“Minha indignação é não aceitar que estamos vivendo no mesmo momento histórico em que acontece um dos maiores genocídios do mundo”. Entrevista especial com Nicolas Calabrese

A bordo Flotilha Global Sumud, ativista brasileiro vive um dia após o outro, preocupa-se com o futuro dos palestinos em Gaza e com a integridade física e a liberdade dos integrantes das embarcações que partiram de vários portos do mundo rumo a Gaza

Foto: Movimento pelos direitos do povo palestino e pela paz no Oriente Médio -MPPM

Por: Patricia Fachin | 17 Setembro 2025

A música “Sólo le pido a Dios”, uma composição emblemática nas lutas dos movimentos sociais da América Latina, é rememorada entre aqueles que embarcaram na Flotilha Global Sumud em missão humanitária rumo a Gaza. “Eu só peço a Deus que a guerra não me seja indiferente”, como cantou a argentina Mercedes Sosa, diz Nicolas Calabrese, brasileiro do Rio de Janeiro integrante da tripulação da flotilha, é a mensagem que as 20 embarcações, com participação de representantes de 44 países, desejam transmitir ao mundo. “É isto que queremos: que este genocídio não caia na indiferença. Podem dizer que [Gaza] é muito longe, que temos muitos problemas por aqui [no Brasil] e não precisamos fazer isso. Que [os palestinos] que se defendam. Se ficarmos nisso, estaremos perdendo a nossa humanidade e a nossa capacidade de pensar no próximo, num povo que está sendo massacrado pelo poder e pelo dinheiro”, declara o ativista na entrevista a seguir, concedida por WhatsApp ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU no último domingo, 14-09-2025, quando a embarcação partiu da Tunísia, no norte da África, rumo à Gaza, território palestino no Oriente Médio. A previsão de chegada ao destino, informa, é na próxima quarta-feira, 24-09-2025.

Motivado por uma “indignação diária de acordar e ver crianças completamente machucadas por bombas”, Calabrese associou-se ao movimento pró-Palestina e, em 31 de agosto, partiu da Espanha com a finalidade de contribuir para romper o bloqueio israelense que impede a entrada de ajuda humanitária na Faixa de Gaza.

Entre as suas preocupações mais imediatas, comenta, está “o projeto que Israel e os Estados Unidos têm para Gaza, que é de aniquilação completa, de exílio para aqueles que ficarem e de construção de um projeto econômico e turístico a serviço do lucro para esses dois países” e também “a preocupação pela integridade física, pela saúde, pela liberdade dos integrantes da flotilha”. Por outro lado, afirma, a esperança é que a flotilha “gere um desgaste maior para Israel e os Estados Unidos e que os demais países tomem medidas concretas, que o Brasil rompa relações diplomáticas e comerciais com Israel, pare de vender petróleo e aço”.

A seguir, ele relata como tem sido a rotina em alto-mar, destaca iniciativas voluntárias que têm auxiliado a flotilha e fala das expectativas de poder ajudar o povo palestino.

A Arquidiocese de Porto Alegre está arrecadando fundos para a ajuda humanitária em Gaza. Os recursos financeiros arrecadados serão destinados ao Patriarcado Latino de Jerusalém, com atuação direta em Gaza, por meio de repasses feitos pelo Instituto das Obras de Religião (IOR), do Vaticano

Nicolas Calabrese (Foto: Arquivo pessoal)

Nicolas Calabrese é educador popular e coordenador nacional e estadual da Rede Emancipa, Movimento Social de Educação Popular que oferece cursinhos populares gratuitos de preparação para o Enem e vestibulares, luta pela democratização do acesso à universidade e por uma educação pública gratuita, de qualidade e crítica.

Confira a entrevista.

IHU – Por que você decidiu fazer parte da tripulação da Flotilha Global Sumud? De onde vem a motivação de participar dessa iniciativa?

Nicolas Calabrese – A motivação vem da minha indignação diária de acordar e ver crianças completamente machucadas por bombas; de ver as imagens das cidades palestinas, como eram antes dos bombardeios de Israel; de ver hospitais bombardeados, jornalistas sendo assassinados, e não poder fazer nada. Minha indignação é não aceitar que estamos vivendo no mesmo momento histórico em que acontece um dos maiores genocídios do mundo, transmitido ao vivo em todas as redes sociais. Israel e Estados Unidos não sofrem nenhuma consequência ou punição por decidirem aniquilar e massacrar um povo completo, como é o povo palestino.

