16 Outubro 2008
A abordagem feita pelo professor André Lourenço em relação à crise financeira que abala a economia mundial traz para o debate o pensamento de um economista bastante lembrado em épocas de crise: Hyman Minsky. “Tal caracterização tornou Minsky o teórico das crises financeiras por excelência, piedosamente esquecido nos momentos de expansão triunfante do capitalismo e agourentamente relembrado em seus tropeços – assim como Keynes e Marx. Não é acaso que um número crescente de autores esteja empregando o termo ‘crise Minsky’ para rotular o momento econômico atual”, disse ele nesta entrevista concedida à IHU On-Line por e-mail.
Lourenço fala aqui sobre as intervenções de governos de países como os Estados Unidos e a Inglaterra para “salvar” a economia, além de analisar também como o Brasil será atingido pela crise. Para o professor, “Minsky foi um dos primeiros autores a tentar resgatar as idéias de Keynes da vala comum das sucessivas reinterpretações e sínteses que tendiam a reduzir cada vez mais o vigor de sua crítica ao liberalismo”.
André Lourenço é economista formado pela Universidade de Campinas, onde também realizou o mestrado em Ciência Econômica. Na Universidade Federal do Rio de Janeiro obteve o título de doutor em Economia da Indústria e da Tecnologia. Atualmente, é professor na Universidade Federal do Rio Grande do Norte.
Confira a entrevista.
IHU On-Line - Em sua opinião, essas intervenções dos governos em relação à economia podem trazer novos danos para o mercado financeiro?
André Lourenço - Cabe esclarecer inicialmente que as intervenções se fizeram necessárias em tais proporções justamente porque, sob inspiração liberal, foram colocadas em prática políticas de desregulamentação financeira que fragilizaram o aparato governamental regulatório. O impulso do capitalismo à fragilização financeira endógena pode então manifestar-se sem peias, exigindo para sua contenção agora a mobilização de recursos de vulto extraordinário e por formas pouco usuais e também pouco liberais, como a absorção da inadimplência pelo Estado e até a estatização de bancos. Quem semeia ventos...
É fato também que, pelo menos no curto prazo, tais medidas operam no sentido de exercerem um papel de contenção ou amortecimento da crise, embora já haja dúvidas se o montante dos recursos mobilizados foi suficiente e a forma de fazê-lo foi a melhor possível. Cabe ainda observar que tais formas de intervenção têm sido significativamente diferenciadas conforme os países. Nos EUA, os recursos públicos foram destinados inicialmente à absorção dos empréstimos inadimplentes das carteiras dos bancos; no Reino Unido, um plano mais estruturado visa a estatização das instituições financeiras privadas problemáticas; no Brasil, afora as tradicionais vendas de dólares para impedir desvalorizações consideradas excessivas da moeda, o foco tem sido dirigido à manutenção do crédito bancário, em particular pela manipulação dos percentuais de depósitos compulsórios exigidos dos bancos comerciais no banco central. Outros países simplesmente ampliaram os seguros sobre depósitos bancários e reduziram as taxas de juros. E assim por diante.
Minsky e a crise financeira
Na visão de Minsky [1], sempre que o Estado atua para estabilizar uma crise financeira mediante injeção de enormes montantes de liquidez ou salvamento, de uma forma ou outra, de instituições financeiras privadas (como tem sido a norma), ele contribui no sentido de amortecer a crise atual. Ao mesmo tempo, ele está lançando as sementes da crise financeira futura, pois sinaliza ao setor financeiro sua disposição de salvar os que tomaram as decisões que desencadearam a crise. Aponta que o custo de correr tais riscos para os capitalistas não é tão grande, o que tende a ser interpretado como um convite para assumir, no futuro, riscos em escala ainda maior na busca por lucros mais elevados. É bastante provável, aliás, que as dimensões da atual deflação de ativos estejam relacionadas com a solução encontrada para a crise financeira anterior, cuja causa imediata foi o furo da bolha Nasdaq (National Association of Securities Dealers Automated Quotations), no início do milênio. A ação do banco central estadunidense naquela ocasião certamente foi um dos fatores que amplificou a recente bolha de imóveis, cujo estouro deflagrou a presente crise.
