ano. Não estou falando de preferência eleitoral nem de preferência partidária, mas é necessário derrotar forças políticas que apostam no desmonte das políticas públicas e que vão em direção à ampliação de sistemas de competição e manutenção dos privilégios.

Pontos moleculares

Há outros três ou quatro pontos necessários para avançarmos do ponto de vista de pensar o SUS como sistema público. Em primeiro lugar, reconhecer que a organização do SUS como sistema se impõe como uma verdadeira reforma do Estado brasileiro. A arquitetura institucional do SUS se coloca, nos anos 1990, como uma reforma do Estado brasileiro, mas é preciso avançar em alguns pontos. Um deles é a regionalização, porque a regionalização não é uma esfera de governo; é um âmbito de governo – e nós não temos tradição no Brasil acerca disso.

No país, a situação é diferente do que ocorre na Itália, onde uma região é um lugar de institucionalidade muito forte. É a regionalização que viabiliza a municipalização. A municipalização se completa na regionalização. Nós temos um arranjo quase improvisado de regionalização, que é incapaz de construir processos efetivos de responsabilização sanitária. É nesse espaço da regionalização que os “negócios da saúde”, sobretudo da relação público/privado e da captura de recursos para oferta de média e alta complexidade, acontece. É necessário desmontar esses arranjos políticos assistenciais porque eles impedem a qualidade da saúde e reproduzem lógicas de reprodução privada do capital.

Nesses 37 anos do SUS, não conseguimos lidar com uma pauta absolutamente estratégica, que é produzir uma política de pessoal para o SUS, assim como pensamos a lei nº 8142, do final de 1990. Quando pensamos a municipalização do SUS, a condição para o município se municipalizar era ter um plano de carreira. A história desses 35 anos andou na mão contrária, sobretudo pela privatização da gestão. Há uma privatização claríssima da gestão do serviço público brasileiro e isso aumentou tremendamente a precarização dos vínculos trabalhistas, o que dificulta a realização do trabalho interprofissional e a sustentação dos vínculos terapêuticos.

E não só isso: a precarização do mundo do trabalho afetou a área da saúde. Parte considerável dos trabalhadores diretos atuantes na área é submetida a condições de trabalho indignas, produtoras de sofrimento de todas as ordens. Não é possível pensarmos um SUS universal e equânime sem efetivarmos uma política de trabalho adequado, qualificado e protegido.

Mas uma coisa já aprendemos: os municípios, sozinhos, não conseguem resolver o problema da força de trabalho no seu território, porque isso envolve um conjunto de capacidades políticas, logísticas, administrativas e financeiras das quais os municípios brasileiros não dão conta. Basta lembrar que quando foi lançado o Programa Mais Médicos (PMM), São Paulo foi a cidade brasileira que mais solicitou estes profissionais. Ou seja, a cidade mais rica do Brasil foi aquela que mais solicitou vagas, o que indica que o município sozinho não vai dar conta de resolver a situação. 

IHU – Que novos arranjos seriam adequados para sanar as necessidades? 

Dário Pasche – Precisamos que o SUS crie inovações e isso passa pela reconstrução de uma lógica de regionalização, com a criação de autarquias regionais ou alguma coisa nesse sentido. Também é necessário incorporarmos, de forma mais efetiva e transparente, os serviços privados e arranjos assistenciais. Praticamente, desde o início do SUS a atenção especializada não foi alterada; ela continua do mesmo jeito que a herdamos do Inamps.

Não devemos abrir mão da constituição de serviços públicos. O processo de desprivatização da saúde no Brasil passa por uma reapropriação dos recursos públicos que estão na mão do setor privado, subsidiado pelo setor público nos planos de saúde. Então, muito mais do que conseguir recursos novos, é importante repatriar recursos públicos.

Privatização

A privatização do SUS deve ser combatida – o que não significa que não devemos criar outras formas mais dignas e interessantes de relação com o mundo privado. A privatização no Brasil é oriunda da nossa história, mas também de um espaço aberto pela não regulamentação do Artigo 199 da Constituição Federal. Na Constituição está escrito: “livre participação da iniciativa privada”. Necessita-se de uma legislação infraconstitucional para regular isso. A não regulamentação desse ponto e a aliança entre mercadores da doença e gestores cada vez menos comprometidos com o público ampliaram profundamente a privatização dos fundos públicos, o que corrói a lógica do SUS em defesa da vida. 

