01 Novembro 2025
"Do menestrel ceifado pela ditadura ao cronista das almas femininas, duas trajetórias que, em tons distintos, consagraram a canção como instrumento de resistência e de reinvenção da vida íntima", escreve Walnice Nogueira Galvão, em artigo publicado por A Terra é Redonda, 28-10-2025.
Walnice Nogueira Galvão é professora emérita da FFLCH da USP. Autora, entre outros livros, de Lendo e relendo (Sesc/Ouro sobre Azul).
Eis o artigo.
Do menestrel ceifado pela ditadura ao cronista das almas femininas, duas trajetórias que, em tons distintos, consagraram a canção como instrumento de resistência e de reinvenção da vida íntima.
Geraldo Vandré
Completa 90 anos aquele que compôs o hino nacional da resistência à ditadura. Proibido em todo o território nacional, “Pra não dizer que não falei de flores” seria entoado nos eventos da oposição, fosse ato público, comício, enterro de vítimas e de líderes etc.
Sabe-se lá que terrores viveu? Notícias de outros perseguidos e exilados contam de pessoas que, sem estrutura para aguentar os demônios, preferiram morrer. Há notícia de famoso líder comunista que tentou o suicídio cortando os pulsos com o único instrumento de que pôde lançar mão, uma tampa de lata de sardinha.
Em outros, como o de Frei Tito, a ignomínia dos perseguidores foi exponenciada pelo fato de ele, católico convicto, saber-se condenado pelo suicídio à eterna danação, sem redenção possível. Outros ainda enlouqueceram, tornaram-se alcoólatras, converteram-se a cultos messiânicos ou às drogas – enfim, muitas saídas diferentes para o horror que atravessaram, mas todas destrutivas. E muitos padeceram de esterilidade intelectual, deixando de produzir.
Geraldo Vandré, cria do CPC, formou entre os pioneiros da bossa-nova, embora raramente seja reconhecido. Constituiu sua dupla mais politizada com Carlinhos Lyra. Este até o fim insistiu que sempre foi politizado, desde o começo, quando coordenou com Vinicius de Moraes o show Pobre menina rica e foi co-autor de Subdesenvolvido (1962) com Chico de Assis, célebre sátira em forma de canção que foi cantada Brasil afora, emblema do CPC e presença em todos os grêmios estudantis do país.
Pois Geraldo Vandré e Carlinhos Lyra fizeram parceria que é responsável pelo menos por duas canções de então: a belíssima Quem quiser encontrar o amor (1961) e Aruanda (1962). A Geraldo Vandré devemos algumas das mais lindas melodias da bossa-nova. Mas também há quem prefira Réquiem para Matraga, da trilha sonora que Geraldo Vandré compôs para A hora e vez de Augusto Matraga, filme de Roberto Santos.
É de se lamentar que no Brasil não exista a figura do menestrel popular contemporâneo, que teve exemplares magníficos em outros países, como os chansonniers franceses que desde a Revolução mantiveram o bom hábito de fustigar os poderosos. Tais foram, entre tantos outros, Aristide Bruant e George Brassens, que não couberam no mesmo século.
Em Portugal, Zeca Afonso fez trabalho quase clandestino durante a ditadura salazarista, que ajudou a derrubar. Não foi à toa que teve sua canção Grândola Vila Morena escolhida como senha difundida pelo rádio para deflagrar a Revolução dos Cravos em 1974. Ele, que infelizmente morreria cedo, percorria o país com seu violão, cantando em sindicatos, escolas, igrejas, onde desse enfim, para fazer propaganda da liberdade e da democracia.
Nos Estados Unidos, sobressaem dois deles, identificados à folk music. O pirmeiro, Woody Guthrie, marchou junto com os pobres atingidos pela Grande Depressão dos anos 1930. Deixou canções inolvidáveis, como Where have all the flowers gone ou If I had a hammer. E foi o divulgador do hoje conhecido hino do Movimento pelos Direitos Civis, We shall overcome. Depois dele surgiria Pete Seeger, participante do mesmo Movimento, dos comícios e atos públicos contra o racismo e contra a Guerra do Vietnã.
