21 Agosto 2025
Levantamento mostra que em 2024 agressões contra mulheres indígenas foram 145% maior do que em não-indígenas no Maranhão.
A reportagem é de Gisa Carvalho, Layane Jamille Garcêz Santos, Sarah Fontenelle Santos e Sylmara Durans, publicada por Agência Pública, 21-08-2025.
Uma mulher indígena tem 2,4 vezes mais chance de sofrer algum tipo de violência do que uma mulher não-indígena no Maranhão. Quando tratamos de dados absolutos, o índice de violência contra mulheres no Estado é de 117,5 por 100 mil habitantes. No caso das mulheres indígenas, são 288 vítimas a cada 100 mil, ou seja, um valor 145% maior.
Fonte: Sistema de Informação de Agravos de Notificação/Ministério da Saúde (Sinan/MS).
A violência não atinge apenas as indígenas com mais frequência. Os dados relacionados à população geral do estado apontam 89 casos a cada 100 mil habitantes. Para a população indígena como um todo, o índice sobe para 157, uma diferença de 75%. As informações são do Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan), ligado ao Ministério da Saúde e relativos a 2024. O sistema é alimentado por informações colhidas por agentes da Saúde, considerando a autodeclaração do indivíduo.
Fonte: Sistema de Informação de Agravos de Notificação/Ministério da Saúde (Sinan/MS).
Os números da violência contra indígenas no Maranhão incluem quatro feminicídios registrados em 2024. Neste ano, houve mais uma ocorrência, no mês de janeiro. Além dos assassinatos, foram anotados casos de estupro, de violência doméstica e de lesão corporal.
Segundo a professora de sociologia Ana Caroline Amorim, da Universidade Federal do Maranhão (UFMA), são os anos de colonização repleta da lógica do patriarcado ocidental que invade as aldeias e transforma os modos de vida dessa população. “Bem como a compreensão da violência de gênero, uma vez que nas sociedades indígenas a divisão sexual do trabalho se faz de forma complementar”, mas está sendo atravessada pelas hierarquias que historicamente foram impostas aos povos originários.
Pjhcree (lê-se Picrê) Akroá Gamella, que se autodenomina uma defensora popular das mulheres indígenas, acredita que essa violência é um sintoma do mesmo fenômeno que envolve a invasão de territórios, o desmatamento, o envenenamento por agrotóxicos e o desrespeito às tradições. Para as mulheres indígenas, corpo e território são uma coisa só.
“Se uso um trator e reviro a fonte da juçara que existe há décadas no meu território, escavei um buraco na barriga de uma mulher e de um monte de criança ao tirar a maior fonte de alimentação delas. Quando compro um monte de búfalos e coloco no campo onde eu e meus filhos pescamos, matei não só os meus filhos, mas os filhos de outras mulheres”, afirma Pjhcree.
Esse entendimento, que amplia a definição de corpo e abrange as agressões ao território, é “difícil de ser acessado por não-indígenas”, segundo a avaliação de Ana Caroline Amorim.
Para Pjhcree Akroá Gamella, a violência tem se espalhado como forma de adoecimento dos corpos e dominação dos territórios, que, mais uma vez, se mostram como uma coisa só.
É o que também explica Taynara Caragiu, enfermeira indígena e responsável técnica do Polo-Base do município de Santa Inês. Para ela, os efeitos da colonização se manifestam nas invasões e explorações territoriais estabelecidas e organizadas de forma hierárquica e violenta, mantendo as populações indígenas, em especial as mulheres, em situação de vulnerabilidade. “A violência não é da cultura indígena, mas resultado do machismo do patriarcado, que é resultante da colonização”, avalia a enfermeira.
O Polo-Base de Santa Inês faz parte do Distrito Sanitário Especial Indígena (DSEI) do Maranhão. O distrito é formado por seis polos-base e 37 equipes (compostas por profissionais como enfermeiro, técnico de enfermagem, agente indígena de saúde, agente indígena de saneamento, médico e dentista). Esse número, entretanto, não alcança toda a população autodeclarada indígena do estado. Apesar de a Política Nacional de Atenção à Saúde dos Povos Indígenas (PNASPI) prever um atendimento especializado por meio do Sistema Único de Saúde (SUS), quem não está nos territórios especificados, ou em áreas urbanas, acaba sem atendimento.
Os números levantados pelo Sinan relacionados à violência contra mulheres indígenas em 2024 podem estar subnotificados, segundo a Secretaria de Segurança Pública do Maranhão. No mesmo período, o órgão registrou 184 Boletins de Ocorrência com denúncias da mesma natureza. Ou seja, quase o triplo dos informados no sistema do Ministério da Saúde.
Essa diferença entre os registros é causada por vários fatores. Dentro da própria estrutura de atendimento é percebido que para as mulheres indígenas falta credibilidade nos processos conduzidos pelo estado. Além disso, o acesso aos serviços de saúde é mais difícil para comunidades cujos territórios ainda não foram reconhecidos, caso dos Akroá Gamella.
Segundo o IBGE, no Maranhão, 28% das pessoas autodeclaradas indígenas não estão em territórios demarcados e, portanto, não são alcançadas pelo DSEI. Isso significa 15 mil indígenas que seguem sem atendimento especializado.
O advogado Diogo Cabral, da Federação dos Trabalhadores Rurais do Maranhão (Fetaema), explica que os eventos, oficinas, rodas de conversa e momentos de escuta nas comunidades são espaços comuns de circulação de informação sobre as violências contra mulheres indígenas, mas não geram notificação ou dados oficiais. Isso porque, segundo as próprias indígenas, além do medo, o acesso aos sistemas de saúde e de justiça não costumam ser acolhedores com suas denúncias.
A Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) informa que as denúncias chegam pelo Whatsapp da coordenação, mas com a equipe reduzida, dificulta o atendimento das demandas. Para todo o estado, são apenas 9 Coordenações Técnicas Locais, que até o início de 2025 contavam com apenas um profissional cada. Recentemente, a Coordenação Regional da Funai no Maranhão recebeu mais 10 servidores e agora conta, ao todo, com 24 profissionais.
Segundo a coordenadora da Funai no Maranhão, Edilena Krikati, há um esforço para a manutenção do diálogo constante com o Ministério Público, a Defensoria Pública e o Tribunal de Justiça do estado, como formas de garantir os direitos da população indígena.
Entretanto, a juíza Adriana Chaves, do Tribunal de Justiça do Maranhão (TJMA), membro da Comissão de Diversidade do órgão, explica que as pessoas indígenas enfrentam dificuldades para acessar o sistema de justiça devido às barreiras linguísticas, e até de vestimentas que são exigidas para entrar nos tribunais.
A partir das reivindicações por capacitação das equipes de atendimento às mulheres para as especificidades da população indígena, em 2025 a Secretaria de Estado da Mulher (Semu) realizou uma edição do programa “Caravana Maranhão para Todas”, em Grajaú, no sul do estado. A iniciativa alcançou profissionais que trabalham com mulheres indígenas na região.
No TJMA, a juíza Adriana Chaves tem se mobilizado na ouvidoria para atender às questões indígenas. Ela enfrenta o desafio de realizar todas as atividades, desde a escuta, a sistematização das solicitações, até as propostas de mediação e formação para as equipes de atendimento.
Segundo Heliane Fernandes, secretária adjunta de Enfrentamento à Violência Contra as Mulheres da Semu, existe uma dificuldade em acessar dados precisos sobre violência contra mulheres indígenas tanto pela falta de notificação, quanto pela situação de vulnerabilidade em que as vítimas chegam à secretaria por meio das Casas da Mulher Maranhese.
Para deslocar-se até os territórios de difícil acesso e oferecer atendimentos jurídicos e de saúde em territórios, a secretária destaca o “Ônibus Delas” e a “Carreta da Mulher Maranhense”. Entretanto, o Ônibus está com as atividades suspensas desde 2024 para manutenção. Já a Carreta, apesar de se propor a levar os serviços aos territórios, não consegue chegar a alguns lugares, argumentando problemas com terrenos irregulares e falta de energia trifásica nos locais.
Além disso, os serviços ofertados pela secretaria nem sempre contemplam as mulheres indígenas frente às suas necessidades específicas. É o caso, por exemplo, do “Aluguel Maria da Penha”, valor de R$ 600 que as mulheres em situação de vulnerabilidade por violência doméstica recebem para moradia. No caso das indígenas, e a relação construída com suas aldeias, forçá-las a sair de seus territórios seria mais uma violência.
Como forma de reagir ao aumento dos casos de violência, em 2025 o Instituto Makarapy, em parceria com o Ministério dos Povos Indígenas, realizou um encontro na Terra Indígena Arariboia, onde ocorreram três dos quatro feminicídios de 2024.
Foram 60 mulheres que levantaram pontos como: a criação de uma rede de atendimento às mulheres indígenas no Maranhão; a formação e discussão sobre a questão de gênero e a violência nas aldeias; a realização de um diagnóstico aprofundado sobre a situação da violência, com o apoio das universidades do estado; a criação de um dia de enfrentamento à violência contra as mulheres indígenas; e a criação de um conselho das mulheres indígenas. O relatório deverá ser ampliado quando as conferências forem realizadas nas demais Terras Indígenas do estado.