Por fim, aponto que, de fato, precisamos mexer na formação. Inclusive, no Programa Mais Médicos havia uma agenda para interferir na formação médica, a qual não foi um milímetro adiante. Nós não alteramos a formação de trabalhadores no SUS.

Além disso, o problema do financiamento do SUS não é só uma questão de subfinanciamento. Hoje, agravou-se a lógica do desfinanciamento, ou seja, o sequestro de parte considerável do orçamento público brasileiro e, particularmente do Ministério da Saúde, por emendas parlamentares que desarranjam e fragilizam o processo de planejamento. Para termos uma ideia, 22% do orçamento do custeio da Atenção Primária à Saúde no Brasil acontece por emendas parlamentares. Isto significa dizer que deputados e senadores viraram executores do orçamento. Temos aqui uma grande jabuticaba nas nossas relações federativas.

IHU – Qual a importância do SUS enquanto política pública construída no país? 

Gonzalo Vecina Neto – A construção desses 35 anos não começou 35 anos atrás; começou muito antes, na nossa luta pela construção da democracia. Durante as décadas de 1960 e 1970, o Brasil esteve envolvido na construção de uma sociedade melhor. Enquanto a ditadura tentava levar o país para uma estrutura servil, estávamos buscando o desenvolvimento do país. Havia uma estrutura de luta que buscava um país melhor. Essa estrutura estava envolvida nos desenvolvimentos que tínhamos naquele momento.

Nesse sentido, é importante fazer o registro de que o SUS não é resultado do que foi feito em 1988 ou em 1986, na 8ª Conferência Nacional de Saúde. O SUS é resultado de uma luta contínua que desenvolvemos ao longo do tempo pela redemocratização do Brasil e, ao mesmo tempo, pela melhoria das condições de vida da população. Tivemos sucesso. O fato é este: a luta pelo SUS teve muito mais sucesso na medida em que foi uma luta por ter uma sociedade menos desigual.

Naqueles anos de chumbo, volta e meia nós ouvíamos o ministro da Economia de então falar que primeiro o bolo precisava crescer para depois dividir. Neste momento, nós estamos dando um exemplo de que é possível crescer e melhorar as condições de vida, ou seja, é possível distribuir. A única maneira de diminuir a desigualdade social e os grandes problemas da área da saúde pública é através da capacidade de enriquecer a sociedade brasileira. É lógico há muito por fazer, mas demonstrando que temos uma sociedade melhor do que a sociedade que até então tínhamos.

IHU – O que ainda precisa ser feito para avançar nesta perspectiva?

Gonzalo Vecina Neto – Estamos no meio do caminho. Estamos na construção do caminho. Nós andamos muito para frente com a construção do SUS, mas o SUS não resolverá os problemas do Brasil se não conseguirmos avançar na educação, no acesso à habitação e ao transporte coletivo. O SUS não é uma torre de marfim.

Com muita frequência, discutimos o acesso à saúde como se fosse possível, numa economia moderna, desenvolver uma torre de marfim. Não, o SUS não é uma torre de marfim. O SUS é parte de um grande esforço de construção de uma sociedade mais igualitária. Essa é a mensagem que precisamos ter claro para continuar desenvolvendo a luta por uma sociedade melhor. Nesse sentido, sem esquecer que estamos lutando por ter uma sociedade melhor, nós queremos desenvolver uma sociedade onde haja bem-estar social. E bem-estar social é, entre outras coisas, saúde.

IHU – Quais os principais desafios do SUS para atingir essa finalidade?

Gonzalo Vecina Neto – O primeiro grande desafio do SUS é conseguir caminhar no sentido de estruturar a Atenção Primária à Saúde. Nós temos muitas vitórias dentro da busca de uma melhor estrutura da Atenção Primária à Saúde, em particular, com o desenvolvimento da Estratégia de Saúde da Família, que é um uma jabuticaba brasileira. Isso foi uma revolução no que diz respeito à construção do acesso e no sentido de conseguir resolver a complexa equação que nos engasga desde os tempos do Inamps, que é a equação da demanda. Na medida em que nós montamos um modelo de Atenção Primária à Saúde populacional, voltada para a região onde o cidadão está, através da equipe de saúde da família, nós demos um imenso passo.

