A tipificação de crime de terrorismo no Brasil: A perversidade da lei é a sua própria criação. Entrevista especial com Adriano Pilatti

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02 Março 2016

“Parecemos caminhar em direção de uma espécie de ‘democradura’: a máscara do ‘Estado Democrático de Direito’ a disfarçar o autoritarismo crescente dos poderes constituídos face ao poder constituinte”, pontua o professor de Direito Constitucional e Teoria Política.

Foto:www.mst.org.br

A recente aprovação do Projeto de Lei - PL que tipifica o crime de terrorismo no Brasil poderá “ter consequências gravíssimas do ponto de vista das liberdades” e é uma “verdadeira irresponsabilidade” da Presidência da República e do Congresso, diz Adriano Pilatti à IHU On-Line, na entrevista a seguir, concedida por e-mail.

Além disso, pontua, a nova lei, caso seja sancionada pela presidente Dilma, será uma “inutilidade, pois a grande maioria das condutas tipificadas como crimes de terrorismo já são tipificadas como crimes comuns”.

Para Pilatti, a “perversidade essencial” do PL pode ser vista tanto na “amplitude de suas definições” como na “vagueza dos termos em que são estabelecidas”. Como exemplo, ele menciona o Art. 2º do PL, o qual, na sua avaliação, permite uma “larga margem de subjetividade” de interpretação, “que se dá ao agente e à autoridade policial primeiro, ao membro do Ministério Público depois, e finalmente ao juiz para avaliar a ocorrência ou não das motivações e finalidades elencadas”.

Outro ponto polêmico do PL diz respeito às “brechas da lei” que possibilitariam a criminalização dos movimentos sociais e políticos. Os riscos nesse sentido, frisa, “são a própria criação da lei, tecnicamente horrorosa, combinada com o arbítrio policial-judicial. (...) Na verdade, o efeito desse dispositivo é deixar ao alvitre da santíssima trindade repressiva, representada pela polícia, pelo MP e pelo Judiciário, o enquadramento ou não de um caso nessa exclusão. São eles que dirão se o ato delituoso foi cometido com propósito social ou reivindicatório visando a contestar, criticar, protestar ou apoiar, com o objetivo de defender direitos, garantias e liberdades, e assim será enquadrado segundo o Código Penal, ou se foi cometido com propósito terrorista”.

Pilatti reitera ainda que o caráter de urgência em que o PL foi votado na Câmara dos Deputados e no Senado “torna plausível e legítimo considerar a hipótese de que a iniciativa presidencial foi motivada pelo passado recente, o espectro de junho de 2013, e pelo futuro próximo, as contestações e insurgências que poderão decorrer da recessão, do desemprego e da falência dos serviços públicos decorrentes da incompetência e crueldade econômicas do atual governo”.

Adriano Pilatti é graduado pela Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ, mestre em Ciências Jurídicas pela PUC-Rio e doutor em Ciência Política pelo Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro - Iuperj, com pós-doutorado em Direito Público Romano pela Universidade de Roma I - La Sapienza. Foi assessor parlamentar da Câmara dos Deputados junto à Assembleia Nacional Constituinte de 1988. Traduziu o livro Poder Constituinte - Ensaio sobre as Alternativas da Modernidade, de Antonio Negri (Rio de Janeiro: DP&A, 2002). É autor do livro A Constituinte de 1987-1988 - Progressistas, Conservadores, Ordem Econômica e Regras do Jogo (Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008).

Confira a entrevista.

Foto: João Vitor Santos / Acervo IHU

IHU On-Line - Como o senhor avalia a aprovação do Projeto de Lei - PL pela Câmara dos Deputados, na semana passada, que tipifica o crime de terrorismo no Brasil?

Adriano Pilatti - Como um erro que pode ter consequências gravíssimas do ponto de vista das liberdades. Uma verdadeira irresponsabilidade em que se mancomunaram Presidência da República e Congresso. Um ato antidemocrático, seja na sua forma, pois não se estabeleceu nenhuma discussão com a chamada sociedade civil em matéria de alta gravidade, seja no seu conteúdo obscuro e obscurantista.

Uma leviandade, pois se trata de um falso remédio para um problema que simplesmente não existe em nosso país, que não se apresentou nem mesmo quando sediamos a Copa das Confederações e a Copa do Mundo, com trânsito de delegações estrangeiras por todo o território nacional.

