25 Agosto 2025
Os planos de Israel para deslocar a população da principal cidade da Faixa de Gaza esbarram em uma população enfraquecida, sem possibilidade de se mudar para outras áreas.
A informação é de Ansam Al Qitaa, publicada por El País, 24-08-2025.
O corpo frágil de Sumaya al-Kafarna, de 35 anos, sentada em frente à sua tenda improvisada na Cidade de Gaza, personifica a fome que consome o território palestino há meses. Esta mãe de cinco filhos perdeu mais da metade do seu peso — de 75 para 35 quilos — enquanto lutava contra o câncer de mama, sem acesso a tratamento e após ser forçada a se mudar mais de 20 vezes desde o início da ofensiva israelense, há quase dois anos. "Sinto dor dia e noite", diz ela, com a voz quase sussurrada. "Com a fome e o deslocamento, meu sofrimento dobrou. Cuidar dos meus filhos é como carregar montanhas."
A tomada israelense da Cidade de Gaza, anunciada como iminente pelo governo de Benjamin Netanyahu, os forçará a fugir novamente. "Estamos esperando a morte. Eles estão nos pedindo para ir embora. Como? Para onde? Não podemos ir a pé até o centro ou oeste de Gaza e não temos condições de pagar pelo transporte", diz a mulher, enfatizando que quase não há lugares razoavelmente seguros na Faixa de Gaza para montar uma barraca, e o transporte é escasso e inacessível. "Ficaremos aqui até as bombas caírem", conclui.
Sumaya diz que a notícia da invasão e ocupação da Cidade de Gaza a exauriu mentalmente mais do que a fome. "Tive um colapso nervoso quando ouvi a notícia. Pensei em como fugiria faminta, doente, incapaz de andar e sem ter para onde ir."
A história de Sumaya reflete a tragédia que se seguiu à declaração de fome das Nações Unidas, emitida nesta sexta-feira, a primeira fora da África desde a criação do sistema de classificação moderno em 2004. De acordo com a Classificação Integrada de Segurança Alimentar (CPI), sediada em Roma, cerca de 514.000 pessoas — quase um quarto da população de Gaza — enfrentam a fome. Espera-se que a fome se agrave e se espalhe para o sul, afetando um total de 641.000 pessoas até o final de setembro.
O Ministério da Saúde de Gaza informou no sábado que oito pessoas, incluindo duas crianças, morreram de desnutrição nas últimas 24 horas, elevando o total de mortes relacionadas à fome para 281 desde o início do conflito, 114 das quais eram crianças. No total, mais de 62.000 moradores da Faixa de Gaza morreram violentamente nesta guerra, que eclodiu em outubro de 2023, de acordo com dados do Ministério da Saúde de Gaza, que a ONU usa como referência.
O anúncio dessas mortes coincide com os planos do governo israelense de lançar uma nova ofensiva contra a Cidade de Gaza, para a qual ordenou a mobilização de 60.000 reservistas. Organizações humanitárias temem que a operação agrave ainda mais a crise.
Para a família Al Kafarna, presa neste território cujas fronteiras estão fechadas há mais de 22 meses, a perspectiva de ser forçada a se mudar novamente os aterroriza. O marido de Sumaya foi ferido no pé no primeiro dia da guerra e levou um tiro na mão durante um cessar-fogo temporário, quando foi visitar sua casa destruída. A saúde deles os impede de caminhar longas distâncias. "Não há lugares seguros na parte central da Faixa de Gaza. O preço da mudança é muito alto", explica ela. "Meu marido e eu não podemos caminhar longas distâncias por causa da nossa saúde, o que significa que corremos o risco de morrer na Cidade de Gaza."
Para os habitantes da Faixa de Gaza, essas fugas forçadas se tornaram uma tragédia tão cruel quanto a fome. O Secretário-Geral da ONU, António Guterres, descreveu a situação extrema dos habitantes de Gaza como um "fracasso da humanidade". Ele também enfatizou que a fome não é apenas uma escassez de alimentos, mas "o colapso deliberado dos sistemas necessários à sobrevivência humana".
Para Philippe Lazzarini, Comissário-Geral da UNRWA, a Agência das Nações Unidas para Refugiados Palestinos, essa fome foi "planejada e provocada pelo governo israelense". Já Tom Fletcher, chefe humanitário da ONU, foi mais contundente: "Os alimentos não estão chegando a quem precisa devido à obstrução sistemática de Israel". Mas o primeiro-ministro israelense, Benjamin Netanyahu, rejeitou categoricamente as acusações e chamou o relatório de "uma mentira absoluta", afirmando que "Israel não segue uma política de combate à fome".