Acompanhei de perto as redes sociais, transmissões e informações da última flotilha, em que estiveram Greta Thunberg e Thiago Ávila, do Brasil. Vi, com indignação, quando foram sequestrados em águas internacionais por Israel e foram levados contra a vontade deles para o território palestino, ocupado pelo regime israelense. O ato deles me pareceu muito nobre e, quando se apresentou a possibilidade de eu participar de uma nova flotilha, me coloquei à disposição para participar dessa grande empreitada, que é maior do que todas as outras flotilhas somadas.

IHU – Como sua família reagiu à decisão de participar da flotilha?

Nicolas Calabrese – Em termos gerais, surpreendentemente bem. Comentei brevemente com alguns familiares. Para a minha mãe, disse que iria fazer parte de uma missão humanitária, numa flotilha, sem especificar para onde. Mas eles reagiram bem, apoiaram e disseram que era coerente com a forma com a qual vivo, milito e luto por liberdade e solidariedade. Meu pai questionou por que eu iria para a terra dos outros, na briga dos vizinhos. Ele não está muito feliz comigo aqui. Ele questionou uma vez e depois aceitou. Não teve muito o que fazer.

IHU – Como e por que se engajou na causa pró-Palestina?

Nicolas Calabrese – Eu me engajei na causa palestina doze anos atrás, quando comecei a me politizar e me informar mais sobre as questões sociais, políticas e me engajar na militância socialista. Comecei a ler mais sobre como tinha sido a história da Palestina e de Israel e como Israel tinha ocupado o território palestino – o que teve uma consequência muito negativa para este povo. Comecei a estudar como foi essa ocupação violenta e me tornei militante solidário com a questão do povo palestino.

IHU – Por outro lado, como você se posiciona em relação à atuação do Hamas na região?

Nicolas Calabrese – Nós somos uma flotilha legal e pacífica. Temos algumas diferenças com algumas posições do Hamas. A minha posição e a de muitas pessoas aqui é a de que há um setor nesse confronto que é terrorista e esse setor se chama o Estado de Israel, que vem realizando o massacre de crianças e civis em hospitais e escolas há 78 anos. É importante trazer essa definição de que há um Estado terrorista e que ele se chama Israel.

IHU – Como está sendo a rotina a bordo rumo a Gaza?

Nicolas Calabrese – A rotina está sendo a de viver um dia após o outro, sempre observando a previsão do tempo. Os ventos estão muito fortes e as ondas grandes têm feito com que tenhamos que esperar para ter condições climáticas melhores – já tivemos que traçar outros rumos.

Muitas pessoas, nos primeiros dias, passaram mal por causa do enjoo. Depois, fomos nos adaptando às ondulações. Enfim, estamos em um espaço reduzido, onde tem comida contada, e a água não é abundante. Temos que nos policiar no consumo. Na convivência com outras seis pessoas, precisamos nos revezar para cozinhar, para não ocupar o espaço do outro, para se compreender. Não é uma viagem de férias. Estamos convivendo com as pessoas da melhor forma possível para atingir nossa missão humanitária.

IHU – O que você destaca desta experiência?

Nicolas Calabrese – O que mais destaco é que, por um lado, estamos no mar, mas, por outro lado, tem milhares de pessoas em terra que estão se mobilizando e dando apoio. A despedida em Barcelona, em 31 de agosto, foi impressionante; um momento ímpar na minha vida. As pessoas que estavam nos dois lados do canal cantavam e gritavam em favor da palestina, contra o genocídio. Elas vibravam muito com todos os barcos que partiam rumo a essa grande missão humanitária.

Destaco também a quantidade de pessoas qualificadas, com experiência marítima e elétrica dos barcos e com experiência de logística. A nossa alimentação foi organizada por um grupo de voluntários de uma cidade próxima de Barcelona, que organizou toda a comida. A comida é vegana, saudável, nutritiva e variada, com diversos legumes e sabores. Nunca tinha tido a experiência de ter uma dieta dessas. A organização voluntária mostra a consciência da luta. Esses voluntários não estão nos barcos, mas fizeram um belo trabalho para que tenhamos uma alimentação adequada.