Só que nos últimos anos, de 2015 a 2022, os governos Temer e Bolsonaro paralisaram os investimentos sociais no país. O desastre começou no governo Temer, com a Emenda Constitucional nº 95, que paralisou os gastos sociais por vinte anos. Essa medida foi responsável por não termos conseguido fazer o investimento necessário para manter a cobertura vacinal. A cobertura vacinal brasileira começou a cair em 2016, no governo Temer, e não parou de cair até 2022. Somente quando começa o governo Lula 3 a cobertura foi reiniciada. Hoje, a cobertura vacinal é 85%.

A Estratégia de Saúde da Família sofreu muito nesse período, inclusive com uma retração da cobertura em alguns estados. A Estratégia de Saúde da Família tem que receber um novo impulso. Com o recente diagnóstico da estrutura da Atenção Primária à Saúde no Brasil, nós temos indicadores do investimento que necessita ser feito para melhorar essa base, composta de quase 50 mil Unidades Básicas de Saúde (UBS). A Atenção Primária à Saúde não é atenção primitiva. Temos que melhorar essa base de atenção, levando tecnologia da informação para as UBS, para fazer uma atenção à saúde de boa qualidade e resolutividade.

As equipes de saúde da família têm que conseguir chegar na estrutura social, têm que frequentar as escolas, as igrejas, os locais de trabalho, que é onde as pessoas adoecem e morrem. A fortaleza da Estratégia de Saúde da Família é estar próximo ao cidadão. Só que ela precisa fazer essas pontes. Essa é uma responsabilidade totalmente descentralizada. A Estratégia de Saúde da Família e a Atenção Primária à Saúde são resultado da ação municipal, resultado da ação que vai acontecer em 5.700 pontos do Brasil. Aqui existe um investimento muito grande a ser realizado.

Revolução tecnológica

O segundo ponto a destacar é a revolução tecnológica que estamos vivendo, particularmente a partir da tecnologia da informação. Temos que promover a utilização da saúde digital de forma mais abrangente e rápida. Precisamos expandir a nossa capacidade de utilizar essa tecnologia que pode potencializar a nossa capacidade de intervir positivamente na saúde das pessoas. Mas temos que melhorar a nossa introdução: é preciso ter prontuários digitais em todas as unidades de saúde, tanto na UBS quanto na Estratégia de Saúde da Família. 

O agente comunitário, quando vai na casa das pessoas, recolhe dados. Esses dados são incorporados numa visão geográfica de onde as pessoas vivem e é essa visão geográfica que é a fortaleza da Estratégia de Saúde da Família. Para isso, nós temos que incorporar, através do prontuário eletrônico, a visão que o agente comunitário de saúde tem e que toda a equipe precisa ter. 

Temos problemas estruturais importantes no Brasil, como a questão do acesso a especialistas, com o Programa Mais Especialistas. Uma parte do que pode ser feito está lá, mas a outra parte necessita ser desenvolvida. Temos que conseguir desenvolver a telemedicina, o monitoramento remoto.

Outro desafio que ainda não foi enfrentado é o da interoperabilidade. Primeiro, temos que deixar de lado o sonho de ter um sistema. Num país deste tamanho, com tantas capacidades se desenvolvendo continuamente, nós nunca vamos ter um software, nós nunca vamos ter um único jeito de enfrentar a necessidade da tecnologia se disseminar. Nós precisamos buscar a tecnologia para ter capacidade de dialogar, seja com o software que for. Temos que usar melhor a nossa capacidade de realizar o que nós aprendemos a realizar, isto é, rodas de conversa. Através de coisas como a gamificação, a terapia assistida por apps ou a telemedicina, isso pode ser feito. Ou seja, tem um mar de coisas aí a serem exploradas sem deixar de lado a possibilidade de conhecer melhor a nossa população por meio do big data. Nesse universo tem um monte de promessas e de possibilidades que são muito reais, mas temos que nos apropriar delas.

