O simbolismo do dois na dualidade da vida em movimento de conversão (Mt 21,28-32). Artigo de Frei Jacir de Freitas Faria

Foto: Pixabay

Mais Lidos

  • O drama silencioso do celibato sacerdotal: pastores sozinhos, uma Igreja ferida. Artigo de José Manuel Vidal

    LER MAIS
  • O documento que escancara o projeto Trump: um mundo sem regras, sem Europa e sem democracia. Artigo de Maria Luiza Falcão Silva

    LER MAIS
  • “A esquerda é muito boa em apontar injustiças, mas isso pode ser uma desculpa para não fazer nada”. Entrevista com Rutger Bregman

    LER MAIS

Assine a Newsletter

Receba as notícias e atualizações do Instituto Humanitas Unisinos – IHU em primeira mão. Junte-se a nós!

Conheça nossa Política de Privacidade.

Revista ihu on-line

O veneno automático e infinito do ódio e suas atualizações no século XXI

Edição: 557

Leia mais

Um caleidoscópio chamado Rio Grande do Sul

Edição: 556

Leia mais

Entre códigos e consciência: desafios da IA

Edição: 555

Leia mais

17 Dezembro 2025

"À pergunta de Jesus: Que vos parece? A resposta é: não importa o quanto pratico a religião (anciãos e sacerdotes), o que conta é a conversão, a adesão à proposta do Reino. Religião não salva! Aquele que faz a vontade do Pai, mudando o percurso da vida fora dos trilhos, esse encontra a salvação. Essa é a proposta de Jesus, a inclusão dos que mudam de vida para se incluírem na vida do Pai. O que passou, passou, é retrato pendurado na parede do tempo que não volta mais", escreve frei Jacir de Freitas Faria.

Jacir de Freitas Faria é doutor em Teologia Bíblica pela FAJE (BH). Mestre em Ciências Bíblicas (Exegese) pelo Pontifício Instituto Bíblico de Roma. Professor de Exegese Bíblica. Presidente da Associação Brasileira de Pesquisa Bíblica (ABIB). Sacerdote Franciscano. Autor de treze livros e coautor de quinze. Publicou recentemente Bíblia Apócrifa: Segundo Testamento (Vozes, 2025). São 784 páginas com a tradução de 67 apócrifos do Novo Testamento sobre a infância de Jesus, Maria, José, Pilatos, apocalipses, cartas, atos etc. Canal no YouTube: Frei Jacir Bíblia e Apócrifos.

Eis o artigo.

O texto sobre o qual vamos refletir hoje é Mt 21, 28-32. Trata-se do diálogo de Jesus com os sacerdotes e anciãos. Na narrativa aparecem dois grupos sociais (sacerdotes e anciãos), dois filhos e duas personagens públicas (publicano e prostituta). Há também Jesus e o pai. Chama a atenção o fato de a narrativa ser constituída de pares. Por que Jesus usou o simbolismo do dois? O que Ele queria demonstrar?

São vários os exemplos bíblicos que se referem ao número dois. Ele aparece na Bíblia nada menos que 482 vezes. Jesus envia seus discípulos dois a dois (Mc 6,7). Ainda que fossem 72 enviados, dois a dois deveriam ir pelas cidades (Lc 10,1). Dois discípulos homens são válidos para a dizer a Palavra de Jesus. Segundo a lei de Dt 19,15, duas testemunhas tornam um fato verdadeiro. Uma só não é suficiente para a condenação de um infrator. Também 1Tm 5,19 afirma que “a denúncia contra um presbítero só seria aceita com o depoimento de no mínimo duas testemunhas”.