 

IHU – Houve algum incidente ou alguma intervenção de natureza política à embarcação até o momento?

Nicolas Calabrese – As flotilhas têm muita história. Em 2010, o regime israelense metralhou um barco que estava levando ajuda humanitária e matou nove pessoas. Outra experiência foi a de junho de 2025, onde Greta e Thiago estavam, que foi interceptada por Israel.

Nesta flotilha, estamos vendo drones acompanhando o movimento dos barcos e vimos a declaração do ministro de Israel, de que seremos tratados como terroristas e levados às prisões de máxima segurança, o que já é uma forma de intimidar ou intervir politicamente para que a flotilha perca força. Mas estamos seguindo com muita resistência e resiliência para que dê tudo certo, para que, de forma pacífica, possamos ajudar nossos irmãos e irmãs na Palestina.

IHU – Como você reage a esse anúncio? Tem medo de ser preso e ficar detido em Israel?

Nicolas Calabrese – Isso faz parte de uma disputa midiática. Eles querem intimidar e colocar pedras no caminho da flotilha e por isso fazem esse tipo de declaração. Mas sabemos que isso não é nada comparado à situação do povo palestino. O massacre ao povo palestino é muito mais grave do que esse anúncio.

Ao mesmo tempo, obviamente, nós sentimos medo, prezamos muito pela nossa integridade física, pelo nosso retorno com vida e liberdade, mas sabemos do que o regime israelense é capaz. Sentimos medo, mas superamos esse medo porque pensamos que alguém precisa fazer alguma coisa. Se os governos não fazem nada, nós, povos do mundo, estamos nos organizando. Mais de 44 países e mais de 50 barcos estão querendo fazer alguma coisa. Que os povos do mundo abram os olhos do mundo para o que está acontecendo. É isso que queremos destacar.

IHU – Quais são suas principais preocupações e esperanças neste momento?

Nicolas Calabrese – Em primeiro lugar, o projeto que Israel e os Estados Unidos têm para Gaza, que é de aniquilação completa, de exílio para aqueles que ficarem e de construção de um projeto econômico e turístico a serviço do lucro para esses dois países. Ou seja, arrancar um povo da sua raiz, do seu lugar histórico, para construir um projeto grande e absurdo. Por outro lado, a preocupação é pela integridade física, pela saúde, pela liberdade dos integrantes da flotilha.

A esperança é que a flotilha gere um desgaste maior para Israel e para os Estados Unidos e que os demais países tomem medidas concretas, que o Brasil rompa relações diplomáticas e comerciais com Israel, pare de vender petróleo e aço. Ocorreram mobilizações no Brasil a respeito disso, reivindicando que os navios parem de levar aço para Israel e que a Petrobras não forneça nenhuma gota de petróleo para servir de combustível ao genocídio palestino. Esta é a esperança: o povo acordar, os governos tomarem medidas e Israel sofrer consequências pelo genocídio que está realizando.

IHU – O que você espera ao chegar em Gaza?

Nicolas Calabrese – Quando chegarmos em Gaza, espero conseguir entregar a ajuda humanitária. Não somente a que estamos levando, mas milhares de toneladas de ajuda humanitária que estão nas fronteiras, ajuda bloqueada por Israel, e outras tantas que poderiam ser enviadas, mas Israel não permite. Israel está fazendo um cerco, fazendo com o que o povo morra de fome, inclusive nas filas, onde as pessoas são metralhadas. Esperamos que nossa ajuda chegue, mas também que se abram os corredores para que outros povos também possam ser solidários com o povo palestino.

IHU – Qual é a mensagem desta ação conjunta?

Nicolas Calabrese – A música que cantamos nesses dias com outros integrantes, cantada pela Mercedes Sosa: “Eu só peço a Deus que a guerra não me seja indiferente”. É isto que queremos: que este genocídio não caia na indiferença. Podem dizer que [Gaza] é muito longe, que temos muitos problemas por aqui [no Brasil] e não precisamos fazer isso. Que [os palestinos] que se defendam. Se ficarmos nisso, estaremos perdendo a nossa humanidade e a nossa capacidade de pensar no próximo, num povo que está sendo massacrado pelo poder e pelo dinheiro. Estão matando crianças, destruindo hospitais e a mensagem que esta iniciativa conjunta quer passar é que os povos acordem e sejam solidários e que não sejam indiferentes.

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