Financiamento

O terceiro ponto é a questão do financiamento. A saúde recebe algo em torno de 10% do PIB brasileiro. Desses 10%, 40% é aplicado na saúde. É muito pouco. O PIB brasileiro não é comparável ao PIB dos países europeus. A Inglaterra investe 10% do PIB em saúde, só que o PIB per capita da Inglaterra é muito maior do que o brasileiro. Além disso, eles colocam na saúde 70% do que estão investindo em termos de PIB. Ou seja, nós temos que melhorar nossa capacidade de trazer recursos para o PIB.

É óbvio que a disputa pelos recursos disponíveis é uma disputa de todos os setores. Por isso, temos que evoluir na discussão sobre o financiamento do SUS, principalmente sobre a capacidade que estados e municípios têm de, em se articulando, produzir melhores resultados. O fato é que nós precisamos melhorar a recuperação da Emenda Constitucional nº 86, feita no início do Lula 3, com a aprovação do arcabouço fiscal.

Articulação público-privada

O quarto ponto é bastante polêmico: a articulação entre o público e o privado. Volta e meia, em todas as discussões de que participo sobre a questão da implementação do SUS, discutimos que o Brasil está privatizando o SUS. Não estamos privatizando o SUS; o SUS sempre foi privado. A assistência à saúde no Brasil é privada: 25% da população tem planos de saúde regulados pelo Estado através da Agência Nacional de Saúde Suplementar. Dos outros 75%, cerca de 60% da rede hospitalar brasileira e da rede que oferece acesso à tecnologia no Brasil é privada. Já foi mais – 80% dessa rede já foi privada. É a partir da construção do SUS que os estados e municípios começaram a expandir suas redes próprias e começamos a ter um crescimento da rede estatal. Só que o crescimento da rede estatal encontrou pela frente um obstáculo muito grande, que é a capacidade do Estado brasileiro conseguir mobilizar recursos.

O que é administrar? Administrar é mobilizar recursos para conseguir atingir objetivos. Como é que o Estado brasileiro mobiliza recursos? Através de concursos públicos e de licitações. Essas medidas são muito lentas, além de serem um obstáculo para atingirmos os objetivos que temos que atingir. É muito difícil administrar um hospital a partir de licitações e concursos.

O concurso é fundamental para funções públicas de agente fiscal, agente da justiça, agente da segurança pública. Não tem jeito de ter esse tipo de profissional trabalhando sem ser através do concurso público. Ter concurso público é fundamental para as tarefas exclusivas do setor público. Agora, tentar colocar um hospital para funcionar através de concurso público beira o impossível. É muito difícil. Ao mesmo tempo, o sucesso da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), que é uma estrutura totalmente dependente de servidores públicos e da estabilidade desses servidores, se deve ao fato de ter servidores públicos. Então, não existem soluções mirabolantes, óbvias e universais. Diferentes problemas têm que ter diferentes soluções.

No campo da gestão de serviços de saúde, temos que contar com as parcerias público-privadas, pelo menos enquanto o Artigo 37 da Constituição não for remodelado para serviços que não sejam exclusivos do serviço público. E aí, qual é o grande desafio? Controlar e regular o privado. O número de desastres que temos com essas parcerias é muito grande: roubalheira, desvio de recursos e baixa entrega.

Porém, existem boas soluções e boas aplicações também. Precisamos olhar para essas boas aplicações, discuti-las e debater como controlar a utilização de recursos públicos do ponto de vista privado, sem a transparência que temos do público, porque é privado, mas alguma transparência é preciso ter, com acesso a dados e com comprovação de resultados. O fortalecimento das articulações é fundamental.

Capacidade de entender dados

O quinto ponto é conseguir melhorar a nossa capacidade de entender os dados gigantescos que produzimos. A experiência que temos tido com o Cimatec, na Bahia, e com o Instituto de Saúde Coletiva, da Universidade Federal da Bahia (ISC/UFBA), na produção de megabancos de dados que acompanham grandes populações em termos de vacinação, é fundamental. Mas estamos no começo da utilização do big data. Nesse caso, temos muito a fazer.


