04 Junho 2025
A ideologia empresarial é um anestésico poderoso que embrulha a crueldade em promessas de eficiência e em análises de custo-benefício. O Papa Francisco nos exorta a acordar e olhar para a fé, não para os mercados, como guia em um mundo onde o clamor dos pobres se torna mais alto a cada dia.
O artigo é de Richard A. Levins, publicado por America, 02-06-2025.
Richard A. Levins é professor emérito de economia aplicada na Universidade de Minnesota, em St. Paul. Seu livro mais recente é God or Greed: The Market as Culture (Itasca Books).
Elon Musk deixou seu cargo como chefe do Departamento Federal de Eficiência Governamental, declarando divergências com o presidente Trump sobre as prioridades orçamentárias federais delineadas no projeto conhecido como “Big, Beautiful Bill”. Mas o DOGE já colocou em marcha cortes massivos nos gastos do governo. Talvez sem surpresa, os programas de ajuda aos pobres, tanto dentro quanto fora do país, foram os mais duramente atingidos.
A letra E em DOGE deveria significar “eficiência”, mas nem todos veem dessa forma. Por exemplo, quando o governo Trump demitiu toda a equipe do Programa de Assistência de Energia para Famílias de Baixa Renda, o deputado Jared Golden, democrata do Maine, perguntou: “Que ‘eficiência’ é alcançada ao demitir todas as pessoas do Maine cujo trabalho é ajudar os moradores do estado a pagar pelo óleo de aquecimento quando faz frio?”
É uma boa pergunta. Eliminar uma função do governo não a torna mais eficiente. O DOGE não finge estar alimentando mais pessoas nem buscando formas mais eficientes de atender os mais necessitados. Em vez disso, Musk empunhou uma motosserra no palco e se gabou de jogar programas governamentais “na trituradora de madeira”. Essas palhaçadas nada têm a ver com “fazer mais com menos” ou qualquer outra frase atraente comumente associada à eficiência. Trata-se, na verdade, do uso da linguagem da eficiência para impor uma mudança radical na forma como vemos o ato de ajudar os outros.
Os cortes do DOGE nos programas para os pobres, tanto nacionais quanto internacionais, são justificados com outro tipo de linguagem. Em relação à eliminação virtual da Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional (USAID), o secretário de Estado Marco Rubio declarou: “Estamos reorientando nossos programas de assistência externa para que estejam diretamente alinhados com o que é melhor para os Estados Unidos e nossos cidadãos”. Pouco depois, ele usaria linguagem semelhante para justificar a resposta quase inexistente do governo dos EUA ao terremoto catastrófico em Mianmar: “Faremos o melhor que pudermos, mas também temos outras necessidades com as quais precisamos equilibrar isso.” Apelar aos interesses nacionais, além de ser espantosamente insensível neste caso, também não tem nada a ver com eficiência.
O rugido ameaçador da motosserra do DOGE continuará conosco por algum tempo. No final de abril, o New York Times relatou que a nova proposta orçamentária de Trump “desfaria ainda mais a rede de proteção social do país” e que “o orçamento preliminar corta muitos programas federais de combate à pobreza”. Por exemplo, o Head Start — um dos programas na mira — não conseguiria mais cumprir sua função de oferecer educação infantil e cuidados para as crianças mais pobres do país.
Passei alguns dos meus melhores anos na academia sob a mentoria de colegas que ajudaram a orientar as políticas alimentares durante os governos Kennedy e Johnson. É verdade que a política e a Guerra Fria tiveram seus papéis nos programas alimentares, mas quando meus colegas daquela época falavam sobre o Food for Peace e o programa de cupons de alimentos, faziam isso com uma preocupação genuína pelas pessoas, tanto aqui quanto no exterior. Os grupos de agricultores proclamavam com orgulho que estavam “alimentando o mundo”.
Caímos muito desde a era áurea das políticas alimentares progressistas. Olhando para trás, as sementes da insensibilidade atual foram plantadas durante o governo Reagan. O governo começou a ser visto como um problema, não como solução — algo que deveria ser reduzido ao mínimo possível. Em outras palavras, algo que deveria ser “administrado como uma empresa”.
No final de março, um funcionário do trabalho nomeado por Trump anunciou que os esforços financiados pelos EUA para combater abusos trabalhistas no mundo inteiro seriam encerrados imediatamente, por causa de uma “falta de alinhamento com as prioridades da agência e com o interesse nacional.” A princípio, achei difícil compreender essa declaração dentro do contexto de um governo preocupado com o bem-estar de todos. Mas continuei voltando àquela frase: “administrado como uma empresa”. Tanto Trump quanto Musk passaram seus anos de formação no setor privado, não no serviço público. Eles certamente conhecem a decisão de 1919 da Suprema Corte de Michigan no caso Dodge vs. Ford Motor Co.: “Uma empresa é organizada e administrada principalmente com o objetivo de gerar lucros para os acionistas”. Quando penso em um governo administrado como uma empresa, ignorar abusos trabalhistas faz total sentido.
Desde o New Deal, os Estados Unidos têm uma economia mista, com funções privadas e públicas. Como mencionado, empresas privadas cultivam, processam e vendem alimentos para quem pode pagar os preços de mercado, enquanto aqueles que não podem são atendidos por programas públicos de assistência alimentar. O governo oferece uma rede de proteção aos pobres e proteção ambiental quando as empresas privadas não podem ou não querem fazê-lo. Mas, ao jogar programas governamentais na trituradora, o DOGE transforma o que resta do governo não apenas em algo administrado como uma empresa — na prática, transforma-o em uma empresa, que beneficia seus acionistas bilionários às custas dos pobres aqui e no exterior.
O que podemos fazer quando os que não são considerados acionistas da “America First Inc.” são deixados para sofrer? Durante a crise da Covid-19, o Papa Francisco disse:
“É isso que precisamos fazer: voltar atrás, voltar a Deus e ao nosso próximo, não mais isolados e anestesiados diante do clamor dos pobres e da devastação do nosso planeta... Precisamos estar unidos para enfrentar todas as pandemias que se espalham: a do vírus, mas também as da fome, da guerra, do desprezo pela vida e da indiferença com os outros”.
Que diagnóstico perspicaz e poderoso da nossa condição nacional. Permitimos que nos tornássemos “anestesiados diante do clamor dos pobres e da devastação do nosso planeta”.
A ideologia empresarial é um anestésico poderoso — que embrulha a crueldade em promessas de eficiência e em análises de custo-benefício. O Papa Francisco nos exorta a acordar e olhar para a fé, não para os mercados, como guia em um mundo onde o clamor dos pobres se torna mais alto a cada dia.
Em contraste, o DOGE representa o lado verdadeiramente sombrio do movimento America First. Já passou da hora de repensarmos o “E” de DOGE e começarmos a chamar esse novo escritório pelo que ele realmente é: o Departamento de Eliminação Governamental.