O retrato de um Brasil muito diferente. Entrevista especial com José Oscar Beozzo

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28 Julho 2009

(Republicamos a entrevista, hoje, pois na sua edição de ontem, faltou uma revisão mais acurada. Pedimos desculpas aos leitores e às leitoras e agradecemos a compreensão).

O padre e teólogo José Oscar Beozzo, concedida por email à IHU On-Line, fala sobre a novidade do 12o Encontro Intereclesial das CEBs, realizado na semana passada, em Porto Velho, RO.

Para Beozzo, ao longo da história das Comunidades Eclesiais de Base, é afirmado que elas “assumem o compromisso na construção de uma nova sociedade; um compromisso político ao lado do eclesial. Isso faz o rosto das CEBs”. E sobre a mais recente encíclica do Papa Bento XVI, Caritas in Veritate, ele considera que ela traz “um apoio importante para o compromisso social da Igreja e para o compromisso ecológico”.

José Oscar Beozzo é coordenador-geral do Centro Ecumênico de Serviços à Evangelização e Educação Popular (Cesep). Mestre em Sociologia da Religião, pela Université Catholique de Louvain (Bélgica) é doutor em História Social, pela Universidade de São Paulo (USP). Faz parte do Centro de Estudos de História da Igreja na América Latina (CEHILA-Brasil), filiado à Comissão de Estudos de História da Igreja na América Latina e no Caribe (CEHILA). É autor de inúmeros livros, entre os quais A Igreja do Brasil (Vozes, 1993); A Igreja do Brasil no Concílio Vaticano II: 1959-1965 (Paulinas, 2005) e, em conjunto com Raimunda Costa, Fidêncio E. Santo e Geralda Silva, Tecendo Memórias e gestando futuro – História das Irmãs Negras e Indígenas Missionárias de Jesus Crucificado – MCJ (Paulinas, 2009).

Confira a entrevista.

IHU On-Line - Qual a visão da Amazônia que foi passada neste 12º Encontro Intereclesial?

José Oscar Beozzo – Foi passada aqui uma visão a partir de experiências concretas. Em primeiro lugar, com o nome que foi dado a cada um dos doze mini-plenários, em que se subdividia a grande assembléia. Cada um recebeu o nome de um rio chave da Amazônia: Madeira, Juruá, Purus, Oiapoque, Guamá, Tocantins, Tapajós, Itacaiunas, Guaporé, Gurupi, Araguaia e Jari. Cada um desses grandes rios foi lugar de encontro, para um grupo de 250 participantes. As pessoas tiveram que tomar contato com a bacia amazônica e seus problemas e realizações. Em segundo lugar, (dia 23/07) foi feito um dia de imersão na realidade local. As pessoas partiram para se encontrar com comunidades ribeirinhas, com comunidades extrativistas, da periferia da cidade, com comunidades afro-descendentes  e indígenas, com ocupações urbanas e assentamentos rurais. Foram também aos hospitais, às prisões, a casas de recuperação de pessoas com dependência química ou com deficiência, para visitar gente que sofre. Os participantes puderam tomar o pulso diretamente da realidade amazônica. O que também vem marcando muito este intereclesial, desde a celebração de abertura, é a presença de 38 povos indígenas aqui da região amazônica principalmente. Os organizadores souberam introduzir todos os delegados no coração da experiência dessa região, começando pela celebração de abertura, que foi no início da estrada de ferro Madeira-Mamoré, em cuja construção no coração da floresta amazônica, milhares de pessoas morreram. Ela marcou o auge do ciclo da borracha na região amazônica que arrastou para a região meio milhão de migrantes nordestinos, em especial cearenses tangidos pelas grandes secas e fome que se abateram sobre a região.

IHU On-Line – Como a preocupação ecológica apareceu no evento?