O número dois também pode significar dualidade, opostos que se encontram ou estão divididos. Daí que Mt 21,28-32 fala de dois filhos opostos na atitude, dois pecadores (publicanos e prostituta) que se opõem aos puros (anciãos e sacerdotes). Essa dualidade também pode ser de de complementaridade, como no caso da união entre um homem e uma mulher (Gn 2,24). Até a criação é dual, feita de diferentes, macho e fêmea (Gn 2,24), luz e trevas (2Cor 6,5), noite e dia (Gn 1,15), vida e morte (Dt 30,19). Até a Lei está em duas tábuas, com mandamentos diferenciados que se complementam (Ex 31,18). No mito do dilúvio, os casais entram aos pares na arca de Noé. Na outra ponta da língua, no Apocalipse 11,3-4, aparecem duas testemunhas ecológicas: “E darei poder às minhas duas testemunhas, e profetizarão por mil duzentos e sessenta dias, vestidas de saco. Estas são as duas oliveiras e os dois castiçais que estão diante do Deus da terra”. A língua hebraica, seguindo essa lógica do dois, tem para o número 2, duas formas diferentes para masculino (shenaim) e o feminino (shetaim).

Por fim, o número dois, no mundo bíblico, equivale também a testemunho, que deriva do latim testimonium ou testis, testemunha, da qual originou testículo, testigo, em espanhol. Na Roma antiga havia o costume de, nos juramentos, o homem tocar nos seus testículos para dizer a verdade. Daí a relação entre testemunho e testículo. Segundo a lei judaica, a Halakáh, somente judeus tementes a Deus e sem pecados graves é que podiam dar testemunho. Em cada caso, eram necessárias duas testemunhas homens. Mulheres e crianças não eram aceitas.

O objetivo principal do número dois é unir os diferentes. O evangelho de Mt 21,28-32, seguindo esse modo de pensar a partir do número dois, apresenta a relação entre opostos que não se complementam, com exceção para os publicanos e prostitutas que estão unidos na salvação, pois eles creram na proposta do Reino dos Céus.
E por que prostitutas e publicanos? Primeira resposta é que eles eram considerados pecadores públicos, portanto, rejeitados pelos judeus. A prostituição é vista na Bíblia como pecado de imoralidade sexual, pois ela é uma afronta ao corpo, considerado templo sagrado. Atentar contra ele significa idolatria, isto é, infidelidade em relação a Deus (Os 4,11-14). Prostituição é atentado contra o corpo, templo do Espírito Santo, portanto contra Deus (1Cor 6,18-20). Por outro lado, Deus perdoa os que se arrependem, como Raabe de Jericó (Js 2) e a prostituta de Lc 7, que não é Madalena. Dt 23,17 menciona os casos de prostituição sagrada. Nesse sentido, a cidade de Jerusalém, na boca do profeta Ezequiel, é chamada metaforicamente de prostituta infiel que se entrega à idolatria (Ez 16;23).

Já os publicanos, judeus funcionários do império romanos, os quais tinham a função de cobrar imposto do povo, eram desprezados e odiados pela sociedade judaica, por vários motivos. Eram vistos como aliados dos opressores, desonestos, pois exploravam os pobres com taxas acima do exigido. Faziam uso de agressividades e ficavam com parte do recolhido para eles, fazendo valer a corrupção. Seus locais de trabalho eram as esquinas das ruas. Por agirem como tal, os publicanos eram excluídos da vida religiosa, não podiam frequentar a sinagoga. Nesse sentido é louvável a atitude de Jesus que acolhe Zaqueu, o chefe dos publicanos, e entra na sua casa como Salvador (Lc 19,1-10). Levi, também conhecido como Mateus, era um publicano. Jesus era amigo dos publicanos e pecadores (Mt 9).

À pergunta de Jesus: Que vos parece? A resposta é: não importa o quanto pratico a religião (anciãos e sacerdotes), o que conta é a conversão, a adesão à proposta do Reino. Religião não salva! Aquele que faz a vontade do Pai, mudando o percurso da vida fora dos trilhos, esse encontra a salvação. Essa é a proposta de Jesus, a inclusão dos que mudam de vida para se incluírem na vida do Pai. O que passou, passou, é retrato pendurado na parede do tempo que não volta mais.

Leia mais