A extensão dos danos, evidentemente, depende da dimensão da intervenção e das suas peculiaridades em cada país. Em particular, depende da capacidade de salvar as instituições financeiras sem, paralelamente, salvar seus donos. Trata-se, evidentemente, de espinhosa questão política e jurídica, que esbarra nos limites do próprio capitalismo.
IHU On-Line - De que forma a economia brasileira está exposta diante dessa instabilidade financeira global?
André Lourenço - Em tempos de mundialização do capital, todas as economias estão expostas à crise, embora em graus variados, devido aos níveis de abertura comercial e financeira também variados, bem como aos distintos instrumentos de política econômica disponíveis aos governos, que podem servir (também em diversos graus) como amortecedores dos impactos dessa instabilidade.
No caso do Brasil, os EUA são nosso principal parceiro comercial, e também figuram na lista dos principais parceiros dos nossos demais parceiros. Além disso, possuímos extensas relações financeiras e produtivas. Isto significa que a crise deve nos atingir por duas vias: uma diretamente, pelos transbordamentos dos efeitos da crise sobre os EUA; e outra indiretamente, pelo efeito da crise estadunidense sobre nossos outros parceiros comerciais, e, através destes, novamente sobre a economia brasileira. Os principais canais de transmissão através dos quais a crise pode chegar até nós parecem ser os seguintes.
Em primeiro lugar, aumento da saída líquida de dólares pela conta de capitais do balanço de pagamentos, por dois motivos: a maior remessa de dólares das filiais das multinacionais para socorrer o caixa das matrizes; e o aumento mundial da aversão ao risco, com o aumento do risco-país e conseqüente fuga das aplicações financeiras mais arriscadas (inclusive bolsas) no Brasil (e no resto do mundo) para aplicações mais seguras em títulos do Tesouro estadunidense (em dólar). Esta tendência poderia ser amortecida pelo aumento da tributação ou mesmo de restrições quantitativas à saída de capitais, instrumentos até agora não mobilizados pelo governo brasileiro.
Real x Dólar
Por conseqüência, surge uma tendência de depreciação do real em relação ao dólar. Esta tendência pode se tornar particularmente forte se encetar (como tem de fato ocorrido) expectativas de depreciações ulteriores no futuro. Neste caso surge uma terceira fonte de saída de capitais: agentes econômicos (basicamente bancos) que esperavam até então pouca ou nenhuma depreciação cambial no futuro, e que em função disso haviam assumido posições especulativas ou mesmo Ponzi [2], contraindo empréstimos em moeda estrangeira a taxas de juros reduzidas para aplicar às elevadas taxas brasileiras em reais, vêem-se na contingência de desmontar tais operações e buscar hedge em dólar. Por conseqüência, pressionam ainda mais a cotação do câmbio. Emerge o risco de um círculo vicioso de profecias auto-realizáveis, em que as expectativas de depreciação geram a depreciação, que reforça novamente a expectativa de depreciação, e assim sucessivamente.
É claro que este processo de depreciação desenfreada não precisa necessariamente ocorrer. O Brasil dispõe atualmente de mais de R$ 200 bilhões de reservas internacionais, que podem e têm sido utilizadas pelo governo para impedir depreciações cambiais consideradas excessivas. Contudo, é preciso não perder de vista que em um ambiente de alta mobilidade internacional de capitais, mesmo um volume aparentemente elevado de reservas pode se esgotar com relativa facilidade. O governo enfrenta então a delicada escolha de até que ponto queimar reservas finitas, e até que ponto permitir uma depreciação cambial mais ampla.
Uma depreciação cambial não gera apenas impactos negativos sobre a economia; ela aumenta a competitividade em preços dos produtos nacionais em relação aos produzidos fora do país; assim, tende a favorecer tanto as exportações quanto a produção de bens nacionais que concorrem com importados. Tanto o aumento das exportações quanto a substituição de importações pela produção nacional geram impactos positivos sobre: a) produção e emprego; b) balança comercial, saldo em transações correntes e passivo externo líquido (indicador de endividamento externo).