Uma inutilidade, pois a grande maioria das condutas tipificadas como crimes de terrorismo já são tipificadas como crimes comuns, só que com penas menos draconianas, menos medievais.

Além disso, é uma aberração que acontece num momento de endurecimento geral das instituições em relação às liberdades, a pretexto de coibir a violência e combater a impunidade. Endurecimento que se dá por parte do Legislativo, do Executivo e do Judiciário.

No Judiciário, o mais das vezes por instigação do Ministério Público e com respaldo da opinião publicada, temos visto (e não apenas nos processos de maior evidência) o uso desmedido das prisões sem condenação, a pretexto de impedir que se dificultem investigações ou se cometam novos crimes. São centenas de milhares de presos sem condenação a superlotar os campos de concentração oficialmente chamados de penitenciárias. Temos visto uma série de obstáculos criados ilegalmente por juízes para impedir o imediato e exaustivo acesso de advogados aos autos das investigações contra seus clientes, uma verdadeira paulada no direito à ampla defesa.

Decisões do STF

Na cúpula do nosso sistema judicial, temos visto o Supremo Tribunal Federal - STF fragilizar a Carta de Direitos da Constituição por cuja guarda deveria velar precipuamente, como se deu há pouco. Em espaço de poucos dias, o STF amesquinhou dois direitos e duas garantias constitucionais individuais. Primeiro amesquinhou o princípio constitucional da presunção de inocência, ou da não culpabilidade, e o direito à liberdade, ao permitir a prisão de todo acusado cuja condenação for confirmada em segundo grau de jurisdição, que é exercido, sobretudo, pelos tribunais estaduais de justiça, onde não é raro que questões como essas sejam examinadas e decididas num tempo que pode variar de quatro minutos até alguns segundos, como demonstra pesquisa recente.

Decisões que são revertidas uma vez em cada quatro casos que chegam ao STF. Decisões que são revertidas em 64% dos recursos que a Defensoria Pública de São Paulo interpõe aos tribunais superiores.

Dias depois, o STF amesquinhou o direito à privacidade e ao sigilo de dados, ao considerar válida a violação do sigilo bancário de qualquer pessoa por simples decisão da Receita Federal, sem necessidade de ordem judicial. Se não é para garantir direitos, para que ter um tribunal constitucional? Além disso, a pretexto de interpretar a Constituição, o STF tem reiteradamente exercido indevidamente o poder constituinte e o poder legislativo ordinário, substituindo-se ao legislador constitucionalmente previsto, o que representa, além de usurpação, perigosa concentração de poder em favor de um órgão não eletivo.

“Temos visto o Supremo Tribunal Federal fragilizar a Carta de Direitos da Constituição por cuja guarda deveria velar precipuamente

Na área legislativa, pulam projetos para criminalizar condutas, para aumentar penas de condutas já criminalizadas, para agravar o regime de cumprimento de penas já aumentadas. Mais um produto monstruoso da velha superstição de que isso resolve alguma coisa, superstição superexplorada por demagogos parlamentares e midiáticos para obtenção de votos ou audiência, não obstante a realidade demonstre que não é assim que protege a segurança pública.

Na área executiva, além de projetos obscenos como o malfadado projeto pró-terror policial-judicial apresentado por Dilma, temos visto recorrentemente o violento cerceamento da liberdade de manifestação pelos órgãos policiais e parapoliciais. Cenas de terror policial contra manifestantes viram rotina e são naturalizadas pela imprensa comercial, pelas instituições, pela opinião publicada. No Rio, não bastasse sua famigerada PM, o atual prefeito da capital criou uma espécie de segunda PM na sua vocação liberticida, uma guarda municipal que aterroriza e vandaliza até blocos carnavalescos.

“Democradura”

Vistos em conjunto, esses fenômenos abrem uma perspectiva muito negativa para o devir das liberdades e da democracia no Brasil. Na verdade, parecemos caminhar em direção de uma espécie de “democradura”: a máscara do “Estado Democrático de Direito” a disfarçar o autoritarismo crescente dos poderes constituídos face ao poder constituinte, a repressão crescente contra os que contestam ou transgridem a ordem estabelecida, com respaldo dos grandes meios de comunicação controlados pelo capital.

Recente repressão policial, em São Paulo, durante manifestação contra aumento de tarifa de ônibus. 
"O "Estado Democrático de Direito” está a disfarçar o autoritarismo crescente dos poderes constituídos face ao poder constituinte, a repressão crescente contra os que contestam ou transgridem a ordem estabelecida". Créditos da imagem: N. ALMEIDA AFP / El País.