José Oscar Beozzo – É importante falar sobre os desafios do campo ecológico aqui na região amazônica. Eles foram levantados nos plenários do evento com muita força. O primeiro é o acuamento dos povos indígenas pela expansão do desmatamento, que avança, sobretudo, através da pecuária, mas também das lavouras de soja e de cana de açúcar. A outra questão é a contaminação da água no Rio Madeira e de outros rios da Amazônia. Há dezenas de garimpos de ouro e todos eles usam mercúrio para separar e decantar o ouro. Os peixes se contaminam, as pessoas que o comem também, e assim há a contaminação de toda a cadeia alimentar. A outra questão são as madeireiras e a derrubada ilegal de madeira nas áreas indígenas, que são áreas de preservação ambiental. Também alguns falaram na pesca predatória nos lagos e rios, com redes, e o ribeirinho, que precisa da pesca, começa a ficar sem o peixe. Foi levantada também a questão de que, a cada nova rodovia que se abre, há o desmatamento desenfreado nessas áreas. Aqui na cidade de Porto Velho o grande debate são as duas hidrelétricas do Rio Madeira, a de Santo Antônio e a do Jirau. A Caminhada dos Mártires do dia 22, foi realizada em direção às margens do Rio Madeira, onde se encontravam a cachoeira de São Antônio. O Ato penitencial aconteceu ali, onde o rio já foi desviado e está sendo concretada, a barragem para a instalação da primeira das duas hidroelétricas, a de Santo Antônio e a do Jirau. No entanto, há conquistas também. Foi muito lembrada, por exemplo, a demarcação contínua da área Raposa Serra do Sol. Assistimos, porém, no final da celebração de abertura, um contrasenso em relação à preocupação ecológica do encontro. Foram distribuídos em sinal de fraterna partilha, bombons de cupuaçu e castanha do Pará. Logo depois havia um mar de papeizinhos de bombom atirados no chão, sujando todo aquele espaço da celebração. Então, os cuidados começam por não sujar a natureza, não jogar lixo no chão. É preciso reduzir o lixo e reciclá-lo da melhor forma possível. Há questões pequenas e concretas, ao lado de grandes lutas, como o desmatamento e a preservação das águas e matas. Como vieram pessoas do Brasil inteiro, elas trouxeram as questões ambientais de suas regiões. Tivemos o retrato de um Brasil muito diferente, com desafios ecológicos específicos para cada bioma: caatinga do semi-árido nordestino, pantanal, Amazônia, o cerrado mineiro, goiano e mato-grossense; manguezais da zona costeira, mata atlântica e áreas urbanas que concentram 4/5 da população brasileira.

IHU On-Line - Qual a importância da encíclica Caritas in veritate, de Bento XVI, no contexto deste evento em Rondônia?

José Oscar Beozzo – Em relação à Encíclica, que acaba de ser publicada, há três ângulos diferentes a serem considerados. Um deles, muito auspicioso, é a retomada da reflexão da Igreja em relação às questões sociais. Essa encíclica vem na linha direta da Populorum Progressio, de 1967, retomando o tema do desenvolvimento econômico, social e humano, (desenvolvimento integral, como o apelidava Paulo VI), no quadro da crise econômica atual, e tem todo um capítulo, o quarto, onde a questão ecológica é colocada (números de 48 a 52). A segunda questão é que ela é ainda muito recente. Precisamos de um tempo maior para estudá-la e assimilá-la. Ela chegou – como dizem vocês aí do Rio Grande do Sul – muito “encima do laço” do Intereclesial. No entanto, temos ouvido referências. O próprio Leonardo Boff, na sua fala aqui no evento, retomou as questões ecológicas levantadas pela encíclica. E a terceira questão é ver como esse chamado vai chegar ao chão das pessoas e das comunidades. Mas é preciso reconhecer que a encíclica traz um apoio importante para o compromisso social da Igreja e para o compromisso ecológico.  

IHU On-Line – Qual a importância que o senhor atribui ao 12º Intereclesial? Quais as novidades que têm observado nele em relação às demais edições realizadas?

José Oscar Beozzo – O evento andou muito bem: houve envolvimento da população local, das comunidades e tudo foi bem preparado. Cada comunidade ofereceu uma festa na quinta-feira à noite e todos estavam muito felizes. O que destaco de novidade é o tema, “Ecologia e Missão”, e essa imersão no mundo amazônico. A ecologia, com o aquecimento global, a sobre-exploração dos recursos naturais, a contaminação de rios, mares, mananciais e a poluição atmosférica,  é uma questão grave nesse momento e é bom que as CEBs assumam isso. O segundo ponto diferente é a forma como o encontro foi organizado. Nunca aconteceu nos outros intereclesiais de se dedicar um dia inteiro para as pessoas tomarem contato com as realidades locais. Ninguém voltará com um discurso abstrato, mas, sim, com uma experiência muito concreta de algumas dessas realidades da região amazônica. Oferecer essa oportunidade aos delegados e à própria população local foi extremamente importante e rico. Outro elemento surpreendente é que estamos em um lugar tão longe das áreas mais densamente habitadas do país e com acesso mais difícil e há 56 bispos que estão aqui presentes. É o maior número de todas as edições do encontro. É igualmente marcante a presença forte dos grupos indígenas. Essas realidades fazem a originalidade deste Intereclesial.

IHU On-Line - Quais os principais desafios e limites das CEBs hoje e como isso aparece nos encontros intereclesiais?