Efeitos da crise
Por outro lado, a depreciação cambial tende a gerar também efeitos colaterais negativos: a) capitalistas com posições cambiais expostas (endividadas) em dólar vêem suas dívidas crescerem no mesmo ritmo da depreciação, sofrendo perdas e aumentando a fragilidade financeira do sistema econômico; b) aumento da inflação e conseqüente queda dos salários reais e concentração de renda em prol dos capitalistas; a queda dos salários reais, por sua vez, pode reduzir o consumo dos trabalhadores, a produção e o emprego.
O primeiro efeito pode ser amenizado se o sistema financeiro nacional estiver disposto a refinanciar essas dívidas, o que é improvável no presente contexto. O governo, por outro lado, se dispôs a assumi-las ao menos parcialmente, o que pode amortecer a fragilidade financeira, ao custo da socialização da dívida externa. Em um contexto na qual a inflação já ultrapassou o centro da meta, o segundo resultado da depreciação cambial pode levar a novas elevações da taxa de juros pelo banco central. Isto pode de fato conter a depreciação cambial e os preços, mas ao custo de uma possível maior desaceleração da economia, com impactos negativos sobre o emprego.
O congelamento do crédito nos EUA pode ter efeitos deletérios sobre o crédito no sistema financeiro brasileiro, na medida em que muitas instituições financeiras se financiam por lá. Esta é uma das preocupações centrais do governo brasileiro neste momento, manter a adequada irrigação do crédito. Para tanto, tem acionado instrumentos como a redução dos depósitos compulsórios exigidos do sistema bancário, bem como a extensão de linhas de crédito do sistema bancário público (BNDES, BB, CEF). Diga-se de passagem que o Brasil apresenta, neste particular, algumas vantagens em relação a outros países: a) a preservação de um sistema financeiro público, que protege a preservação das cadeias de débito e crédito, e diminui a possibilidade do surgimento de situações de inadimplência em cascata; b) como observava Minsky, países com elevada relação dívida pública/PIB dispõem de um sistema financeiro mais conservador e mais seguro que países nos quais tal relação é baixa; c) a baixa relação crédito/PIB no Brasil tem por contrapartida um sistema bancário com índices de endividamento relativamente baixos, e portanto mais robusto que em países nos quais tal relação é mais elevada.
E se vier a recessão?
Outro canal muito importante é o comercial. Uma recessão estadunidense e mundial acarretará uma queda ainda maior dos preços e possivelmente do volume das nossas exportações, com impactos negativos sobre o saldo comercial e em transações correntes, o endividamento externo, a produção e o emprego domésticos, e ainda uma tendência adicional à desvalorização cambial. Tais tendências podem ser agravadas por um possível aumento do protecionismo nos EUA e em outros países. Quanto mais a economia brasileira conseguir preservar seu crescimento em relação ao resto do mundo, mais rapidamente tendem as importações a crescerem em relação às exportações, e mais fortes tais efeitos negativos sobre o endividamento externo e o câmbio se tornarão.
Em suma, mesmo que a economia brasileira possa ser defendida dos efeitos mais diretos e severos da crise financeira mundial, persiste o fato de que o dilema entre inflação e desemprego deve apresentar sensível piora: tentativas de manter o crescimento e o emprego tendem a exigir depreciações cambiais mais significativas e, portanto, inflação mais elevada, com as nefastas conseqüências já apontadas; tentativas de conter a inflação evitando tais depreciações tendem a exigir juros mais elevados, crescimento mais lento e desemprego mais elevado.
Neste contexto, não é impossível que tentativas de fugir ao dilema impliquem o conhecido e complicado caminho da expansão do endividamento externo – se é que haverá crédito disponível. O caminho para evitá-lo consiste em políticas de transformação estrutural que permitam ampliar o valor agregado da produção nacional e reduzir a vulnerabilidade externa. O desafio consiste na viabilização política interna e externa desse verdadeiro projeto de desenvolvimento nacional.
IHU On-Line - O padrão com que a economia foi movida até hoje pode mudar devido a esta crise? De que forma?
André Lourenço - Dada a contemporaneidade da crise, qualquer análise mais estrutural feita no calor dos eventos do dia corre o enorme risco de pecar pela superficialidade e de incidir em rápida obsolescência. Evidentemente, tais questões dependem crucialmente da profundidade da crise; se esta for apenas superficial, atingindo o sistema econômico de forma leve e/ou temporária, o ideário composto por políticas econômicas relativamente conservadoras seguidas pela maioria dos países desenvolvidos nos últimos 20 ou 30 anos (e que serviram de padrão para muitos dos demais) sofrerá apenas arranhões.
