A proposta de revalorizar o estudo dos Clássicos não é uma volta nostálgica ao passado, mas um movimento em direção à compreensão profunda do presente, tendo a tradição como espelho e desafio. Estudar Rousseau, Kant, Foucault, Arendt, Freire ou Dewey não é um luxo acadêmico, mas uma necessidade formativa. Como bem define Italo Calvino, o clássico é aquele livro que nunca termina de dizer aquilo que tem a dizer.
No coração de uma sala de aula silenciosa, pulsa o destino de uma nação. A educação brasileira, esse organismo tão vital quanto frágil, respira com dificuldade, enredada em entraves que vão muito além da falta de estrutura ou recursos. A crise não se dá apenas nos muros descascados ou nas bibliotecas vazias – ela reside, sobretudo, na superficialidade de suas perguntas e na fragilidade de suas respostas.
O artigo é de Marcelo Zanotti, historiador, mestrando em Educação pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos – Unisinos e membro da equipe do Instituto Humanitas Unisinos – IHU.
Há um sintoma recorrente que se esconde por trás de gráficos e estatísticas: a ausência de densidade teórica que embasa boa parte das pesquisas educacionais. Um ensaio de 2020, que mergulha fundo no estado atual da investigação educacional no Brasil, revela como o campo parece ter se esquecido da pergunta essencial – o que valida o conhecimento que produzimos? Por que investigamos? Para quem e com quais fundamentos? Ao perder de vista essas questões, a educação se vê deslocada do eixo da crítica e do pensamento, e se entrega, muitas vezes, à lógica imediatista do mercado e das políticas públicas voláteis.
No ensaio Filosofia da educação e pesquisa educacional: fragilidade teórica na investigação educacional, os autores Cláudio Almir Dalbosco e Eldon Henrique Mühl lançam um olhar agudo sobre as bases frágeis que sustentam a pesquisa educacional no Brasil. Publicado na revista Educação e Filosofia, o texto apresenta um diagnóstico incômodo, mas necessário: a investigação educacional brasileira sofre de uma evidente debilidade teórica, provocada em grande parte pelo abandono do diálogo crítico com a tradição filosófica e pedagógica. A contribuição dos autores é vital, pois escancara não apenas a falta de densidade conceitual nas pesquisas, mas também a urgência de se recolocar em pauta a questão sobre a validade do conhecimento educacional produzido. Trata-se, portanto, de um convite à retomada da pergunta fundante da educação: para quê e por quê educamos? E, além disso, o que justifica o conhecimento que produzimos sobre o ato de educar?
Ao analisar a produção acadêmica do campo, Dalbosco e Mühl apontam para um fenômeno alarmante: muitas pesquisas se limitam ao plano descritivo, negligenciando o aprofundamento epistemológico necessário para que se transformem em instrumentos efetivos de compreensão e intervenção social. O problema não está, portanto, na ausência de produção científica, mas na forma como essa produção tem se estruturado – orientada por demandas pragmáticas, políticas e institucionais, em detrimento da reflexão conceitual mais densa. A pesquisa se faz, muitas vezes, refém de modismos, agendas externas e da superficialidade metodológica. E essa superficialidade, embora camuflada sob o véu de uma produtividade quantitativa, se revela na ausência de fundamentos sólidos, na confusão conceitual e na dificuldade de fazer perguntas realmente significativas.
A crítica dos autores ganha ainda mais força quando articulam quatro fatores que, segundo eles, alimentam essa fragilidade: o Filosófico, o Epistemológico, o Político e o Pedagógico. A dimensão filosófica diz respeito à crise da razão moderna, e como essa crise foi mal interpretada – confundindo-se a necessária superação do dogmatismo com uma completa renúncia à ideia de fundamentação. Nessa confusão, muitos trabalhos educativos acabaram rejeitando não apenas os fundamentos metafísicos, mas qualquer esforço de pensar criticamente os próprios alicerces teóricos. Já no plano epistemológico, a crítica se volta ao abandono da pergunta pela validade do conhecimento produzido, o que leva à instrumentalização da ciência e ao esvaziamento de seu potencial crítico. É como se a educação tivesse trocado o pensamento pelo protocolo, a reflexão pela técnica.
No campo político, os autores denunciam a submissão da pesquisa educacional às agendas governamentais e interesses econômicos, que instrumentalizam o saber pedagógico ao invés de fortalecê-lo. A investigação se torna cada vez mais uma resposta a editais e metas, e cada vez menos uma busca genuína por compreender a complexidade do ato educativo. Nesse ponto, a reflexão toca uma ferida aberta: o papel subalterno que a educação tem ocupado dentro da hierarquia do conhecimento. Quando a pedagogia é vista como “uma geleia geral”, nas palavras citadas por Bernadete Gatti, isso revela não apenas um preconceito externo, mas uma falência interna de autorreconhecimento epistemológico. E por fim, na dimensão pedagógica, há uma cisão entre teoria e prática que impede a educação de pensar criticamente a si mesma. Ao se reduzir à experiência empírica, a educação perde sua capacidade de desnaturalizar o cotidiano, de problematizar os sentidos e de reinventar os caminhos.