IHU On-Line - Que ações o PL caracteriza como crimes de terrorismo? Que tipos de ações podem se enquadrar em crime de terrorismo?

Adriano Pilatti - A perversidade essencial do projeto é justamente a amplitude de suas definições combinada com a vagueza dos termos em que são estabelecidas. Diz o texto aprovado:

“Art. 2º. O terrorismo consiste na prática por um ou mais indivíduos dos atos previstos neste artigo, por razões de xenofobia, discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia e religião, quando cometidos com a finalidade de provocar terror social ou generalizado, expondo a perigo pessoa, patrimônio, a paz pública ou a incolumidade pública.”

À primeira vista e para um olhar leigo, parece razoável, mas não é, sobretudo se atentarmos para a larga margem de subjetividade que se dá ao agente e à autoridade policial primeiro, ao membro do Ministério Público depois, e finalmente ao juiz para avaliar a ocorrência ou não das motivações e finalidades elencadas.

Um exemplo: os chamados atos de “violência simbólica” de alguns grupos, que podem até ser considerados equivocados, mas certamente não são terroristas, contra o que consideram ser “símbolos do capitalismo”, em geral danos de pequena monta causados por adolescentes contra estabelecimentos em grande parte de origem estrangeira, já puníveis pelo Código Penal.

Eles poderiam em tese ser enquadrados como delito cometido por razões de xenofobia. Também cria-se aí a aberração do “terrorismo contra coisa”, a “exposição de patrimônio a perigo”. Mas é com a especificação que se segue nos parágrafos do mesmo artigo que as aberrações começam a se evidenciar:

“§ 1º São atos de terrorismo:

I - usar ou ameaçar usar, transportar, guardar, portar ou trazer consigo explosivos, gases tóxicos, venenos, conteúdos biológicos, químicos, nucleares ou outros meios capazes de causar danos ou promover destruição em massa;

II - incendiar, depredar, saquear, destruir ou explodir meios de transporte ou qualquer bem público ou privado;

III - interferir, sabotar ou danificar sistemas de informática ou bancos de dados;

IV - sabotar o funcionamento ou apoderar-se, com violência, grave ameaça à pessoa ou servindo-se de mecanismos cibernéticos, do controle total ou parcial, ainda que de modo temporário, de meio de comunicação ou de transporte, de portos, aeroportos, estações ferroviárias ou rodoviárias, hospitais, casas de saúde, escolas, estádios esportivos, instalações públicas ou locais onde funcionem serviços públicos essenciais, instalações de geração ou transmissão de energia, instalações militares, instalações de exploração, refino e processamento de petróleo e gás e instituições bancárias e sua rede de atendimento;

V – atentar contra a vida ou a integridade física de pessoa:

Pena - reclusão, de doze a trinta anos, além das sanções correspondentes à ameaça ou à violência.”

O dispositivo é tecnicamente grotesco dada a enorme quantidade de condutas explicitadas, mas se começarmos a isolar as hipóteses veremos que a coisa é assustadora, conforme os exemplos que se seguem. Para avaliarmos o perigo do inciso I, basta lembrarmos o caso de Rafael Braga Vieira, o jovem catador negro condenado a cinco anos e meio de prisão por suposto porte de produto inflamável durante as manifestações de junho de 2013 no Rio: com a nova lei, a pena mínima teria sido de 12 anos!

Tomemos agora o exemplo do inciso III, “interferir (em) sistemas de informática ou bancos de dados”: uma ação com caráter do que os jovens chamam de “zoação” por parte dos chamados “hackers do bem”, que pode ser considerara nociva ou não, ainda que causasse só pequeno e momentâneo transtorno, poderia determinar igualmente de 12 a 30 anos de reclusão. E o inciso IV, “apoderar-se, com violência, do controle parcial, de modo temporário, de escolas ou instalações públicas”: forçar portões e empurrar seguranças para ocupar uma escola ou repartição deve ser punido com no mínimo 12 anos de prisão? E repito: a imensa maioria dessas condutas já é tipificada pelo Código Penal, mas com penas menos absurdas.