Mas se a crise, como alguns prevêem, se tornar severa e/ou de lenta deglutição por parte do sistema econômico, poderemos até mesmo enfrentar uma mudança significativa do padrão de intervenção do Estado na economia, tal como as provocadas pela Grande Depressão dos anos 1930. Se ocorrer, tal mudança seria marcada pelo aumento da intervenção do Estado na economia, a começar pela reversão da desregulamentação do setor financeiro (inclusive não-bancário). Alguns autores falam abertamente em “fim do neoliberalismo” e em “fim da hegemonia americana”, o que talvez seja precipitado neste momento. Mas, pelo menos nas universidades, Keynes [3] e Marx [4] parecem estar entrando mais uma vez na moda.
IHU On-Line - Que razões impediram que a instabilidade crônica das economias de mercado se traduzisse por tanto tempo nesta queda profunda do nível da atividade econômica?
André Lourenço - Ainda não tenho certeza absoluta de que a queda da atividade econômica será de fato assim tão catastrófica quanto alguns analistas anunciam. É fato que certos indicadores apontam neste sentido, mas pode demorar ainda alguns meses para que esta tendência se manifeste mais marcadamente. Neste meio tempo, não é impossível que as medidas de política econômica tomadas mundo afora pelos governos sejam capazes de restaurar o crédito e evitar uma queda muito severa dos níveis de produção e emprego. As informações até agora disponíveis simplesmente não permitem conclusões categóricas a este respeito. De qualquer maneira, é fato que o capitalismo há muito tempo não enfrenta uma crise sistêmica do porte da Grande Depressão. Minsky apontava a existência de dois mecanismos capazes de evitar depressões nos países centrais (diferentemente dos periféricos).
O primeiro é o chamado big bank (grande banco). Basicamente, trata-se da capacidade dos bancos centrais emprestarem recursos para o sistema financeiro privado, quando este não consegue financiar-se pelos meios tradicionais. Como os bancos centrais dispõem contemporaneamente da capacidade de emissão ilimitada de moeda sem lastro, ao menos potencialmente tal instrumento os capacita a operar sem limites no intuito de socorrer instituições financeiras em dificuldades. Embora potencialmente ilimitado, na prática a margem efetiva de utilização desse instrumento depende, além de uma série de fatores conjunturais, da extensão do poder financeiro privado de cada país. Daí suas limitações de uso pelos países periféricos.
O segundo consiste no chamado big government (grande governo). Trata-se do fato de que, comparado com o período da Grande Depressão dos 30, o governo ampliou significativamente sua extensão, funções e participação de seus gastos no PIB em virtualmente todos os países do mundo. Mesmo no tempo da hegemonia do discurso neoliberal, o fato é que a participação dos gastos públicos no PIB continua quase o mesmo do período anterior ao neoliberalismo, e em alguns países tal participação chegou mesmo a aumentar. Como conseqüência desta ampliação do peso do gasto público na economia, quedas dos gastos privados (consumo familiar, investimento produtivo empresarial) causam hoje impactos bem menos significativos nos níveis de vendas, produção e emprego do que àquela época, e possuem um potencial disruptivo mais limitado. Assim, os grandes governos contemporâneos dotam o capitalismo de um instrumento estabilizador fundamental, mas que só funciona SE os governos NÃO tentarem reequilibrar seus orçamentos quando a arrecadação cair em conjunto com os níveis de produção e emprego.
No contexto atual, aliás, pelo menos nos EUA, ambos os instrumentos foram significativamente ampliados. Resta saber se o foram em extensão suficiente para conter a avalanche resultante do desabamento da enorme pirâmide creditícia, erigida por anos de desregulamentação e inovações financeiras promovidas sob a égide do discurso pró-eficiência dos mercados.
IHU On-Line - Quais as chances de o mundo cair numa depressão econômica?