A experiência extremamente exitosa do Ministério da Saúde com o Sistema de Vigilância de Fatores de Risco e Proteção para Doenças Crônicas por Inquérito Telefônico (Vigitel) foi muito importante. A consulta telefônica para saber o que as pessoas têm, estão fazendo, o que estão precisando, foi fundamental para melhorar a capacidade do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) de fazer coletas e olhar para o que está acontecendo na sociedade. A experiência que nós iniciamos em 2013-2014 com o IBGE, de fazer coleta de exames quando se faz a pesquisa por amostragem de domicílio, trouxe um número de informações fantásticas; é fundamental voltarmos àquela experiência.

Intemporalidade dos dados

O sexto ponto é promover a interoperabilidade de dados dos diversos sistemas. É aquela ideia que mencionei no ponto número dois: fugir das sociedades proprietárias sem cair na armadilha da autoprodução via Departamento de Informação e Informática do Sistema Único de Saúde (DATASUS). Vamos ter muitos sistemas independentes, mas vamos ter sistemas que tenham interoperabilidade.

Criar regiões de saúde

O sétimo ponto é crucial: criar regiões de saúde. É aqui que volto ao ponto número um. No Brasil existem mais de 44 regiões metropolitanas. O que é uma região metropolitana? É um lugar onde o tênue limite que existe entre um município e outro é quebrado pela vida. A Grande São Paulo tem 39 municípios; é uma região absolutamente conturbada. Nesse contexto, nos perguntamos: de quem é o Aedes aegypti? É deste município, daquele município ou daquele outro município? É dos 39 municípios. Como combater o Aedes aegypti em 39 municípios? Um a um? Não. Tem que haver um pool, tem que haver uma discussão global.

Nós não conseguimos caminhar na construção desse novo espaço intermunicipal com a coordenação dos estados. Esse, do ponto de vista de arranjo funcional do sistema de saúde brasileiro, é o desafio mais importante. Mais importante do que ter dinheiro é conseguir criar um modelo de gestão nacional com base em manchas populacionais. Alguns estados avançaram um pouco mais nisso. Tive a oportunidade de viajar recentemente para ver o que estava acontecendo no consórcio de Santa Catarina. Existem muitos consórcios em Minas Gerais, no Ceará, só que ainda são soluções que não estão dando lugar a mais resultados.

Formação dos profissionais da saúde

O oitavo ponto é bastante falado: a formação e capacitação dos profissionais da saúde, inclusive a questão de lidar com as 448 faculdades de medicina que foram criadas – com a probabilidade de em 2030 estarem formando 60 mil médicos por ano no país. Mas que tipo de médico será formado? O problema não é só que tipo de médico; é que tipo de médico, que tipo de enfermeira, de farmacêutico, de fisioterapeuta, de educador físico, nutricionista, dentista, ou qualquer que seja a profissão da área da saúde. E aí não tem jeito: o Ministério da Educação, que é o órgão regulador do sistema de formação no Brasil, tem que acordar para a necessidade de regular essa produção de profissionais para a área da saúde. 

Além de regular essa formação, temos que dar outro passo: as organizações de saúde, em particular as organizações de saúde estatais, as secretarias de saúde, têm que se preparar para se transformarem em organizações de aprendizagem contínua. A Política Nacional de Educação Permanente em Saúde (PNPES), desenhada em 2004-2005, tem que se transformar em realidade. A única maneira de conseguirmos dar uma condição de trabalho melhor para os trabalhadores de saúde é levar informação e conhecimento para eles. Isto vai ser cada vez mais uma responsabilidade das estruturas do Estado.

Criação de complexo econômico industrial da saúde

O nono ponto é a famosa criação de um complexo econômico industrial da saúde. 10% do que o Brasil produz é gasto em saúde. Tem 12 milhões de trabalhadores na área da saúde. Então, precisamos incentivar que mais inovações sejam realizadas no território nacional, na área da pesquisa clínica. Temos que caminhar no sentido de ter mais acesso à tecnologia para que não aconteça o que aconteceu durante a pandemia, de, de repente, não ter luva, não ter máscara, não ter aparelho respiratório, não ter medicamentos para intubação. O Brasil não é um país pequeno. É muito difícil resolver os problemas de acesso a materiais importando tudo que consumimos. O país necessita conseguir desenvolver uma capacidade local de produção.

