17 Mai 2025
De forma sutil e lacônica, filme de Marianna Brennand desenha um quadro social terrível: meninas mal saídas da infância para o abuso sexual, dentro e fora de casa. Ação se passa na Ilha de Marajó, entre o casebre apertado e a imensidão da mata e do rio.
O comentário é de José Geraldo Couto, crítico de cinema em comentário publicado por Blog do Cinema do IMS, e reproduzido por Outras Palavras, 15-05-2025.
Chegou a hora de ver Manas, de Marianna Brennand, que chega aos cinemas nesta quinta-feira depois de conquistar inúmeros prêmios internacionais. Poucos filmes serão tão contundentes e oportunos.
A história se passa toda na ilha de Marajó e está centrada na figura da menina Marcielle (Jamilli Correa), de 13 anos, que vive com seus três irmãos e os pais num casebre de madeira à beira de um grande rio. O pai, Marcílio (Rômulo Braga), caça e pesca para o sustento da família. A mãe, Danielle (Fátima Macedo), em nova gravidez avançada, colhe o açaí e o transforma em polpa, com a ajuda das filhas. O filho maior ajuda o pai na pesca e sai com ele para caçar pacas.
As primeiras cenas mostram o dia a dia modesto dessa família ribeirinha, contrastando o aperto do espaço doméstico com a imensidão do rio e da mata. Esse jogo de proporções é realçado pelas imagens parcialmente obstruídas nas tomadas internas: vemos pedaços dos corpos dos personagens, entre paredes, redes, os parcos móveis, objetos variados. O primeiro plano do filme, belíssimo, já anuncia isso: no recorte da janela, como numa tela dentro da tela, entrevemos, de dentro para fora, Marcielle sentada no deque da casa que avança para o rio.
A todos os lugares se vai de barco: à escola, à venda, à igreja (evangélica, claro), às casas dos vizinhos, à mata e, sobretudo, a um local que ganhará uma importância crescente e opressiva ao longo do filme: a balsa que transita entre a localidade e os grandes centros. É na balsa que se pode vender os produtos locais (peixes, açaí, farinha) e é na balsa, logo ficamos sabendo, que se prostituem as meninas da região. “Filha minha não vai à balsa”, vocifera Marcílio.
Tudo é narrado de modo muito sutil e lacônico, mas aos poucos se desenha um quadro social e moral tão claro quanto terrível, que empurra essas meninas mal saídas da infância para o abuso sexual, seja na balsa, seja em casa.
No barracão precário da escola, onde compartilham a mesma sala crianças de séries diferentes, vemos que os livros de ciências estão grampeados nas páginas que tratam dos órgãos reprodutores, de maneira a impedir – certamente com pretextos moralistas e religiosos – que as crianças conheçam seus próprios corpos e saibam como protegê-los. O detalhe é revelador da conspiração do silêncio entre a escola, a igreja e as famílias para manter inscientes, indefesas e vulneráveis as meninas da área.
No centro disso tudo está Marcielle, que ainda é uma criança, mas começa a querer ser mulher, tendo como modelo a irmã mais velha, Claudia, que há anos partiu de casa para a cidade grande. Ela guarda uma foto de Claudia e erige para a irmã um singelo altar escondido na mata.
A tensão aumenta a partir de três fatos quase simultâneos: a primeira ida de Marcielle à balsa; sua tentativa frustrada de tirar uma carteira de identidade usando o nome e a idade de Claudia; e a ordem do pai para que ela o acompanhe na caça à paca, em lugar do irmão mais velho. Não demora para que a “caça à paca” se mostre análoga à “ida à balsa”, só que com um peso psicológico e moral muito mais insuportável. Com a ironia adicional de que “paca” é a palavra usada na região para se referir à vagina.
Não convém expor aqui os desdobramentos dramáticos dessa situação, mas apenas chamar a atenção para a sutileza com que, por meio dos olhares e pequenos gestos, o filme traça as relações silenciosas entre as personagens, sobretudo entre Marcielle e a mãe e, depois, entre Marcielle e a irmã mais nova, Carol (Emily Pantoja). O título Manas revelará toda a sua força no final.
A admirável organicidade da narrativa, a relação quase palpável dos personagens entre si e com a paisagem, tudo isso só é possível graças a um roteiro enxuto, ao elenco afinado, a uma impecável direção de atores e, principalmente, à extraordinária atuação da protagonista Jamilli Correa, num papel dificílimo, que transita entre o lúdico e o trágico, fazendo pensar na adolescente Mouchette do filme clássico de Robert Bresson.
Um pequeno detalhe pode servir para revelar as conexões mais amplas desse pungente drama doméstico. Numa imagem fugaz, vemos Marcielle desenhando um boto, o que remete imediatamente à lenda amazônica do cetáceo que assume a forma humana em certas noites de lua cheia para seduzir e engravidar moças solteiras. Lembra também, por extensão, o filme Ele, o boto (1987), de Walter Lima Jr., que abordava o tema com um viés mítico-poético.
Tendo isso em mente, ganha um sentido adicional a presença luminosa da atriz Dira Paes. No filme de Walter Lima Jr., ainda adolescente, ela era uma das irmãs seduzidas pelo boto. Em Manas ela é a policial-psicóloga-anjo da guarda que tenta proteger Marcielle. Há nisso uma justiça poética, o fecho de um ciclo, mas há mais: do plano da fantasia de Ele, o boto passamos para a realidade brutal do Marajó atual, em que o boto assume feições muito mais medonhas.