José Oscar Beozzo – Sinto um clima de retomada e de entusiasmo. A V Conferência do Episcopado Latino-americano e caribenho em Aparecida, ao reafirmar a importância e legitimidade das CEBs, como caminho eclesial, provocou uma retomada das mesmas dentro da Igreja latino-americana, em especial, brasileira, com muita força. Mas isso não muda os desafios. E um deles é a questão da juventude. Em muitos lugares, as CEBs envelheceram. Uma surpresa boa aqui em Porto Velho foi ver a quantidade de jovens envolvidos em todos os trabalhos. Os delegados de algumas regiões fizeram questão de trazer um grupo grande de jovens da Pastoral da Juventude. Outro desafio é a presença e a atuação das CEBs na periferia das grandes cidades. A experiência inicial das CEBs teve um rosto marcadamente rural  e hoje vivemos num país onde praticamente 85% da população encontra-se nas zonas urbanas. Incorporar os desafios ecológicos também deve ser uma meta para as CEBs de hoje.

IHU On-Line - Como o senhor define a história das CEBs na Igreja do Brasil?

José Oscar Beozzo – No grande plenário aqui do evento, no ginásio de esportes do SESI, muito bonito e ornamentado, havia um grande cartaz horizontal, com os vagões do “Trem das CEBs”. Estive contemplando o tema e o lema dos doze intereclesiais enfileirados juntos e observei alguns deslocamentos. Os cinco primeiros intereclesiais começavam com a palavra Igreja, estampada no tema (1º. UMA IGREJA QUE NASCE DO POVO PELO ESPÍRITO DE DEUS – Vitória, ES, 1975; 2º. IGREJA, POVO QUE CAMINHA – Vitória, ES, 1976; 3º. IGREJA, POVO QUE SE LIBERTA IGREJA, João Pessoa, PB, 1978; 4º. IGREJA, POVO OPRIMIDO QUE SE ORGANIZA PARA A LIBERTAÇÃO, Itaici, SP, 1981; 5º. IGREJA, POVO UNIDO, SEMENTE DE UMA NOVA SOCIEDADE, Canindé, CE, 1983) . Depois, a palavra POVO que já aparecia como Igreja que “nasce do Povo”, “Povo que caminha”, “Povo que se liberta”;  “Povo oprimido”, “Povo unido”, ganha os contornos precisos da definição de Igreja, na Lumen Gentium no Vaticano II, “POVO DE DEUS” e se consagra  como a expressão forte dos próximos intereclesiais (6º. POVO DE DEUS NA AMÉRICA LATINA A CAMINHO DA LIBERTAÇÃO, Duque de Caxias – RJ, 1989; 7º. POVO DE DEUS RENASCENDO DAS CULTURAS OPRIMIDAS, Santa Maria, RS, 1992; 10º. CEBs, POVO DE DEUS, 2000 ANOS DE CAMINHADA, Ilhéus, BA, 2.000; . Agora, pegando o tema deste ano “o grito que nasce da Amazônia”, este encontra-se mais solto, em relação àquelas duas referências anteriores, Igreja e Povo de Deus. Não fica tanto em determinadas questões que eram muito importantes no início, como foi a de recuperar essa dimensão de que nós, os batizados, somos a Igreja, conotando a importância dos leigos e leigas e dos seus ministérios na caminhada das . Esse foi um ponto muito forte das CEBs, tema inclusive da primeira Campanha da Fraternidade da CNBB, em 1964: “Lembre-se, você também é IGREJA”. Outro ponto, ao longo desta história, é afirmar que as Comunidades Eclesiais de Base assumem o compromisso na construção de uma nova sociedade; um compromisso político ao lado do eclesial e com ele entrelaçado. Isso faz o rosto das CEBs. 
No Intereclesial de São Paulo, em 1981 que enfocava as CEBs como povo oprimido que se organizava para a libertação, falava-se da organização nos locais de moradia, como comunidades eclesiais, mas também como associações de bairro empenhadas em favor de melhorias para os bairros esquecidos da periferia das cidades: creche e escola para as crianças, posto de saúde, saneamento, luz, transporte, segurança; nas lutas próprias do mundo do trabalho, como a constituição de comissões de fábrica e a reorganização dos sindicatos nas indústrias, nos serviços e também no campo e, das lutas na esfera política, como a construção de partidos populares, como ferramentas populares para a construção de uma nova sociedade. Neste Intereclesial na Amazônia, a ênfase deslocou-se para os diferentes desafios no campo ecológico e o empenho dos integrantes das CEBs nos movimentos ecológicos, seja nos que respondem aos cinco clamores da Amazônia (grito dos povos indígenas, ribeirinhos, imigrantes; o grito da terra; o grito das águas e o grito das florestas), seja os que vêm das outras grandes regiões do pais.

 

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