17 Junho 2025
Em evento no MP, renomada urbanista afirma que reconstrução pós-enchente é oportunidade de se pensar diferente e fala em utopia.
A informação é de Tiago Medina publicada por Matinal, 16-06-2025.
Uma das principais referências no campo do planejamento urbano no Brasil, a arquiteta Raquel Rolnik alertou, durante evento promovido pelo Ministério Público na última sexta-feira, que o modelo de produção de cidades no país foi transformado em mercadoria política e eleitoral. Durante sua palestra, ela afirmou que o planejamento segue não atendendo a toda a população de centros urbanos e defendeu uma reformulação no modo de se produzir as cidades, retomando a conexão com a natureza em meio à crise climática. “É isso ou acabou”, advertiu.
Professora da USP, ex-relatora especial do Conselho de Direitos Humanos da ONU para o Direito à Moradia Adequada e pesquisadora, Rolnik palestrou no Seminário Direito à Cidade e Sustentabilidade Urbano-Ambiental, do MP. Durante sua fala, ela chamou a atenção para a contaminação política na forma de se pensar as cidades, envolvendo extremos econômicos. “A produção de cidade, num pedaço enorme de cidade, virou a grande mercadoria política do nosso sistema político e eleitoral”, afirmou. “E isso tem um nome: modo centrão de governar”.
Se, para a parte mais pobre da cidade – que, segundo ela, vive de modo ambíguo quanto ao pertencimento à cidade no que tange a acessos e direitos –, a exclusão é a regra, para o mercado imobiliário a relação se estabelece por meio de favorecimentos em incorporações. “A base do centrão é deixar a maior parte da população excluída, sem direitos, para depois negociar. Por escola, pavimentação”, exemplificou. “Quem não tem dinheiro, precisa receber dádiva, e dádivas são favores, que são pagos indefinidamente. Isso vale também para o setor empresarial”, afirmou.
Antes da palestra, Rolnik visitou cidades afetadas pela enchente no Vale do Taquari e Canoas. Destacou que a reconstrução não deverá ser igual entre lugares diferentes e deve ouvir as populações. Desta forma, é uma política que poderá ser feita de maneira diferente ao que vinha ocorrendo: “Um desastre como esse, em várias escalas e dimensões, é uma oportunidade para pensar criticamente coisas que estão estabelecidas. Tanto conceitos, como métodos de fazer cidades”.
No entanto, em meio ao cenário de reconstruções, a pesquisadora alertou sobre as situações que a condição de “áreas de risco” podem causar, em especial para populações já historicamente vulneráveis. “No nosso modelo de cidade, falar em área de risco, significa promover processo de despossessão, e isso não é algo banal.” Também fez a relação entre a ideia atual de risco com o de “higiene”, utilizado no início do século passado em nome de modernizações para as cidades. “O risco oferece, na economia política da cidade, a justificativa para a remoção”, explicou. Para ela, então, o mecanismo pode ser um operador do racismo ambiental.
Raquel Rolnik criticou o modelo brasileiro hegemônico de produção de cidades, “colonizado” e importado da Europa, além de ser exemplo de negação à natureza, segundo ela. “O princípio de ocupação urbana é extrativista, que coloca a natureza para nos servir”, declarou. “Numa lógica que, a melhor forma de ocupação na cidade – e é isso que está orientando hoje os planos diretores – é o uso mais rentável para o capital investido neste lugar”, complementou.
Para ela, o modelo não apenas é falho, como danoso: “É exatamente este modelo que foi o responsável pelo aquecimento global, que está sendo um dos responsáveis pela concentração de chuvas no Rio Grande do Sul, que está nos matando. É um modelo tóxico, que tem uma incidência no clima e não tem futuro”, disse, antes de provocar: “O que nós vamos fazer? Mais do mesmo? Mesma pavimentação, mesmo modelo, mesmos prédios, só que fora das áreas de risco?”, questionou a pesquisadora, defendendo uma forma mais coletiva de se projetar o futuro, a partir dos locais. Sua fala encontra eco nas críticas feitas pela diretora da Anistia Internacional Brasil, Jurema Werneck, em relação à reconstrução do estado promovida pelo poder público. “Chega de pensamento único”, cobrou Rolnik. “É uma utopia, mas se a gente não construir e ficar vislumbrando esta utopia, o que nos resta?”
O Seminário Direito à Cidade e Sustentabilidade Urbano-Ambiental reuniu também pesquisadores de UFRGS, Unisinos, UFSM, FMP e Cebrap para palestras e debates ao longo da sexta-feira. A íntegra do evento está disponível no YouTube.