13 Dezembro 2024
41 anos depois de denunciar pela primeira vez o uso de trabalho escravo em uma fazenda brasileira de propriedade da empresa alemã Volkswagen, um padre católico finalmente vê o caso ser levado à Justiça.
A reportagem é de Eduardo Campos Lima, publicada por Crux, 12-12-2024.
O Ministério Público do Trabalho ajuizou em 4 de dezembro uma ação civil pública contra a indústria automobilística por supostamente ter utilizado trabalhadores escravizados na operação da fazenda Vale do Rio Cristalino, localizada no município de Santana do Araguaia, no Pará.
O padre Ricardo Rezende tinha apenas 25 anos quando chegou à Diocese de Conceição do Araguaia, no sul do Pará, na região amazônica. Logo ele foi informado pelo presidente do sindicato local de trabalhadores rurais sobre graves denúncias contra uma grande fazenda de propriedade da Volkswagen, uma das mais importantes montadoras de automóveis que atuavam no país sul-americano naquela época.
“Os trabalhadores rurais denunciaram diversas práticas comuns em situações de trabalho escravo, como o endividamento indevido dos trabalhadores, a impossibilidade de deixar a propriedade enquanto as supostas dívidas não forem pagas, o uso de violência contra os trabalhadores e até torturas e assassinatos”, lembrou Rezende.
Um relatório com essas acusações, datado de 1972-1976, foi entregue às autoridades, mas nada foi feito. Eram os tempos da ditadura militar (1964-1985), quando o regime estimulava as operações de corporações internacionais e reprimia os movimentos dos trabalhadores.
Mas Rezende, que chefiava a Comissão Pastoral da Terra (CPT) local, da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), ficou atento às ocorrências na fazenda.
Em 1983, um grupo de três ou quatro trabalhadores conseguiu escapar da propriedade. Um deles, um rapaz de 17 anos, era filho de um líder sindical rural e contou à CPT tudo sobre a fazenda. Rezende foi chamado e decidiu se juntar a um dos trabalhadores e pegar um voo para Belém, onde pretendia apresentar o caso ao governador do Estado.
“Mas nos disseram que ele estava em Brasília, então fomos para lá”, disse o padre. Na capital, após ser informado que o governador não estava mais no país, Rezende decidiu conversar com Dom Luciano Mendes de Almeida, secretário-geral da CNBB.
“Ele convocou uma entrevista coletiva para o dia seguinte, e conversamos sobre a situação da fazenda”, disse Rezende. Apesar da presença de vários jornalistas na reunião, apenas um jornal publicou uma história sobre a propriedade da Volkswagen. Era uma pequena nota, mas a imprensa internacional viu e artigos sobre o escândalo foram publicados em todo o mundo.
Rezende começou a enviar informações para organizações internacionais e para o jornal do sindicato dos metalúrgicos de São Bernardo do Campo, no estado de São Paulo, que representava os trabalhadores da fábrica da Volkswagen. Liderado por Luiz Inácio da Silva, atual presidente brasileiro, o sindicato já havia denunciado a empresa alemã por perseguir trabalhadores que lutavam contra a ditadura.
Um dos líderes sindicais, Expedito Soares Batista, havia sido eleito para o poder legislativo estadual e passou a denunciar a Volkswagen em sua tribuna todos os dias. “A empresa me convidou para visitar a fazenda. Eu disse que levaria comigo um líder sindical, jornalistas e outros legisladores estaduais”, Batista contou ao Crux.
Ao chegarem à propriedade, ele surpreendeu os diretores da empresa, que pretendiam mostrar apenas as modernas construções da fazenda aos visitantes, e disse que antes da visita queria se encontrar com Rezende e o líder sindical local. A Volkswagen teve que oferecer um caminhão a ele e levá-lo até a cidade próxima, pegando uma estrada local que não fazia parte de seus planos.
“Quando estávamos indo para a cidade, vimos um caminhão vindo na outra direção. Pedimos para o carro parar, porque queríamos falar com os ocupantes”, lembrou Batista. Os visitantes ficaram surpresos ao ver três ou quatro trabalhadores amarrados no caminhão.
“Conversamos com o homem que estava no comando, ele era um empreiteiro de mão de obra. Ele nos disse: 'Esses caras estavam em dívida com a fazenda, eles fugiram para a cidade e nós tivemos que parar de trabalhar e ir atrás deles'. Eu disse a ele para soltar os homens imediatamente”, disse Batista.