“Segundo pesquisa recente, dos 193 países em que hoje se divide o mundo, apenas cinco definem penalmente o terrorismo

 

IHU On-Line – Vislumbra também o risco de o projeto de lei criminalizar os movimentos sociais e políticos, apesar de a nova versão aprovada excluir estes movimentos? Quais os riscos e as brechas do projeto nesse sentido?

Adriano Pilatti - O risco e a brecha são a própria criação da lei, tecnicamente horrorosa, combinada com o arbítrio policial-judicial, que lastimavelmente existe, e muito, entre nós, mas não só entre nós. Não por acaso os especialistas, em todo mundo, tendem a rejeitar a tipificação penal do terrorismo, dada a sua subjetividade e a consequente margem de arbitrariedade que a norma pode dar ao seu aplicador. Não por acaso, a virtual unanimidade dos Estados existentes não o faz: segundo pesquisa recente, dos 193 países em que hoje se divide o mundo, apenas cinco definem penalmente o terrorismo. Não por acaso, a ONU já examinou mais de 150 propostas de definição de terrorismo, rejeitou todas, e não recomenda que os Estados que a integram o façam em suas legislações.

Como lembram os criminalistas Juarez Tavares e Leonardo Isaac Yarochewsky, nem mesmo o Estatuto de Roma, que em 1998 tornou-se o marco jurídico do Tribunal Penal Internacional, o fez. É muita empáfia, é muita leviandade, é muita irresponsabilidade os poderes Legislativo e Executivo brasileiros, que não costumam primar pela mestria legislativa, considerarem que podem fazer bem, sem ouvir ninguém, nem mesmo os especialistas, o que o mundo tem se recusado a fazer, justamente pela dificuldade de impedir o cometimento de injustiças.

Quanto aos movimentos, o Substitutivo da Câmara, ao ser restaurado na votação final, de fato contempla uma pretensa exclusão de atos praticados em manifestações, nos seguintes termos do § 2º do art. 2º:

“§ 2º. O disposto neste artigo não se aplica à conduta individual ou coletiva de pessoas em manifestações políticas, movimentos sociais, sindicais, religiosos, de classe ou de categoria profissional, direcionados por propósitos sociais ou reivindicatórios, visando a contestar, criticar, protestar ou apoiar, com o objetivo de defender direitos, garantias e liberdades constitucionais, sem prejuízo da tipificação penal contida em lei.”

De novo, a uma primeira e leiga leitura, parece suficiente. Não é. Na verdade, o efeito desse dispositivo é deixar ao alvitre da santíssima trindade repressiva, representada pela polícia, pelo MP e pelo Judiciário, o enquadramento ou não de um caso nessa exclusão. São eles que se dirão se o ato delituoso foi cometido com propósito social ou reivindicatório visando a contestar, criticar, protestar ou apoiar, com o objetivo de defender direitos, garantias e liberdades, e assim será enquadrado segundo o Código Penal, ou se foi cometido com propósito terrorista.

Crime penal X Terrorismo

Um exemplo: sabemos que, desde junho de 2013, sempre que há incidentes numa manifestação, ainda que por iniciativa das forças repressivas, a narrativa-padrão dos meios comerciais de comunicação é mais ou menos a seguinte: “quando a manifestação estava terminando, um grupo de vândalos, aproveitando-se da situação, começou um tumulto depredando isso e aquilo”.

Ora, com a nova lei, bastará substituir o termo “vândalo” pelo termo “terrorista” para “separar o joio do trigo” e dizer que o dano cometido nada tinha a ver com o movimento de protesto ou reivindicação, mas foi uma ação terrorista de um grupo extremista. Com isso, o que seria mero crime de dano, segundo o Código Penal (art. 163), punível com 1 a 6 meses de detenção, ou multa, ou com 6 meses a 3 anos na forma qualificada, passará a ser punível com os famigerados 12 a 30 anos de reclusão. E não é um problema supostamente apenas para os adeptos da tática black bloc: não podemos esquecer quantas vezes órgãos da mídia conservadora e reacionária consideraram o MST, por exemplo, uma organização terrorista. E sabemos bem o quanto a mídia conservadora e reacionária tem pautado a ação judicial punitivista, lamentavelmente. Mas as ameaças não param aí. Vejamos o art. 3º:

“Art. 3º. Promover, constituir, integrar ou prestar auxílio, pessoalmente ou por interposta pessoa, a organização terrorista:

Pena - reclusão, de cinco a oito anos, e multa.”