Tawfiq Abu Jarad, um professor de 45 anos e pai de cinco filhos, deixou de lecionar na universidade e passou a viver como deslocado em uma tenda depois que o exército destruiu sua casa em Beit Lahia, no norte da Faixa de Gaza. Desde março, sua família não faz uma refeição completa. "Só encontramos alguns vegetais. Não há carne, nem frutas, nem proteínas. A mesa está vazia e nossos corpos estão ficando mais fracos a cada dia", diz ele, após perder 22 quilos. Seus filhos sofrem de doenças de pele e outras enfermidades causadas pela desnutrição.
A odisseia de sua família incluiu múltiplos deslocamentos por toda a Faixa de Gaza e é apenas um vislumbre do que centenas de milhares de pessoas em Gaza enfrentam. A família se mudou do campo de refugiados de Jabalia, no norte, para Rafah, no sul, passando por Khan Yunis e Al Mawasi, e finalmente retornou à sua aldeia destruída, apenas para ser forçada a fugir novamente sob bombardeios. "A declaração da ONU nos deu um vislumbre de esperança, mas sabemos que não mudará a realidade. Todos os dias, crianças e mulheres morrem de fome", lamenta.
“Quando as Nações Unidas anunciaram que Gaza havia entrado em estado de fome, esperávamos que o mundo reagisse”, diz Abu Jarad em tom de desespero. “Mas, no fundo, sabemos que essa decisão não mudará a realidade.”
Sua filha de 12 anos foi baleada nas costas em março durante uma operação israelense, e seus primos foram mortos no mesmo ataque. Desde então, eles não conseguiram levá-la ao hospital. "A desnutrição atrapalhou sua recuperação", explica ela.
Evacuar a Cidade de Gaza diante de uma possível invasão do exército israelense é agora quase inimaginável para Abu Jarad e sua família. "Mudar-se novamente, mesmo para o centro da Faixa, é exorbitantemente caro; talvez US$ 1.000", diz ele. "Se eu tivesse esse dinheiro, talvez eu fosse embora, mas não há onde encontrá-lo. Se eu tivesse esse dinheiro, eu alimentaria meus filhos primeiro", acrescenta.
Até o momento, a fome foi declarada na Cidade de Gaza e arredores, aproximadamente um quinto do território de 365 quilômetros quadrados. No entanto, projeções preveem que Deir el-Balah e Yan Yunis, mais ao sul, também entrarão em fase de fome antes do final de setembro. Além disso, dados do IPC projetam um aumento no número de pessoas enfrentando a fome em outras áreas se o acesso imediato a alimentos, medicamentos e serviços básicos não for garantido.
A crise foi agravada por mudanças controversas na distribuição de ajuda. Desde maio, o Fundo Humanitário de Gaza — apoiado por Israel e pelos EUA — assumiu a distribuição de alimentos, substituindo agências da ONU. Segundo a ONU, do final de maio a meados de agosto, pelo menos 1.857 palestinos morreram tentando obter alimentos, 1.021 deles nas proximidades dos pontos de distribuição desse controverso fundo.
A declaração da ONU reacendeu os apelos por uma resposta internacional urgente. Especialistas em direito internacional apontam que, como território ocupado, Israel tem responsabilidades legais sob a Quarta Convenção de Genebra, incluindo o dever de garantir o acesso da população civil a alimentos e cuidados médicos.
O advogado e defensor dos direitos humanos Abdullah Sharsharah argumenta que a classificação de Gaza como zona de fome não é apenas uma crise humanitária, mas também uma evidência legal de um potencial crime de guerra, já que o Artigo 54 do Protocolo de Genebra proíbe o uso da fome como arma e o Artigo 8 do Estatuto de Roma proíbe privar deliberadamente civis de materiais necessários à sobrevivência.
Para Sumaya, o anúncio da ONU evoca um sentimento agridoce. “Por um momento, fiquei feliz porque alguém reconheceu o nosso sofrimento. Mas a minha tristeza é maior. A decisão é simbólica: a fome continua a devorar os nossos corpos.”
Este artigo foi publicado em colaboração com a Egab, uma plataforma que trabalha com jornalistas do Oriente Médio e da África.