Geraldo Vandré estava a caminho de ocupar seu lugar nesta ilustre galeria de menestréis populares, quando a ditadura o ceifou. Somos-lhe gratos por ter existido e brindado seus ouvintes com tão belas canções, as de amor e as de guerra.
Imaginem Geraldo Vandré no Maracanãzinho, na final do festival da MPB em 1968, respondendo ao anseio popular ao estrear “Pra não dizer…” Quando a canção terminou, ouviu-se e pode-se ouvir até hoje na gravação o brado retumbante dos 12 mil opositores do regime que ali estavam em estado de insurgência e que sancionaram a vitória da canção – que a ditadura proibiria. Mas não conseguiria impedir sua trajetória histórica.
Basta ouvir com atenção a progressão da figura do menestrel que Geraldo Vandré vai construindo em primeira pessoa desde Porta-estandarte, passando por Réquiem para Matraga, Disparada e Ventania, para culminar em Pra não dizer… Através de seu canto o menestrel conclama a quem o ouve para mudar o mundo, que está bem precisado.
Chico Buarque
Arauto de uma transformação histórica é Ronda, de Paulo Vanzolini, invertendo inesperadamente o ângulo de visão e fazendo da mulher traída a narradora. Não mais um macho ferido em sua vaidade buscando retaliação, mas uma mulher procurando na boemia seu homem, com a intenção, que só fica clara no último verso, de lavar sua honra com sangue. Uma notável inversão do lugar-comum.
Mas eis que surge Chico Buarque e tudo vai mudar na representação do feminino na música popular, como mostra Adélia Bezerra de Menezes em seus vários livros. Com açúcar, com afeto, a exemplo de Ronda, opera a mesma inversão, mas, como o título explicita, sem efusão de sangue. A canção oferece o ponto de vista da mulher restrita à vida doméstica, enquanto o cabeça do casal se diverte na boemia. Mas com resultados pacíficos, não sanguinários.
Ela vai imaginariamente compartilhando as situações que ele vive de fato, com pertinência e graça – a conversa de botequim, a bebida que jorra, os amigos de ocasião – e conclui pelo perdão, quando ele volta para casa.
Como é sabido, a composição atendeu a um pedido de Nara Leão, incrível cabeça pensante da bossa nova, vanguardeira, e descobridora de talentos e de tendências, que nada tinha de boazinha e submissa como a protagonista da canção. Mas é boa amostra da envergadura que o dom de Chico Buarque abarca, embora haja quem prefira suas transgressoras.
Ele deu voz a toda uma galeria de mulheres que falam em primeira pessoa, como em Folhetim” ou Sob medida. Olhando sobranceiras para os homens, são autárquicas e desabusadas (“Sou bandida/ Sou solta na vida/…/Meu amigo, se ajeite comigo/ E dê graças a Deus.” – entoa o vozeirão de Fafá de Belém, em Sob medida);
Sempre atento, com muito respeito e consideração, o compositor sublinha a espinhosa ambiguidade dos laços que prendem a mulher oprimida ao homem opressor, numa verdadeira variante da Síndrome de Estocolmo. Em Esse cara, é a mulher do bandido que se rende a ele: “Ah, que esse cara tem me consumido/com seus olhinhos infantis/como os olhos de um bandido…”.
Outro exemplo, A qualquer preço, é tão complexa que só uma cantora genial como Elis Regina modularia todos os seus tons e semitons de sentido. Para sorte da canção, ela a gravou.
Mas Chico Buarque também pode pôr em cena uma mulher que se revela esquiva a esses papéis, nem vítima nem transgressora, mas talvez algo mais, ou ao menos algo alhures: tal é o etéreo perfil de Beatriz, na parceria com Edu Lobo. O esboço da personagem é conduzido pela rima rara e difícil de compatibilizar, mas que imprime extraordinária sofisticação à composição
É obra-prima que se destaca, mesmo em meio às criações de um artista de tanto refinamento nas músicas e nas letras. Meio surrealista meio onírica, de beleza incomparável, quem lhe fez justiça foi Cida Moreira, que soube acentuar suas delicadezas.
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