Lógico que essa capacidade local de produção vai esbarrar na questão do custo. De repente importar da Índia é mais barato do que produzir localmente. E é verdade, exceto quando a Índia não quer vender para o Brasil porque prefere vender para o mercado local. Nesse caso, vamos ficar sem material, como aconteceu na pandemia. Aí existe a necessidade de uma inteligência do Estado para produzir uma política pública para enfrentar essas questões.

Problemas transversais  

O décimo ponto é pensar numa série de problemas transversais. A questão da assistência farmacêutica tem que ser enfrentada de uma maneira melhor; ela é bastante fragmentada. Não vejo a possibilidade de a Farmácia Popular do Brasil incorporar mais medicamentos e termos um sistema de assistência farmacêutica como os ingleses, espanhóis, portugueses e italianos têm. Mas o país precisa caminhar no sentido de ter uma melhor assistência farmacêutica.

Além disso, temos que conseguir melhorar a capacidade de incorporar tecnologia. A Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no Sistema Único de Saúde (Conitec) é a solução? A Conitec é parte da solução porque não podemos ter um sistema de incorporação de tecnologia público como a Conitec e um programa de incorporação de tecnologia privado como é o Rol de Procedimentos e Eventos em Saúde da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), onde no Rol tem uma tecnologia mais moderna, e na Conitec tem a que dá para ter.

O aprendizado que tivemos com a Aids é muito importante. Nós somos capazes de socialmente, se quisermos, fazer o que deve ser feito. Então, temos que repensar o processo de incorporação de tecnologia através da Avaliação de Tecnologia em Saúde. Finalmente, temos que ter um sistema nacional de monitoramento de enfermidades que tenha grande autonomia – não para intervir. A intervenção continua sendo da Vigilância Epidemiológica do Ministério da Saúde, das secretarias estaduais e das secretarias municipais. O que necessitamos é de um órgão de monitoramento ambiental que consiga olhar para os seis biomas brasileiros e acompanhar o que acontece em termos de aparecimento de novos agentes microbiológicos. Nós temos que construir algo parecido com um centro de controle de doenças que faz o monitoramento do que está acontecendo e entrega esse monitoramento para as áreas de vigilância epidemiológica agirem. Isto é uma necessidade fundamental.

IHU – A transformação digital tem contribuído para a promoção da saúde ou tem dificultado esse processo?

Ana Valéria M. Mendonça – O que vou defender aqui enquanto tese tem um alicerce nas ações de educação, informação e comunicação para promoção da saúde. Quando falamos em tecnologias, chamamos a atenção para o fato de que as tecnologias sociais, como um simples soro caseiro, não devem sair da nossa memória. Digo isso porque vivemos numa geração conflituosa. 

É preciso que nós nos preocupemos com a transformação digital, que é paulatinamente tranquila para uns, mas dolorosa para outros. Apesar de um Brasil agigantado, tecnológico, robusto, com tecnologias e projetos que nos levam para o futuro, ainda existe um analfabetismo funcional e informacional no país; alguns territórios carecem de políticas públicas e tecnologias. Não é qualquer celular que acessa conteúdos, que faz download, upload, que entra em apps, que baixa aplicativos. Nem sempre as pessoas têm Wi-Fi em casa para acessar informações sobre saúde. 

Comunicação em saúde

A comunicação em saúde tem que ser promotora porque lida com cultura e conceitos subjetivos. A comunicação nem sempre está dada; ela precisa ser traduzida. Quando falo de tradução, falo da gestão da informação e da tradução do conhecimento em saúde. Não basta apenas uma consulta. Um ponto central dos nossos desafios é distinguir entre uma informação segura, íntegra, de qualidade, baseada em evidências, de outra, baseada em desinformação, em fake news. 60% dos brasileiros já se depararam com a desinformação. Mas isso não é de se estranhar porque a população passa 10h19min por dia na internet. Dessas, 5h25min são dedicadas ao celular. E o que as pessoas fazem no celular? Majoritariamente, estão navegando nas mídias sociais.