André Lourenço - Não sei! Trata-se efetivamente de uma questão difícil de avaliar. Nem o sistema financeiro sabe até agora qual é a real dimensão das suas perdas devidas ao não-pagamento de empréstimos e aplicações. Muitas transações resultam de instrumentos financeiros recém-inventados, de funcionamento exótico e valor opaco. Como diziam Keynes e Minsky, a riqueza no capitalismo é abstrata, e seu valor de mercado varia conforme convenções cujos fundamentos são abalados em épocas de crise.
Um segundo vetor da nossa ignorância resulta do fato da real trajetória do sistema econômico depender de decisões governamentais futuras também difíceis de prever. Até que ponto estarão os governos dispostos a agir frontalmente contra o discurso pró-mercados repetido como mantra até tão recentemente? Até que ponto conseguirão convencer os eleitores de que a impopular salvação dos bancos é crucial para a popular salvação dos empregos? Conseguirão (quererão?) limitar o direito de propriedade para salvar os bancos sem salvar os banqueiros? São questões complexas do jogo político e econômico sobre as quais pesa a mais profunda ignorância, e que são, ao mesmo tempo, cruciais para os capitalistas que testam a sorte neste jogo de adivinhação que é a essência especulativa do capitalismo; e para os trabalhadores, cujo emprego e renda dependem dos resultados do jogo.
IHU On-Line - Como o pensamento de Minsky pode ser importante para compreendermos essa crise financeira que abalou o mercado mundial?
André Lourenço - Minsky foi um dos primeiros autores a tentar resgatar as idéias de Keynes da vala comum das sucessivas reinterpretações e sínteses que tendiam a reduzir cada vez mais o vigor de sua crítica ao liberalismo. Conduziu este processo de resgate a partir de uma perspectiva crítica do capitalismo: ao invés de interpretá-lo como um mecanismo social em geral eficiente de alocação dos recursos (tal como na teoria dos mercados eficientes de Fama), mas carente de pequenos ajustes, Minsky o via como um processo essencialmente falho, gerador de assimetrias e desequilíbrios em geral, financeiros em particular. Tal releitura de Keynes captava o caráter inevitavelmente especulativo das decisões capitalistas, posto que todas são, no fundo, exercícios de adivinhação do futuro, futuro cercado de incertezas e ignorância, e não redutível ao cálculo probabilístico. Em particular, o autor chamava a atenção para a lógica essencialmente financeira que cercaria as decisões de acumulação de capital, mesmo as ditas “produtivas”.
Neste processo, recuperou e enfatizou a idéia presente em Keynes de que o capitalismo é marcado por uma instabilidade financeira de natureza crônica, mas manifestação intermitente. Assim, embora cada crise tenha suas peculiaridades, as crises financeiras são fenômenos recorrentes do capitalismo e a presente é apenas mais uma de uma longa série histórica. Tal caracterização tornou Minsky o teórico das crises financeiras por excelência, piedosamente esquecido nos momentos de expansão triunfante do capitalismo e agourentamente relembrado em seus tropeços – assim como Keynes e Marx. Não é acaso que um número crescente de autores esteja empregando o termo “crise Minsky” para rotular o momento econômico atual.
IHU On-Line - Minsky pensa que os períodos de instabilidade financeira são resultado da fragilidade dos agentes econômicos estruturados durante a fase da prosperidade. Essa fragilidade pode ser percebida pelo endividamento excessivo e busca pela liquidez. Que regras, em sua opinião, são necessárias para que os mercados financeiros possam cortar essa instabilidade e elevar novamente os níveis de confiança?
André Lourenço - A atual crise financeira compartilha com as passadas as mesmas causas fundamentais incrustadas na essência mesma do capitalismo, e entre as quais se destaca a natureza paradoxal da moeda, um bem que é público, mas simultaneamente objeto de produção por parte do sistema bancário privado. Por outro lado, também guarda determinantes na configuração específica assumida pela acumulação de capital e pelas políticas econômicas governamentais em sua fase mais recente, digamos, nos últimos quinze anos, e em particular no motor do sistema, os EUA.
Minsky observa que a natureza paradoxal da moeda exige que seu processo de criação pelo sistema bancário privado seja posto sob estrito controle governamental, para que este possa ser regulado tendo em vista o bem-estar social ao invés do lucro privado. Contudo, a combinação de inovações financeiras continuadas com desregulamentação financeira (inclusive a revogação da lei Glass-Steagal, que mantinha separados os bancos comerciais dos de investimentos), que marcou a economia estadunidense nos últimos quinze anos, criou sucessivos e significativos descompassos entre a quantidade de moeda efetivamente criada pelo sistema financeiro privado e a quantidade que seria ideal à luz do critério do bem-estar social.