O que raios é ou não é “promover”? Um oceano que se abre para o enquadramento de condutas contestatórias. E o que é “organização terrorista”? O Estado Islâmico certamente o é, mas não esqueçamos que os curdos, que resistem bravamente contra ele, são considerados terroristas pelo Estado turco, que o Congresso Nacional Africano de Nelson Mandela já foi considerado terrorista, que a própria CIA é considerada terrorista de Estado por muitos, e talvez não sem razão… Vejamos agora o § 1º do mesmo artigo:

“§ 1º. Nas mesmas penas incorre aquele que dá abrigo ou guarida a pessoa de quem saiba que tenha praticado ou esteja por praticar crime de terrorismo.”

“O que é 'organização terrorista'? O Estado Islâmico certamente o é, mas não esqueçamos que os curdos, que resistem bravamente contra ele, são considerados terroristas pelo Estado turco

Ora, o Código Penal (art. 348) já define o crime chamado de “favorecimento pessoal”, também chamado “crime de amigo”, ou de solidariedade, muitas vezes ajuda humanitária motivada por compaixão, mas com pena de 1 a 6 meses de detenção na forma mais grave. Pela nova lei, serão de 5 a 8 anos de reclusão. Se não parece suficientemente assustador, pensemos em quem se dispuser a acolher alguém que vier a ser injustamente acusado - o que não será difícil, pelo que vimos acima.

Mas, além disso, no bojo § 1º do art. 6º, há outras hipóteses de criminalização da solidariedade, cito apenas uma, porque basta: “oferecer recurso financeiro, com a finalidade de financiar parcialmente pessoa que tenha como atividade secundária, mesmo em caráter eventual, a prática dos crimes previstos nesta Lei.” A pena? 15 a 30 anos de reclusão! Dar um dinheirinho para ajudar um jovem a escapar à prisão resultante de uma injusta acusação pode acarretar essa avassaladora consequência.

Além disso, temos novos crimes de opinião, que afetam diretamente a liberdade de expressão:

“Art. 4º. Fazer, publicamente, apologia de fato tipificado como crime nesta Lei ou de seu autor:

Pena - reclusão, de quatro a oito anos, e multa.”

§ 1º. Nas mesmas penas incorre quem incitar a prática de fato tipificado como crime nesta Lei.

§ 2º. Aumenta-se a pena de um sexto a dois terços se o crime é praticado pela rede mundial de computadores ou por qualquer meio de comunicação social.”

De novo: o Código Penal (arts. 286 e 287) já tipifica os crimes de apologia e incitação, para os quais comina penas de 3 a 6 meses de detenção, que saltarão para 4 a 8 anos de reclusão. Isso se a conduta não se der por meio da internet, num momento impensado de “incontinência do teclado”, pois aí ela será aumentada de um sexto a dois terços, o que é uma loucura. Qualquer defesa apaixonada da reputação de alguém injustamente acusado poderá ser enquadrada como “apologia”.

Para finalizar e não sobrecarregar o leitor: o texto também agride frontalmente os chamados princípios da lesividade e da ofensividade, consagrados pela ciência penal, segundo o qual só devem ser tipificadas como crimes as condutas que efetivamente causem lesão ou ofensa a direitos. E o faz ao criminalizar os chamados “atos preparatórios”, nos seguintes termos:

“Art. 5º. Realizar atos preparatórios de terrorismo com o propósito inequívoco de consumar tal delito:

Pena - a correspondente ao delito consumado, diminuída de um quarto até a metade.”

Portanto, essa lei será uma ameaça a quem quer que se encontre, individual ou coletivamente, em posição de contestação à ordem estabelecida, suas injustiças e seus privilégios. Isso sem contar os absolutamente inocentes que poderão ser colhidos por essa ampla rede de criminalização de condutas e até de intenções.

IHU On-Line - Como interpreta a exclusão do termo “extremismo político” da lei?

Adriano Pilatti - Fechou uma avenida aberta para a arbitrariedade, mas não todas. É um caso em que uma emenda apenas não tem a força de redimir o soneto, que é tétrico.

IHU On-Line - Que outras mudanças foram feitas no texto da lei de antiterrorismo após ele retornar à Câmara dos Deputados?

Adriano Pilatti - Recordemos a tramitação: o projeto foi apresentado em regime de urgência pela presidente da República, e a Câmara aprovou um Substitutivo, que foi para o Senado. O Senado aprovou outro texto, que retornou à Câmara, pois sendo esta a Casa onde a tramitação teve início, ela tem a prerrogativa da decisão final. A Câmara podia acatar o texto do Senado ou restabelecer o texto anteriormente aprovado, e foi o que fez.

