22 Março 2025
Arquitetos acusam prefeitura de descaso, e MP abre inquérito para saber por que município de Porto Alegre não agiu para recuperar material. Ao órgão, executivo disse que perda é de 40%, mas site do Escritório de Licenciamento fala em “perda total”.
A reportagem é de Tiago Medina, publicada por Matinal, 18-03-2025.
Importante parte da memória urbanística de Porto Alegre foi considerada condenada pela prefeitura. Trata-se de milhares de pastas e documentos físicos que compõem o arquivo do Escritório de Licenciamento e que ainda estão armazenados no prédio da antiga Secretaria Municipal de Obras e Viação (Smov), no bairro Praia de Belas. O térreo do edifício foi inundado durante a enchente de maio de 2024, comprometendo parte do acervo de construções de Porto Alegre que datam desde 1970.
Pelo menos desde fevereiro, o site do Escritório de Licenciamento informa que o arquivo físico com 50 anos de documentos foi dado como perdido: “Informamos que, por motivo de força maior, em decorrência dos alagamentos provocados pelas chuvas, em maio de 2024, as instalações do Arquivo foram gravemente atingidas, provocando danos irreversíveis na estrutura do prédio e a perda total do acervo físico”.
A partir de uma denúncia, o Ministério Público pediu explicações à prefeitura em quatro oportunidades no ano passado. Foi ignorado. A promotora Annelise Steigleder, então, abriu o inquérito para investigar o caso em dezembro. No primeiro retorno do município após a abertura do inquérito, foi informado que, após uma vistoria no prédio da Smov, cerca de 40% do acervo havia sido inutilizado pelas águas.
A resposta é diferente à que a prefeitura passa aos profissionais que requerem acesso aos expedientes únicos. A eles, a comunicação dá conta que todo o arquivo não digitalizado foi perdido. A Matinal questionou a Secretaria Municipal de Meio Ambiente, Urbanismo e Sustentabilidade (Smamus), pasta à qual o escritório é vinculado, sobre a discrepância dos dados, mas não houve retorno até o fechamento desta reportagem.
Chamadas de expedientes únicos, as pastas que estão no prédio da Smov armazenam detalhes dos empreendimentos erguidos em Porto Alegre ao longo das últimas cinco décadas. Cada uma delas conta com informações a respeito da tramitação dos documentos das obras, licenças das demandas apresentadas e realizadas desde a fase do projeto até a execução. São os chamados expedientes únicos e servem de base para futuras intervenções nesses locais.
“Esse material é um patrimônio em termos de história da construção da cidade”, definiu Sergio Marques, professor da Faculdade de Arquitetura da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). “As informações de cada pasta formam a vida urbanística daquele endereço”, explicou uma arquiteta que trabalha com licenciamentos e pediu para não ser identificada com receio de represálias.
Segundo ela, a situação atrapalha tanto a clientes quanto a servidores da própria prefeitura, responsáveis pela análise de novos projetos e que não terão mais onde pesquisar. Conforme a profissional, as informações de edificações anteriores à década de 1970 estão preservadas no Arquivo Municipal, no Centro. “O problema é tentar acessar um projeto executado a partir dos anos 1970. Parece que morreu a história da cidade.”
Para acessar as informações contidas nas pastas dos Expedientes Únicos, os profissionais responsáveis por obras ou aprovação de projetos abrem um processo junto ao Escritório de Licenciamento, solicitando uma cópia digital dos arquivos relacionados ao endereço em questão. O conteúdo baliza a confecção dos projetos a serem aprovados, cópias de projetos aprovados necessários para o processo de Habite-se, informações sobre o histórico do imóvel.
Perder essas informações, na opinião do conselheiro do Conselho de Arquitetura e Urbanismo do RS (CAU/RS) José Daniel Simões, é, não apenas um baque sobre o passado, mas também com relação ao futuro. “A perda de uma documentação desta natureza anula a possibilidade de levantamentos prévios de áreas consolidadas da cidade”, observou. “A importância deste arquivo é sobre a possibilidade de ter um planejamento novamente. É conhecimento sobre onde se pisa, e não apenas meramente histórico. São documentos com importância técnica sobre as transformações da cidade.”
Para Simões, além do prejuízo ao planejamento, a falta de acesso aos arquivos irá gerar mais transtornos em obras: “Quando a gente constrói, precisamos saber onde estamos mexendo. Via de regra, o que acontece nas ruas é que vão rompendo e lidando com a situação”.
Ao menos uma parte do acervo chegou a ser salva – e permanece disponível, online. Desde 2020, em razão da pandemia, iniciou-se um processo de digitalização do acervo. À época, estimou-se que o arquivo que ficava guardado na Smov era composto por 240 mil pastas – cada uma correspondente a um imóvel, seja o projeto de um shopping center, seja a construção de uma casa em bairro residencial.
Mas nem tudo foi digitalizado – e não houve resposta da Smamus quanto ao tamanho do volume que está disponível eletronicamente. Além disso, o prédio da Smov foi desativado e chegou a ser colocado em leilão em 2023. A prefeitura ainda quer se desfazer da edificação, mas uma liminar impede sua demolição em razão de seu valor arquitetônico – o local é considerado por pesquisadores um marco do modernismo em Porto Alegre, ainda que tal demanda tenha sido rejeitada pelo Conselho do Patrimônio Histórico Cultural. O embate judicial por ora trava a iniciativa do município, que atrela o leilão do prédio à construção de um conjunto habitacional.