O que isso quer dizer? Que o maior uso nas mídias sociais está dedicado ao WhatsApp, em primeiro lugar, ao Instagram, em segundo, e ao Facebook, em terceiro. O Instagram é a mídia das pessoas felizes. Elas estão sempre sorrindo, curtindo a vida, fazendo coisas que ninguém faz e deixando as outras mortas de inveja. 110,9 milhões de pessoas estão navegando no Facebook diariamente. Ele perde para o Instagram, onde ficam 135,1 milhões de pessoas. Mas ambos não ganham do WhatsApp. No entanto, o WhatsApp não é mídia social; é uma mensageria. É um mensageiro como o Telegram, como o antigo Messenger, que as pessoas não deixaram de usar, porque está no Facebook. O fato é que tudo isso está envolvido num ecossistema de uma mesma tecnologia, de um conjunto de empresas que domina a tecnologia por algoritmos. Mas todo esse movimento das mídias sociais está voltado para um consumo de informação que necessariamente passa pela saúde, e a desinformação em saúde mata. 

Posso estar sendo drástica, alarmista, mas tenho dito isto nas disciplinas dos cursos da saúde: a desinformação em saúde mata. A desinformação está nos grupos do WhatsApp: de trabalho, de família, de profissionais, de bairros, de comunidades. Mas ela mata porque consome por dentro o que antes era um princípio de verdade e hoje é tido como viés de confirmação. Ou seja, as pessoas confirmam ou não se a informação é correta, é fiel, é legítima, baseada na opinião de terceiros, em informações perversas, que visam ao confundimento da população. Esse não é um movimento que nos pega de surpresa; ele é muito antigo. Apenas cresceu e aflorou durante a pandemia. 

IHU – Quais são as saídas e os antídotos para romper com a desinformação, particularmente aquelas relativas à saúde?

Ana Valéria M. Mendonça – Temos perspectivas que podem vir a ser antídotos para esse tipo de vírus do mal, que é chamado de infodemia, infoxicação, hiperinformação, mas que nada mais é do que um problema perverso que gera narrativas falsas, mas atraentes. A mentira é atraente; ela se faz atraente. É importante saber disto: a desinformação não circula apenas em situações de vulnerabilidade; ela circula em qualquer lugar. 

O Fórum Econômico Mundial nos alerta para o problema da desinformação. Dela se desencadeia uma série de outros problemas em outros eixos temáticos da sociedade brasileira, desde problemas ambientais, questões climáticas até questões econômicas, políticas e, em primeiro lugar, a saúde pública.

Na reunião do G20 do ano passado, quando se discutiu a integridade da informação, vimos algumas iniciativas que governos estão adotando para que os efeitos da desinformação sejam minimizados. No entanto, essa integridade não foi discutida no âmbito da saúde. Entretanto, no fim do ano passado, no Rio de Janeiro, havia um painel específico para pensarmos juntos a desinformação em saúde. Lá, percebi que temos um grande desafio. 

Em primeiro lugar, para enfrentar esse problema, precisamos verificar a qualidade da informação em saúde na web. Precisamos identificar e reconhecer que a qualidade da informação em saúde, principalmente na web, é a primeira escuta, o primeiro diagnóstico ou o primeiro tratamento que todos procuram. Já se falava muito do “Dr. Google” anos atrás. Agora, não se trata somente do “Dr. Google”, mas de todos os seus aliados: ChatGPT e IA, que fazem com que a máquina por trás de uma plataforma harmoniosa seja muito mais operante e traga mais detalhes dos nossos problemas de saúde e de suas soluções. 

As tecnologias digitais são o nosso grande desafio. Mas um desafio maior é garantirmos a nossa presença. Não falo da presença nas mídias. Eu me refiro à presença quando necessitamos ser presentes na hora de conversarmos com alguém, trocarmos ideias, apresentarmos opiniões baseadas em evidência. Somente assim poderemos garantir uma ciência cidadã, segura, que traga para as pessoas a confiabilidade e uma saúde de qualidade, igualitária, equânime, gratuita.

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