Daí as alterações mencionadas acima, a pretensa exclusão de atos praticados em manifestações, a exclusão do extremismo e outras. No geral, o texto do Senado era pior, mas ao menos num aspecto era menos nefasto, só menos, mas ainda nefasto: no crime de apologia, a pena mínima prevista era menor, 3 e não 4 anos, e não havia a agravante de aumento de um sexto a um terço em caso de uso da internet. Também não se tipificava novo crime de incitação. Mas isso agora é o que se chama “matéria vencida”: prevaleceu, no menos ruim e no pior, o texto da Câmara.

  

“Essa lei será uma ameaça a quem quer que se encontre, individual ou coletivamente, em posição de contestação à ordem estabelecida

IHU On-Line - Fala-se que a apresentação do projeto em regime de urgência pela Presidência da República deu-se por conta das Olimpíadas a serem realizadas no Rio de Janeiro. Há relações entre esses fatos? Qual foi a influência política do Grupo de Ação Financeira contra a Lavagem de Dinheiro e o Financiamento do Terrorismo – Gafi nesta votação?

Adriano Pilatti - Realmente, é intrigante a pressa. Objetivamente, o regime de urgência estrangularia, como estrangulou, a possibilidade de um amplo e necessário debate. Ao mesmo tempo, considerado o precedente das Copas das Confederações e do Mundo, as Olímpiadas não a justificariam por efetivo temor ao terrorismo internacional.

Já a justificativa do Gafi é falaciosa e fantasiosa, como quase tudo que hoje parte da Presidência da República, já que o Gafi exige medidas de combate ao terrorismo, mas não sua tipificação criminal, pelo simples fato de que, como vimos, a maioria dos países não o faz. Tudo torna plausível e legítimo considerar a hipótese de que a iniciativa presidencial foi motivada pelo passado recente, o espectro de junho de 2013, e pelo futuro próximo, as contestações e insurgências que poderão decorrer da recessão, do desemprego e da falência dos serviços públicos decorrentes da incompetência e crueldade econômicas do atual governo.

IHU On-Line - O senhor atribui um peso especial à participação do governo na aprovação do projeto antiterrorismo na Câmara? Qual é a sua expectativa em relação à sanção ou veto da lei pela Presidência?

Adriano Pilatti - Eu não, quem se autoatribuiu foi a própria presidente da República, ao perpetrar essa sinistra iniciativa em regime de urgência. A outrora suposta “Mãe do PAC” tornou-se com isso “Mãe do Estatuto do Terror Policial-Judicial”.

Dessa tresloucada decisão, ela e os então ministros Cardozo e Levy um dia terão de prestar contas, perante a sociedade, perante a luta pelos direitos humanos, perante a História e, se for o caso por ainda lhes restar, perante suas próprias consciências.

Esperar que a criadora vete a criatura é realmente irrealista, ainda que a pressão dos movimentos possa induzi-la a uma “redução de danos” por meio de vetos parciais. O bom mesmo seria vê-la vetar totalmente o monstruoso texto que engendrou, e pedir desculpas pelo “malfeito”. Mas isso estaria já na esfera do milagre.

Agora é pressionar os partidos supostamente críticos à proposta, a Ordem dos Advogados do Brasil - OAB e as confederações sindicais e entidades de classe para que alguém tome a imprescindível iniciativa de propor uma ação direta de inconstitucionalidade, ainda que as últimas decisões do STF não autorizem boas perspectivas. Mas ao menos se estabelece finalmente a discussão, e talvez especialistas e movimentos possam ter voz como “amici curiae”.

IHU On-Line - Como a notícia da aprovação da Lei na Câmara está repercutindo entre movimentos sociais e entre advogados?

Adriano Pilatti - Com grande tristeza e muita preocupação. Dilma atravessou o Rubicão, o Congresso foi atrás e depois virão polícia e inquisidores togados. A rejeição a essa decisão é geral no âmbito dos movimentos e nos setores jurídicos mais afeiçoados às liberdades. E não poderia ser diferente, por tudo que vimos acima.

IHU On-Line - Deseja acrescentar algo?

Adriano Pilatti - O inverno está chegando.

Por Patricia Fachin

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