Nesse cenário, os autores sugerem um resgate do papel da Filosofia da Educação, não como um anexo teórico distante da realidade escolar, mas como instância essencial à crítica, à formação e à reinvenção do próprio campo educacional. A Filosofia, ao provocar o retorno às grandes perguntas – quem somos? o que é educar? o que é conhecer? –, atua como antídoto contra o dogmatismo que tende a se infiltrar nos métodos empíricos quando desprovidos de problematização teórica. E, sobretudo, como um exercício de liberdade. A Filosofia da Educação, nessa perspectiva, é menos uma disciplina e mais uma atitude: uma disposição a duvidar, a desconfiar das verdades fáceis, a interrogar os consensos estabelecidos. Ela nos lembra que a educação não é neutra, que ensinar é sempre um ato político, e que nenhuma pedagogia se sustenta sem uma ética do cuidado, da escuta e do compromisso com o outro.
A proposta de revalorizar o estudo dos Clássicos não é uma volta nostálgica ao passado, mas um movimento em direção à compreensão profunda do presente, tendo a tradição como espelho e desafio. Estudar Rousseau, Kant, Foucault, Arendt, Freire ou Dewey não é um luxo acadêmico, mas uma necessidade formativa. Como bem define Italo Calvino, o clássico é aquele livro que nunca termina de dizer aquilo que tem a dizer. Em um tempo de respostas prontas e diagnósticos apressados, mergulhar na complexidade dos grandes pensadores é uma forma de reoxigenar o pensamento, de desautomatizar o olhar e de recuperar a profundidade do ato de educar. Os Clássicos, quando lidos com escuta ativa e abertura crítica, não nos oferecem modelos prontos, mas provocam em nós a inquietação necessária para construir novas perguntas.
A provocação de Dalbosco e Mühl é clara: uma educação que não pergunta por seus próprios fundamentos corre o risco de ser apenas técnica, inócua e submissa. O conhecimento que não se interroga sobre sua própria validade torna-se uma engrenagem de reprodução, não de transformação. Retomar o diálogo com o pensamento clássico é retomar também a ideia de educação como formação de sujeitos capazes de pensar por si e para além de si. Além disso, a noção de racionalidade falibilista, inspirada em Popper, oferece uma alternativa à rigidez dos métodos empíricos e ao relativismo pós-moderno. Trata-se de compreender a pesquisa como um processo aberto, histórico, e sempre sujeito à crítica e à reformulação. Nesse sentido, a pesquisa educacional se torna não apenas produtora de conhecimento, mas também espaço de autoconhecimento e autotransformação.
Mais que uma defesa do rigor acadêmico, o que o texto propõe é um reencontro da educação com sua própria alma. Pensar a educação com densidade não é luxo teórico: é um ato de resistência. Em um tempo marcado pela velocidade, pela superficialidade e pela lógica do desempenho, a lentidão do pensamento crítico, a escuta aos autores que desafiam o tempo, e a disposição para reformular perguntas são, paradoxalmente, os gestos mais urgentes. E aqui reside a beleza e a força da filosofia da educação: sua capacidade de devolver à escola, ao professor, ao pesquisador e ao aluno a dimensão do pensamento como experiência viva, como prática de liberdade e como exercício de formação de si mesmo.
Frente aos desafios atuais – como o empobrecimento da formação docente, a padronização das avaliações, o avanço de políticas educacionais neoliberais e o esvaziamento do sentido das práticas pedagógicas –, repensar a educação a partir de suas bases teóricas e éticas é uma tarefa que se impõe. Não há inovação sem reflexão. E não há transformação sem consciência de si. É preciso, pois, devolver à educação o que lhe é mais precioso: sua capacidade de formar sujeitos críticos, criativos e comprometidos com o mundo. E isso, como nos lembram Dalbosco e Mühl, começa não com respostas, mas com boas perguntas. Perguntas que não buscam apenas soluções imediatas, mas que desejam compreender o que está em jogo quando se ensina, quando se aprende, quando se pesquisa, quando se forma um ser humano.
Em última instância, a proposta de uma filosofia da educação ancorada na crítica da tradição e na reflexão epistemológica é também uma proposta de resistência ao empobrecimento do humano. Num tempo em que a educação corre o risco de se tornar mera instrução, e a escola um apêndice do mercado, pensar filosoficamente é, talvez, nosso último recurso para resgatar a dignidade do ato educativo. Porque educar, afinal, é muito mais do que treinar competências: é formar consciências. É despertar o pensamento. É abrir mundos. E nisso, a filosofia não é apenas útil – ela é essencial.
DALBOSCO, Cláudio Almir; MÜHL, Eldon Henrique. Filosofia da educação e pesquisa educacional: fragilidade teórica na investigação educacional. Educação e Filosofia, Uberlândia, v. 34, n. 70, p. 251-277, jan./abr. 2020. Disponível aqui.