Mais tarde, quando o grupo – agora com Rezende – foi apresentado às casas dos trabalhadores, o padre pediu para entrar em uma casa de madeira. “Um homem agarrou meu braço e me pediu para tirá-lo. Ele disse que estava com febre alta e não tinha permissão para ir ao hospital”, o padre relembrou.
Rezende perguntou a Friedrich Brügger, o gerente da fazenda, sobre o caso daquele homem. O diretor suíço ficou furioso e disse que o padre só acreditava nas mentiras dos trabalhadores.
Mais tarde naquele dia, durante o jantar, Brügger deu um presente a Rezende como um sinal de paz, depois de gritar com ele. Era um cálice e uma patena, feitos com pau-brasil, uma espécie que não podia ser explorada legalmente.
“Pedi para ele ver o homem doente. Ele me levou para uma sala de atenção, onde o homem estava recebendo soro intravenoso. Ele me disse que era de uma cidade chamada Porto Nacional. Eu disse que o bispo local Celso era meu amigo e pedi para ele me dar um oi”, disse Rezende.
Ele então pediu a Brügger para garantir que o homem – que provavelmente estava enfrentando malária – chegaria em segurança a Porto Nacional. Brügger disse que apenas a área da fazenda fazia parte de sua jurisdição. “O bispo nunca recebeu minha mensagem. Não sei o que aconteceu com aquele homem”, disse Rezende.
Durante a visita, Batista também ouviu um trabalhador lhe dizer que a fazenda promoveu uma devastação em larga escala da floresta amazônica para criar espaço para o gado. Eles combinariam com outras fazendas vizinhas queimar partes da floresta ao mesmo tempo. Em uma dessas ocasiões, um satélite detectou o incêndio. A imprensa revelou que tal incêndio foi o maior já avistado do espaço.
Batista produziu um relatório após a viagem, mas nada foi feito. Rezende continuou ouvindo os depoimentos dos trabalhadores que deixaram a fazenda ao longo dos anos. Ele os fez assinar os depoimentos e arquivou todos eles junto com outros documentos, reunindo um amplo acervo sobre a propriedade da Volkswagen com mais de 600 documentos.
Em 2012, durante o mandato da presidente Dilma Rousseff, o governo federal criou a Comissão Nacional da Verdade, um grupo para investigar crimes de Estado contra ativistas durante a ditadura militar. A comissão foi subdividida em grupos menores, cada um cuidando de um elemento específico. Foi assim que Batista foi convidado a fazer parte de um grupo de ex-líderes trabalhistas que sofriam perseguição dentro da Volkswagen e outras empresas.
Batista e seus colegas reuniram evidências contra a empresa e uma ação judicial foi movida contra ela. A pressão social e da mídia sobre a Volkswagen acabou levando a corporação a negociar com a associação que foi formada para representar os trabalhadores perseguidos.
“Pagou uma indenização de US$ 6 milhões e pediu desculpas por seu papel durante a ditadura. Um grupo de 55 trabalhadores que conseguiu provar que foi perseguido foi indenizado”, disse Batista.
Mas o caso envolvendo a fazenda não teve o mesmo sucesso. Na década de 1980, a CPT decidiu entrar com uma ação trabalhista contra a Volkswagen. A empresa acabou perdendo, mas nunca aceitou pagar indenização para as vítimas de trabalho escravo. “Acho que não quis reconhecer os crimes que cometeu”, disse Rezende.
Após o acordo sobre os crimes da Volkswagen ser selado, Rezende decidiu que já era hora de reabrir o caso do trabalho escravo na fazenda. Um promotor que ele conhecia aceitou conduzi-lo. O padre enviou um pesquisador à região para encontrar pelo menos alguns dos 26 trabalhadores que lhe deram depoimentos na década de 1980.
“Ele encontrou 14 deles. Eles foram entrevistados pelos promotores e repetiram as histórias que nos contaram há 40 anos”, disse Rezende. O prazo de prescrição para ocorrências como assassinato e crimes trabalhistas já expirou. Mas trabalho escravo não tem prazo de prescrição, então o processo poderia ser aberto.
Rezende estima que mais de mil pessoas enfrentaram a dura realidade da fazenda nas décadas de 1970 e 1980. Ações judiciais individuais podem seguir o atual processo coletivo. O padre atualmente mora no Rio de Janeiro e é professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro, onde lidera um grupo de estudos sobre trabalho escravo.
Seus esforços para acompanhar e registrar o que acontecia com tantos trabalhadores explorados décadas atrás acabaram sendo determinantes para parte dessas vítimas, que agora têm uma chance de encontrar justiça. “Alguém deveria ser responsabilizado algum dia por tais crimes. E a memória dessas pessoas não devem ser apagadas”, disse.