Considerada a experiência de sucessivas bolhas e crises nos últimos quinze anos, parece razoável julgar as (poucas) tentativas de regulamentação global da questão, através dos acordos de Basiléia, um rotundo fracasso. O acordo de Basiléia II em particular, em seu caráter liberal em prol da “auto-regulamentação financeira”, merece parcela significativa da responsabilidade pela alternância entre dilúvio e estiagem violentas do processo de criação de liquidez nos últimos anos.
Um balanço dos agentes financeiros
Na contramão do discurso liberal, Minsky propunha um extensivo exame dos balanços dos agentes financeiros e seu controle contínuo pelas autoridades governamentais responsáveis, tendo em vista a necessidade de guiar toda a evolução do sistema financeiro em direção a posturas financeiras robustas. Mais do que uma regra única ou um índice único, fariam parte do marco regulatório do sistema financeiro o montante e a taxa de crescimento dos ativos bancários, bem como os índices de endividamento (relação ativos/capital) e a relação entre lucros retidos e totais. Propunha ainda que a operação dos bancos centrais privilegiasse o canal do redesconto ao invés das operações de mercado aberto.
Contudo, como observa Minsky, a experiência histórica mostra que não existe solução permanente para a instabilidade financeira no capitalismo. A busca de lucros pelas instituições financeiras, e as inovações que estas desenvolvem neste afã, levam a mudanças cumulativas na estrutura do sistema financeiro que o torna capaz de erodir e, eventualmente, superar os mecanismos regulatórios introduzidos em resposta à crise financeira anterior. Estabelecem-se assim as sementes da fragilidade financeira que desembocará, por sua vez, na crise financeira seguinte.
Notas:
[1] Hyman Minsky foi um economista estadunidense que centrou suas investigações na fragilidade financeira intrínseca à marcha normal da economia e na compreensão das crises financeiras. Tem sido descrito como um keynesiano radical, cujas pesquisas nunca foram bem recebidas por Wall Street.
[2] Um esquema Ponzi é uma operação fraudulenta de investimento que envolve o pagamento de rendimentos anormalmente altos ("lucros") aos investidores, às custas do dinheiro pago pelos investidores subseqüentes, em vez da receita gerada por qualquer negócio real. O nome do esquema "homenageia" o fraudador Charles Ponzi, um italiano que imigrou para os Estados Unidos em 1903, onde se tornou um dos maiores trapaceiros de toda a história estadunidense. A fraude por ele inventada, o "esquema Ponzi", continua a ser aplicado em versões repaginadas, como, por exemplo, o "ganhe dinheiro rápido na Internet". Depois de ser deportado para a Itália, Ponzi imigrou novamente para o Rio de Janeiro, Brasil, onde terminou seus dias na miséria.
[3] John Maynard Keynes foi um economista britânico. Suas idéias inovadoras chocaram-se com as doutrinas econômicas vigentes em sua época, além de ter enorme impacto sobre a teoria política e a política fiscal de muitos governos. Foi um dos mais influentes economistas do século XX. A Revista IHU On-Line número 276 de 06-10-2008 intitulada A crise financeira internacional. O retorno de Keynes dedicou o tema de capa à relação da atual crise com o pensamento do economista.
[4] Karl Marx foi fundador de uma das grandes teorias que iria influenciar os séculos dezenove e vinte, intelectual alemão, economista, sendo considerado um dos fundadores da Sociologia e militante da Primeira e Segunda Internacional. Também é possível encontrar a influência de Marx em várias outras áreas, tais como: Filosofia e História. Teve participação como intelectual e como revolucionário no movimento operário, escrevendo o Manifesto Comunista. A próxima edição da Revista IHU On-Line de 20-10-2008 terá como temática principal a relação da crise financeira atual e o pensamento de Marx.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Soluções para a crise financeira? Uma questão política e jurídica que esbarra nos limites do capitalismo. Entrevista especial com André Lourenço - Instituto Humanitas Unisinos - IHU