19 Mai 2025
De forma sutil e lacônica, filme de Marianna Brennand desenha um quadro social terrível: meninas mal saídas da infância para o abuso sexual, dentro e fora de casa. Ação se passa na Ilha de Marajó, entre o casebre apertado e a imensidão da mata e do rio.
O comentário é de José Geraldo Couto, crítico de cinema em comentário publicado por Blog do Cinema do IMS, e reproduzido por Outras Palavras, 15-05-2025.
Eis o comentário.
Chegou a hora de ver Manas, de Marianna Brennand, que chega aos cinemas nesta quinta-feira depois de conquistar inúmeros prêmios internacionais. Poucos filmes serão tão contundentes e oportunos.
A história se passa toda na ilha de Marajó e está centrada na figura da menina Marcielle (Jamilli Correa), de 13 anos, que vive com seus três irmãos e os pais num casebre de madeira à beira de um grande rio. O pai, Marcílio (Rômulo Braga), caça e pesca para o sustento da família. A mãe, Danielle (Fátima Macedo), em nova gravidez avançada, colhe o açaí e o transforma em polpa, com a ajuda das filhas. O filho maior ajuda o pai na pesca e sai com ele para caçar pacas.
As primeiras cenas mostram o dia a dia modesto dessa família ribeirinha, contrastando o aperto do espaço doméstico com a imensidão do rio e da mata. Esse jogo de proporções é realçado pelas imagens parcialmente obstruídas nas tomadas internas: vemos pedaços dos corpos dos personagens, entre paredes, redes, os parcos móveis, objetos variados. O primeiro plano do filme, belíssimo, já anuncia isso: no recorte da janela, como numa tela dentro da tela, entrevemos, de dentro para fora, Marcielle sentada no deque da casa que avança para o rio.
A todos os lugares se vai de barco: à escola, à venda, à igreja (evangélica, claro), às casas dos vizinhos, à mata e, sobretudo, a um local que ganhará uma importância crescente e opressiva ao longo do filme: a balsa que transita entre a localidade e os grandes centros. É na balsa que se pode vender os produtos locais (peixes, açaí, farinha) e é na balsa, logo ficamos sabendo, que se prostituem as meninas da região. “Filha minha não vai à balsa”, vocifera Marcílio.
Tudo é narrado de modo muito sutil e lacônico, mas aos poucos se desenha um quadro social e moral tão claro quanto terrível, que empurra essas meninas mal saídas da infância para o abuso sexual, seja na balsa, seja em casa.
Conspiração do silêncio
No barracão precário da escola, onde compartilham a mesma sala crianças de séries diferentes, vemos que os livros de ciências estão grampeados nas páginas que tratam dos órgãos reprodutores, de maneira a impedir – certamente com pretextos moralistas e religiosos – que as crianças conheçam seus próprios corpos e saibam como protegê-los. O detalhe é revelador da conspiração do silêncio entre a escola, a igreja e as famílias para manter inscientes, indefesas e vulneráveis as meninas da área.
No centro disso tudo está Marcielle, que ainda é uma criança, mas começa a querer ser mulher, tendo como modelo a irmã mais velha, Claudia, que há anos partiu de casa para a cidade grande. Ela guarda uma foto de Claudia e erige para a irmã um singelo altar escondido na mata.
A tensão aumenta a partir de três fatos quase simultâneos: a primeira ida de Marcielle à balsa; sua tentativa frustrada de tirar uma carteira de identidade usando o nome e a idade de Claudia; e a ordem do pai para que ela o acompanhe na caça à paca, em lugar do irmão mais velho. Não demora para que a “caça à paca” se mostre análoga à “ida à balsa”, só que com um peso psicológico e moral muito mais insuportável. Com a ironia adicional de que “paca” é a palavra usada na região para se referir à vagina.
Não convém expor aqui os desdobramentos dramáticos dessa situação, mas apenas chamar a atenção para a sutileza com que, por meio dos olhares e pequenos gestos, o filme traça as relações silenciosas entre as personagens, sobretudo entre Marcielle e a mãe e, depois, entre Marcielle e a irmã mais nova, Carol (Emily Pantoja). O título Manas revelará toda a sua força no final.
A admirável organicidade da narrativa, a relação quase palpável dos personagens entre si e com a paisagem, tudo isso só é possível graças a um roteiro enxuto, ao elenco afinado, a uma impecável direção de atores e, principalmente, à extraordinária atuação da protagonista Jamilli Correa, num papel dificílimo, que transita entre o lúdico e o trágico, fazendo pensar na adolescente Mouchette do filme clássico de Robert Bresson.
A volta do boto
Um pequeno detalhe pode servir para revelar as conexões mais amplas desse pungente drama doméstico. Numa imagem fugaz, vemos Marcielle desenhando um boto, o que remete imediatamente à lenda amazônica do cetáceo que assume a forma humana em certas noites de lua cheia para seduzir e engravidar moças solteiras. Lembra também, por extensão, o filme Ele, o boto (1987), de Walter Lima Jr., que abordava o tema com um viés mítico-poético.
Tendo isso em mente, ganha um sentido adicional a presença luminosa da atriz Dira Paes. No filme de Walter Lima Jr., ainda adolescente, ela era uma das irmãs seduzidas pelo boto. Em Manas ela é a policial-psicóloga-anjo da guarda que tenta proteger Marcielle. Há nisso uma justiça poética, o fecho de um ciclo, mas há mais: do plano da fantasia de Ele, o boto passamos para a realidade brutal do Marajó atual, em que o boto assume feições muito mais medonhas.
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