Na opinião de Bruna Tavares, copresidenta do departamento gaúcho do Instituto de Arquitetas do Brasil (IAB-RS), o esvaziamento paulatino do local escancarou o descuido com o arquivo, que seguiu no prédio mesmo com a saída de secretarias e serviços do espaço. “Havia um descaso com o próprio imóvel, no interesse de uma venda deste prédio”, contextualizou. “Mas certamente tudo o que estava dentro dele já era alvo de um sucateamento para justificar a necessidade da venda.”
A situação piorou com a enchente, que afetou o prédio e o quadro elétrico, interrompendo de vez o trabalho de digitalização. As águas também atingiram os arquivos, armazenados nos dois primeiros pavimentos do imóvel. “Na época da enchente, o pessoal da prefeitura estimou que entre 30% e 40% das pastas haviam sido perdidas”, conta a arquiteta que trabalha com licenciamentos. “Até então, apesar de a prefeitura informar que os processos estavam sendo digitalizados, sabíamos que não era um processo constante, mas, sim, conforme a demanda”, contou ela, que afirma ter a informação que apenas 10% está digitalizado. Hoje, quem passa à frente do prédio da Smov avista centenas de pastas mofadas em prateleiras metálicas que parecem estar ali intactas há quase um ano.
Desde a enchente, apenas o material que já estava online pode ser consultado. Em setembro do ano passado, quatro meses após as enxurradas, ainda não havia, segundo despacho enviado pelo Escritório de Licenciamento à arquiteta, uma previsão de retomada dos trabalhos de digitalização dos expedientes únicos.
Retorno da Smamus de pedido feito no segundo semestre de 2024 | Imagem: Reprodução
Passado o pico do evento climático, o acesso ficou ainda mais dificultado. Ao menos desde fevereiro deste ano, o site do Escritório de Licenciamento informa que o arquivo físico fora perdido (conforme imagem abaixo).
Imagem: Reprodução
Até então, passada a inundação, a informação era apenas de que a digitalização estava suspensa e de que estavam sendo avaliados os danos sofridos (veja imagem abaixo).
Imagem: Reprodução
A deterioração do acervo provocada pela inundação, na opinião de Bruna Tavares, do IAB-RS, ainda precisa ser melhor explicada pelo município. “Entendemos que todo esse contexto agravado pela enchente acabou potencializando o descaso e abandono do prédio”, disse. “Mas, em um segundo momento, decretou-se uma perda total do arquivo. Denota que não houve um esforço na recuperação deste material, que é de extrema importância para o histórico dos projetos já desenvolvidos na cidade”, complementou.
“Gostaríamos de uma explicação maior e mais detalhada sobre o porquê decretaram uma perda total sem antes demonstrar à sociedade quais eram as alternativas ou possibilidades de recuperação desses arquivos”, cobrou a copresidenta do IAB-RS. “Simplesmente decretar perda total parece botar um ponto final em algo que não é simples assim de ser encerrado. Isso prejudica a história da cidade no seu desenvolvimento urbano, além do trabalho de profissionais e pesquisadores.”
O posicionamento dela encontra eco junto ao integrante do Conselho do Patrimônio Histórico Cultural (Compahc) e dos institutos históricos do Rio Grande do Sul e de São Leopoldo, André Huyer. “O prédio estava para ser vendido. Mas como que iriam vender um prédio com toda a papelada lá dentro? São toneladas de arquivos. Vê-se que não tinha uma preocupação da prefeitura com esse arquivo”, afirmou. “Com a enchente, a prefeitura não fez nada. Deixou lá e não tomou nenhuma iniciativa, que eu saiba. E o município ainda conta com uma série de servidores capacitados em restauração”, argumentou.
Huyer entende não haver como mensurar o prejuízo com a perda do acervo. “No futuro, a pessoa vai querer pesquisar algo da cidade e vai saber que a enchente levou”, lamentou. “É um reflexo da cultura brasileira, mas de forma exacerbada. As pessoas veem a manutenção de um arquivo ou de um acervo como despesa”.
O Ministério Público do Rio Grande do Sul (MP-RS) busca informações a respeito do acervo desde o ano passado. O órgão foi acionado a partir de uma denúncia de André Huyer. Ainda numa etapa preliminar de investigação, a promotora de Justiça Annelise Steigleder solicitou informações ao município em quatro oportunidades – 10 de julho, 27 de agosto, 23 de setembro e 30 de outubro. Não recebeu resposta em nenhuma delas. Em 18 de dezembro, o MP instaurou um inquérito civil para investigar o caso.
Em 3 de janeiro, o coordenador de atendimento do Escritório, Mauro Ochman, ilustrou a situação precária do prédio, que ainda se encontrava sem energia elétrica. Após uma limpeza em caráter emergencial, ele informou ao MP que “foi constatada a perda de Expedientes Únicos pelas águas em torno de 40% dos documentos sem a possibilidade de recuperação”. Ele não menciona quem atestou a perda dos documentos. O questionamento foi feito pela Matinal à Smamus e não respondido.
Imagem: Reprodução
O caso foi tema de audiência virtual na última quinta-feira, dia 13 de março. A prefeitura foi representada pela procuradora Carolina Falleiros, que reiterou o informado anteriormente, que 40% do acervo havia sido perdido. Ao MP, Falleiros comprometeu-se em esclarecer quais documentos ainda estão no prédio da Smov. Uma vistoria no local pode ser realizada nos próximos dias.