10 Dezembro 2024
O ex-presidente uruguaio Pepe Mujica viaja pelo mundo, entre os EUA, a Inglaterra e o Japão, fazendo palestras e dando entrevistas, compartilhando seus pensamentos sobre a paz, o diálogo entre os povos e o empenho pelas causas ambientais. Nos cinemas.
O comentário é de Neusa Barbosa, jornalista e crítica de cinema, publicado por Cineweb, 02-12-2024.
Entre todas as formas que o cineasta Pablo Trobo poderia escolher para retratar seu personagem, o ex-presidente uruguaio Pepe Mujica, ele constrói a figura de um viajante incansável pelo mundo. Na bagagem, aparentemente simples, Pepe leva muito - suas mensagens contra a pobreza, a desigualdade e o consumismo desenfreado que é a causa maior da deterioração ambiental do planeta. E este intrépido ex-guerrilheiro sabe como é central às suas causas libertárias de toda a vida a salvação deste que ainda é o único planeta disponível para a humanidade.
Ao acompanhá-lo em contato com as platéias mais diversas, desde políticos e burocratas dentro da ONU, em Nova York, a jovens ávidos por ouvi-lo, na Inglaterra e no Japão, o filme expõe a impressionante capacidade comunicativa deste homem, hoje com 89 anos. Uma pessoa simples que não nega seu passado de ex-guerrilheiro, vivência que lhe ensinou, como ele mesmo diz, a carregar a mochila leve. Tem humor esse Mujica, que vive uma vida rural, numa chácara perto de Montevidéu, ao lado da mulher, a senadora Lucía Topolansky, onde planta flores e guarda o famoso fusquinha azul-celeste 1987.
Sem querer incorrer numa narrativa didática, o diretor - que conheceu Mujica como cinegrafista durante sua campanha presidencial - ousa utilizar alguns efeitos especiais curiosos em alguns momentos, como uma sequência com formigas gigantes. Além disso, dispensa a ordem cronológica para alinhar situações destas viagens pelo mundo a materiais de arquivo de momentos-chave na vida deste homem de trajetória singular, que presidiu o Uruguai entre 2010 e 2015 e inscreveu o nome do pequeno país sul-americano na agenda mundial. Afinal, em seu governo o Uruguai se tornou o primeiro país do mundo a legalizar a produção e a venda da maconha, arrancando das mãos do crime organizado este lucrativo comércio. Também em seu governo, registraram-se avanços como a legalização do aborto e o casamento entre pessoas do mesmo sexo, contribuindo para apagar os vestígios de uma única ditadura militar, entre 1973 e 1985, breve porém entre as mais duras do continente.
Mujica que o diga. O ex-Tupamaro, ao lado de outros companheiros, amargou 12 anos de prisão, parte deles em solitária e sendo submetido a torturas, fome, privado de livros e do contato com sua família - um calvário retratado no filme Uma Noite de 12 anos, de Álvaro Brechner. Nada disso o tornou um homem amargo. Ele incorporou essas experiências e se transformou nessa pessoa afável e generosa, disposta a compartilhar seus pensamentos e vivências em prol de um mundo menos egoísta e violento.
Ao mesmo tempo, Mujica mostra-se um personagem nada ingênuo. Agudo observador das engrenagens da política mundial, dispara, de vez em quando, observações certeiras sobre pessoas e situações. Um caso exemplar é Barack Obama, o ex-presidente norte-americano, com quem Mujica conversou três vezes. Dele, faz a seguinte descrição: “Suas ideias são melhores do que seu governo. Mas presidentes fazem o que podem. E nos EUA é onde os presidentes podem menos”.
O documentário recorda também algumas das ações internacionais do ex-presidente uruguaio, como sua ativa participação no difícil processo de paz na Colômbia, selando um acordo entre o governo e a guerrilha FARC, em 2016. Um episódio que retrata a disponibilidade de Mujica para construir pontes, edificar diálogos, formatar processos de pacificação.
Há breves registros, também, de encontros de Mujica com personagens da política brasileira, como o presidente Lula, a deputada e presidenta do PT Gleisi Hoffman e o fundador do MST João Pedro Stédile. Outro toque brasileiro é o uso do Trenzinho Caipira de Villa-Lobos, como um dos temas mais frequentes da trilha musical, que eventualmente comparece um pouco mais do que o necessário.
Retratando um Mujica de outros tempos, quando sua saúde não se encontrava ainda abalada por um câncer terminal, o filme tem um indiscutível tom de réquiem, que pode emocionar os muitos admiradores do ex-presidente pelo mundo. É visível o quanto uma figura maior como esta fará falta num mundo tão conturbado. Que o seu legado continue sendo inspirador.
Nome: Os sonhos de Pepe
Nome original: Los sueños de Pepe
Ano: 2024
País: Uruguai
Gênero: Documentário
Duração: 86 minutos
Classificação: 10 anos
Cor da filmagem: Colorido
Direção: Pablo Trobo
Elenco: