02 Agosto 2025
Pesquisa descobre texto inédito escrito por potiguaras com reivindicações aos colonizadores no atual Nordeste. Achado reforça papel das assembleias e cartas na articulação política dos povos originários até dias atuais.
A reportagem é de Alice de Souza, publicada por Deutsche Welle, 01-08-2025.
Em março de 1645, um grupo de 134 indígenas potiguaras saiu de várias regiões do que hoje é o Nordeste do Brasil para se reunir no aldeamento de Tapesserica, na capitania de Itamaracá. O grupo se juntou para eleger os líderes que iriam negociar seus interesses com a Companhia Holandesa das Índias Ocidentais, no que ficou conhecida como a primeira assembleia indígena registrada no país.
Esse episódio já é conhecido, mas costuma ser uma nota de rodapé na história das guerras luso-holandesas no Brasil. Trezentos e oitenta anos depois, uma nova tradução de um registro desse encontro, cujo estudo foi publicado no jornal acadêmico Transactions of the Royal Historical Society, da Universidade de Cambridge, no Reino Unido, muda a importância desse evento.
A nova tradução revela e reconhece uma carta escrita pelos próprios potiguaras ao governo do Brasil Holandês – e evidencia, a partir desse achado, a agenda dos indígenas da costa brasileira durante a ocupação holandesa no território brasileiro, que durou de 1630 a 1654.
O texto original nunca foi encontrado, mas uma versão dele escrita em neerlandês antigo sobreviveu nas atas do Diário Oficial do Governo Holandês, com data de 11 de abril de 1645. A nova tradução permite conhecer detalhes da perspectiva indígena sobre as guerras entre holandeses e portugueses e mostra o papel dos potiguaras como agentes históricos.
O documento aponta que os potiguara foram fundamentais para moldar o sistema de governança estabelecido pelos europeus no período, mantendo uma estrutura de poder descentralizada e escolhendo seus representantes.
"Essa reunião demonstra a capacidade dos potiguaras de negociar com seus aliados e de se adaptar, transformar e sobreviver em tempos de guerra e devastação", afirma o estudo, escrito pelo professor do Departamento de História da Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE) Bruno Miranda.
A autoria potiguara do documento foi reconhecida a partir de elementos como o uso da primeira pessoa do plural, com o uso de expressões como "nossa nação", "nós solicitamos" e "nossa reunião e deliberações do conselho", ao se referir às exigências dos indígenas diante dos europeus. Além do uso de pronomes pessoais e possessivos, a carta tinha como signatários alguns potiguaras, inclusive um escritor indígena, Clement da Silva.
"A carta se refere a eles, os brasileiros, os indígenas. Mas em dado momento a gente tem uma mudança na linguagem e começam a aparecer coisas como 'nós pedimos'. E esse é um indicativo de que é uma peça escrita pelos indígenas", afirma Miranda, responsável pela tradução.
A primeira tradução do documento está no livro Fastos Pernambucanos, de 1913, escrita por Pedro Souto Maior, mas ela omite os sujeitos, o que impedia o reconhecimento dessa autoria. Para Miranda, essa nova tradução traz mais elementos para compreender o papel político dos indígenas da costa brasileira durante o período colonial.
"Muitas pessoas que estudaram esse documento colocavam o evento como fato curioso. Mas o que a gente mostra é que os indígenas tinham um peso de negociação, eles tinham uma capacidade de articulação. Eles eram sujeitos históricos, com capacidade de se articular mesmo em momentos de desigualdade", ressalta Miranda.
A assembleia de Tapesserica aconteceu porque os potiguaras reivindicavam um autogoverno e melhoria nas condições de vida, mas também porque, naquele momento, havia um desacordo crescente entre os indígenas e os então aliados holandeses. Os indígenas estavam insatisfeitos com as tentativas holandesas de convertê-los ao calvinismo e pelo fato de os europeus terem nomeado um diretor para supervisionar os aldeamentos (núcleos populacionais estabelecidos pelos europeus para fins de catequização).
Naquela época, quem estava nos aldeamentos acabava virando mão de obra dos europeus, e havia denúncias de escravidão, abusos e exploração. A representação traduzida revela que em novembro de 1644 os holandeses já haviam entregue aos potiguara uma carta enfatizando o seu direito à liberdade e ao autogoverno. Estes e outros direitos estavam sendo cobrados pelos indígenas no pós-assembleia de Tapesserica.
Os potiguaras também exigiam que os holandeses libertassem todos os povos mantidos como escravos e enfatizavam que os indígenas não deveriam ser explorados ou oprimidos. Eles queriam ainda a fusão de alguns aldeamentos e, num cenário de negociação, solicitavam mais ministros para suas igrejas e professores, além da criação de câmaras (conselhos municipais).
"Mais pastores significava que você teria mais interlocutores com o governo. Não era uma questão de submissão", pontua Miranda. Na época, os holandeses lidavam com muitos problemas financeiros e sofriam para manter soldados no Brasil. Era um momento estratégico de negociação, que levou os potiguaras a terem todos os seus pedidos aceitos pelo governo.
As assembleias indígenas como a que levou os potiguaras a obterem direitos durante o Brasil Holandês atravessaram os séculos como espaço de resistência e fortalecimento da luta indígena no Brasil. Elas acontecem até hoje tanto a nível local, para deliberações específicas de um povo ou associação, como no âmbito nacional, por meio de representações como a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib).
Esses são espaços que têm um papel de consolidação e fortalecimento de estratégias coletivas de luta, além de serem momentos de tomada de decisão. São também onde muitas vezes se escolhem as lideranças de um movimento ou organização indígena.
"As assembleias, para a gente, representam esse espaço de coletividade, de protagonismo indígena e de tomada de decisões importantes em diversos assuntos, seja da própria política indigenista do Estado brasileiro, seja da própria política indígena internamente, no território", explica Kleber Karipuna, coordenador executivo da Apib.
Há assembleias que ocorrem de maneira regular, como a maior delas no Brasil, o Acampamento Terra Livre (ATL), realizado há 21 anos todo mês de abril, e cuja última edição reuniu representantes de 240 povos.
Há outras, porém, que são extraordinárias e convocadas diante de episódios específicos. O projeto de exploração de petróleo na Foz do Rio Amazonas, por exemplo, levou 60 lideranças indígenas do Oiapoque, dos povos Karipuna, Galibi Marworno, Palikur e Galibi Kali'na, a se reunirem em maio. Do encontro, saiu uma carta enviada ao governo federal solicitando a interrupção imediata do licenciamento do bloco de exploração FZA-M-59.
Nos anos recentes, também existe um movimento em ascensão de criação de assembleias da juventude e das mulheres indígenas, explica Karipuna. "A gente avançou muito nos últimos 20 anos. Há muitos parceiros da filantropia, da cooperação internacional que se colocam no apoio das nossas reuniões. No contexto mais local, tem muitas movimentação dos próprios indígenas, que autofinanciam suas assembleias."
De acordo com Miranda, o documento traduzido por ele foi escrito em neerlandês antigo porque a intenção era fazê-lo chegar ao governo. Naquela época, muitos potiguaras que viviam nos aldeamentos eram alfabetizados e se dirigiam às instituições europeias por meio da escrita.
Até hoje, a escrita é o instrumento para fazer chegar às autoridades às deliberações coletivas resultadas das assembleias indígenas. "A escrita é um instrumento muito importante de negociação política que é aprendido e mobilizado ao longo da história", explica Miranda.
O problema é que muitas vezes essa autoria indígena nas cartas é negada, inviabilizando a compreensão do movimento político dos indígenas por meio desses documentos.
"Existe uma mitologia de que o índigena não escreve, mas temos exemplos de documentações que mostram a participação dessas pessoas nos principais eventos políticos do país ao longo de quase toda a história. Só que é um material negligenciado", explica Rafael Xucuru-Kariri, professor visitante da Universidade Federal da Bahia (UFBA) e fellow no King's College de Londres.
Há 15 anos, a pesquisadora e professora da UFBA Suzane Costa tenta vencer esse desafio, em um projeto do qual Xucuru-Kariri faz parte. Eles reúnem, traduzem e organizam cartas escritas por indígenas em três períodos históricos brasileiros: de 1630 a 1680, de 1888 a 1930 e de 1999 a 2020. A coletânea, no site Cartas dos Povos Indígenas ao Brasil, já reúne mais de 2 mil cartas escritas por 200 autores diferentes, a maioria delas feita de maneira coletiva após uma assembleia ou encontro.
"São documentos que mostram que os indígenas vêm tentando uma conversa com o Brasil. Eles tentam falar para as autoridades ou aos próprios brasileiros, querendo uma intermediação para dizer quem são e para que eles continuem existindo como indígenas", diz Costa. As pautas mais recorrentes versam sobre morte e terra. "Eles falam sobre práticas de autodemarcação da terra, mas também sobre como não morrer, como continuar existindo."
Xucuru-Kariri lembra que os caciques costumam ser um arquivo pessoal dessas cartas, mas com a disseminação da internet elas passaram a chegar a outros espaços. "A gente começou a circular essas cartas, enviar para o Estado, a mídia, governantes. A atual ministra [dos Povos Indígenas], Sônia Guajajara, fez parte da campanha dela com cartas", lembra.
Segundo ele, as cartas são, além de uma forma de comunicação oficial, um instrumento de sociabilidade dos indígenas com o Brasil. "É a tentativa de criar um espaço público de diálogo respeitoso: 'Aqui eu vou entender um pouco a sua lógica [do Estado brasileiro], mas eu também vou colocar a minha e a gente vai tentar criar um resultado.'"
A maioria das principais conquistas dos povos indígenas nas últimas quatros décadas no país advém das assembleias, como oas próprio reconhecimento da plena cidadania na Constituição de 1988 e a orientação coletiva para inserção nos espaços de política institucional, como as casas legislativas e os cargos no Poder Executivo.
"As assembleias e encontros servem muito também para avaliar a conjuntura política e traçar uma linha de atuação. O movimento indígena foi um dos principais, talvez um dos poucos, que no governo anterior foi para a rua, fez mobilização de enfrentamento", lembra Karipuna. Em 2017, o ATL levou à criação de uma carta política para direcionar apoio a candidaturas indígenas.
"Isso foi importante porque a gente vê hoje um cenário de ocupação desses espaços de tomada de decisão. E foi uma decisão coletiva, de um acampamento, que nós precisaríamos tirar [dali] um direcionamento político para essa ocupação", acrescenta Karipuna.
Além das assembleias, as conferências também são consideradas parte importante do avanço nas conquistas indígenas. A Política Nacional de Atenção à Saúde dos Povos Indígenas (PNASPI), de 2002, bem como a criação da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), em 2010, são fruto desse processo. Da mesma forma, fazem parte de articulações iniciadas em conferência ou assembleias a Política Nacional de Educação Escolar Indígena, de 2009, e o Ministério dos Povos Indígenas, criado pelo atual governo federal.
Para as eleições de 2026, por exemplo, já há mobilizações no sentido de ampliar essa participação dos indígenas na política institucional. "Vamos fazer o enfrentamento e estratégia de tentar avançar com as políticas para os povos indígenas e da proteção e garantia dos nossos direitos", conclui o coordenador executivo da Apib.