A forma de produzir comida ameaça o funcionamento do planeta: gases, consumo de água e extinções

Foto: Chris Leboutillier | Unsplash

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04 Outubro 2025

Um macroestudo na The Lancet destaca que, embora com o modelo atual se obtenha comida suficiente, quase um terço da população mundial sofre de “insegurança alimentar”

A reportagem é de Raúl Rejón, publicada por El Salto, 03-10-2025. 

A forma como atualmente se produz comida é a principal causa de que a humanidade esteja levando o planeta além de seus próprios limites. “Como e onde os alimentos são produzidos, que tipo de comida é consumida e quanto se desperdiça contribui para a ruptura desses limites”, conclui o macroestudo elaborado pela EAT-Commission da The Lancet, publicado nesta sexta-feira.

A produção acelerada de alimentos mina a luta contra a mudança climática: “Há um conflito com a forma como estamos alimentando as pessoas”

A conclusão geral desta revisão científica é que este modelo de produção de comida “ameaça o funcionamento da biosfera e a estabilidade do sistema climático”. Como isso é possível? Consumindo terra e água de forma intensiva, contaminando com resíduos químicos ou gerando 30% dos gases de efeito estufa que provocam a crise climática.

“O sistema alimentar é um dos maiores causadores de muitas das crises que enfrentamos hoje”, explica e resume a codiretora do grupo de pesquisa, Shakuntala Haraksingh Thilsted. Ela se refere à interconexão de problemas como aquecimento global, perda massiva de biodiversidade e saúde global das pessoas. “As evidências expostas em nosso relatório são claras: devemos agir de forma ambiciosa para assegurar melhorias. As escolhas que fizermos hoje vão determinar a saúde das pessoas e do planeta por gerações.”

Um aspecto adicional destacado pelos autores é que, apesar de se produzir muita comida, suficiente para alimentar toda a população mundial, bilhões de pessoas não estão bem nutridas. Ou seja, é possível garantir comida para todos sem forçar o planeta como se faz atualmente. “O sistema alimentar gera calorias suficientes, mas as dietas, em geral, tendem a ser de baixa qualidade”, aponta o estudo.

Nesse sentido, o EAT-Lancet aponta que 29% da população mundial, cerca de 2,9 bilhões de pessoas, sofre de “insegurança alimentar” e 2,1 bilhões estão “expostos a beber água insalubre”. Ou seja, está-se forçando e contaminando o planeta para produzir alimentos mais que suficientes, enquanto um terço da população não consegue se alimentar adequadamente.

O estudo da The Lancet discute como o sistema de produção está ultrapassando diversos limites planetários. Aqui estão os principais, segundo análise de dezenas de cientistas especialistas:

Mudança climática

“Nossos sistemas de produção de alimentos liberam aproximadamente 30% dos gases de efeito estufa que causam a mudança climática”, afirma o relatório. A proporção é tal que os autores garantem que “mesmo que o mundo conseguisse finalmente se afastar da produção de energia a partir de combustíveis fósseis, o sistema alimentar ainda impediria o cumprimento da meta do Acordo de Paris de limitar o aquecimento global a 1,5ºC”.

O detalhamento é o seguinte: um terço dessas emissões vem da agricultura e pecuária; outro terço da conversão de ecossistemas em campos de cultivo e pastagens — o exemplo mais claro é a destruição de florestas e turfeiras para cultivar ou alimentar gado —; e o terço restante corresponde às emissões do transporte de mercadorias, refrigeração, processamento, produção de fertilizantes e resíduos da pecuária.

Mudança no uso do solo

Cerca de 35% de toda a superfície terrestre é usada para produção agrícola. Deste total, um terço é destinado a cultivos e os outros dois terços a pastagens para alimentar gado. Com esse uso intensivo, “todas as ecorregiões do mundo ultrapassaram o limite teórico de preservar metade de seus ecossistemas”, alerta o estudo. As ecorregiões são áreas extensas que compartilham espécies naturais e dinâmicas ecológicas, segundo definição da WWF, que contabiliza 238 ecorregiões no planeta, como: bosque mediterrâneo, florestas temperadas, savana, taiga, deserto e mangue.

“A notável perda de ecossistemas, especialmente florestas, é predominantemente derivada da agricultura”, lembra o EAT-Lancet. O estudo ilustra isso com o conhecido caso de desaparecimento de florestas tropicais para convertê-las “em pastagens, cultivos para biodiesel e soja”. A perda de florestas resulta na queda da biodiversidade, conforme apontam revisões científicas, e deriva em problemas de saúde pública — com a transferência de patógenos de animais para humanos —; aumento das emissões de CO₂ — ao liberar grandes quantidades de carbono armazenadas por séculos nas plantas destruídas — e alteração do sistema hidrológico, ou seja, o fornecimento natural de água.

Água

A produção de alimentos é a maior consumidora de água do planeta, sobretudo pelo uso de irrigação, que representa aproximadamente 70% a 90% do total mundial, destaca a revisão.

Embora “as avaliações mais recentes mostrem que os limites de uso de água foram ultrapassados”, os pesquisadores explicam que o excesso ocorre de forma localizada. Há regiões onde o uso de água na agricultura permanece dentro de limites razoáveis, enquanto outras enfrentam “muitos rios sofrendo estresse hídrico devido à irrigação”.

Entre as propostas do estudo, destaca-se que seria possível manter uma produção suficiente de produtos que requerem irrigação, não apenas utilizando variedades que precisem de menos água, mas também “reduzindo a perda e o desperdício de alimentos”. Ou seja, jogando menos comida já produzida e comprada no lixo.

Um exemplo na Espanha: a Universidade de Alicante calculou que apenas na província de Almería se desperdiçaram 300.000 m³ de água em 2019 (além de 136 toneladas de fertilizantes) na produção de hortaliças descartadas antecipadamente.

Contaminação química

A desigualdade aparece novamente. Enquanto há regiões com colheitas pobres por falta de nitrogênio e fósforo, outras sofrem com excesso de fertilização, causando sérios problemas de contaminação do solo e da água.

O estudo da The Lancet não cita casos específicos, mas não é preciso ir longe para ver os limites sendo ultrapassados. Na Espanha, os resíduos agrícolas, principalmente do excesso de fertilizantes nitrogenados, contaminam águas a ponto de gerar condenação pelo Tribunal de Justiça Europeu. Mais especificamente, o uso intensivo de fertilizantes foi a principal causa do colapso ecológico do Mar Menor.

O diretor do Instituto PotsdamJohan Rockström, lembra que o estudo indica que “embora transformar a forma como produzimos comida seja um desafio, é um requisito para ter alguma chance de retornar a um clima seguro e a um planeta saudável”.

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