27 Novembro 2024
“A cúpula da Convenção sobre a Diversidade Biológica realizada em Cali, na Colômbia, atraiu muita atenção por parte da população, alguns poucos acordos, mas acabou se mostrando incapaz para resolver as questões mais importantes e urgentes”. A reflexão é de Eduardo Gudynas, em artigo publicado por Desde Abajo, 23-11-2024. A tradução é do Cepat.
Eduardo Gudynas é analista do Centro Latino-Americano de Ecologia Social (CLAES), de Montevidéu.
Uma nova reunião dos países que ratificaram a Convenção sobre Diversidade Biológica foi realizada em Cali, na Colômbia. Conhecidas como Conferências das Partes, neste caso a COP16, são os momentos em que os países definem as decisões mais importantes, que, neste caso, devem garantir a proteção da vida no planeta.
O encontro em Cali foi multitudinário, com mais de 23 mil participantes inscritos, e a novidade de uma área de acesso livre, a Zona Verde, que fez muito sucesso, com quase um milhão de visitantes.
Saíram algumas análises apressadas e superficiais sobre essa COP. Alguns se divertiram com os problemas logísticos de Cali, como o fato de as delegações passarem esses dias em acomodações temporárias utilizadas por casais. Estas histórias podem ser pitorescas, mas não vão à essência desses encontros e, além disso, todas as COP sofrem contratempos práticos. Na realidade, os organizadores conseguiram garantir que o encontro transcorresse sem problemas de segurança ou que ficasse refém de mobilizações contra o governo.
Mas quando se focam as questões essenciais e urgentes relativas à proteção da biodiversidade, pouco consideradas, fica claro que apenas alguns poucos acordos foram alcançados. O elevado peso simbólico de alguns deles e a massiva presença dos cidadãos permitiram que a cúpula evitasse ser classificada como um fracasso. O fato é que nas questões mais relevantes as divisões persistiram e o tempo das negociações foi mal administrado, até bloquear as resoluções. Isto levou a uma circunstância rara de acontecer: a cúpula não chegou a ser concluída formalmente, mas foi suspensa.
A reunião de Cali teve entre as suas prioridades alcançar avanços concretos nas ações para garantir a conservação da biodiversidade. Os compromissos assumidos pelos países são conhecidos como Marco Global de Biodiversidade Kunming-Montreal e foram aprovados em 2022.
O atual marco tem 23 metas, e no centro delas está a garantia de restaurar 30% dos ecossistemas degradados e conservar 30% das terras, águas e mares, até 2030. Isto é complementado por compromissos como deter a extinção de espécies, garantindo que a utilização da fauna e da flora selvagens seja segura e sustentável, ou reduzindo a poluição e as mudanças climáticas para evitar maiores danos às espécies. O marco também estabelece que a tomada de decisões deve integrar a atenção à biodiversidade em todos os níveis; e que as empresas devem avaliar, reportar e reduzir os impactos sobre ela. Para todas estas tarefas, deverão ser mobilizados 200 bilhões de dólares por ano, incluindo 30 bilhões de dólares por ano até 2030, que os países mais ricos deverão aportar para os países de renda média e baixa.
Em Cali, os governos chegaram a alguns acordos significativos. Um dos mais notáveis foi a criação de uma nova comissão que será composta por delegados dos povos indígenas e que estará diretamente vinculada à secretaria da convenção. Esta foi uma repetida exigência das organizações indígenas para terem canais diretos de participação, sem depender dos governos. Para tanto, foi criado o que é conhecido no jargão da convenção como “órgão subsidiário”. Quando este órgão foi aprovado em sessão plenária, houve uma grande salva de palmas e a resolução foi vista como uma vitória da presidência da COP nas mãos da ministra do Ambiente, Susana Muhamad.
Paralelamente, a Colômbia, com o apoio do Brasil, procurou aprovar o reconhecimento das comunidades afrodescendentes na tarefa de proteger a biodiversidade. Esta foi uma iniciativa muito divulgada pelo governo colombiano, especialmente pela vice-presidente Francia Márquez e vários ministros, embora tenha havido resistências dentro da convenção, inclusive por parte das delegações africanas. Finalmente, foi aprovada uma decisão que reconheceu as comunidades afrodescendentes tanto em suas ações como em seus conhecimentos para a conservação da biodiversidade, sua participação será facilitada e contarão, para isso, com ajuda financeira.
Em outra frente, foi abordada a gestão da informação derivada da diversidade genética. Esta questão, que no vocabulário da convenção é apresentada como sequência de informação digital (DSI), reconhece que a variedade genética em animais, plantas e microrganismos resulta em atributos que podem ter, por exemplo, utilidade como medicamentos ou alimentos. Portanto, em muitos casos, estão em jogo enormes benefícios econômicos.
Contudo, pouco ou nenhum desses ganhos é partilhado com os países de origem dessa diversidade. Nessa bioprospecção, aproveita-se inclusive o conhecimento dos povos indígenas, que já possuem conhecimentos detalhados, por exemplo, sobre os usos medicinais de plantas e animais.
Os países do Sul procuram há anos estabelecer salvaguardas e mecanismos para controlar esta apropriação e poder receber parte dos seus benefícios econômicos. Nesta COP, pela primeira vez, foi aprovada uma resolução que estabelece que as empresas que utilizam dados genéticos deveriam devolver parte dos seus benefícios econômicos, e foi criado um fundo com essa finalidade (que foi chamado de Fundo Cali). As empresas deveriam contribuir com 1% dos seus lucros, ou seja, 0,1% das receitas, que seriam canalizadas para os países de onde essa informação genética foi extraída, e metade desse dinheiro deveria beneficiar os povos indígenas.
Este acordo, aprovado num dos últimos esforços da COP, foi muito comemorado pela presidência colombiana. No entanto, quando examinados de perto, aparecem significativas limitações. Com efeito, o pagamento a este fundo é voluntário, e as proporções a pagar são indicativas e não obrigatórias. Não era isso que os países do Sul queriam, pois insistiam num mecanismo obrigatório. Infelizmente, ao estabelecer que os pagamentos são voluntários, todo o procedimento corre o risco óbvio de se tornar um novo tipo de marketing verde, onde haverá empresas que decidirão oferecer algum dinheiro para se apresentarem como campeãs verdes. As empresas também não são obrigadas a provar que não utilizam dados genéticos. Não apenas isso, mas o acordo é tão limitado que uma empresa pode até pagar pela informação genética que recolheu numa floresta tropical numa única ocasião, e pode vender os produtos derivados durante anos.
Foram registrados também alguns progressos em outras questões. Destacam-se resoluções que articulam esta convenção com a convenção das mudanças climáticas, outra que procura incorporar a questão da biodiversidade nos processos de tomada de decisão, no que diz respeito à proteção marinha e costeira e à gestão sustentável das espécies selvagens.
Paralelamente à convenção, o governo colombiano lançou uma Coligação Mundial para a Paz com a Natureza, promovida no país como um “marco” na conservação. Na realidade, acabou sendo uma declaração endossada por pouco mais de vinte países, algumas agências das Nações Unidas e outras organizações.
Quanto à essência da convenção, que é a conservação da biodiversidade, nesses mesmos dias, em Cali, foram divulgados diversos relatórios que confirmaram a gravidade da situação. Por exemplo, a atualização sobre as áreas protegidas no mundo mostrou que estas representavam 17,6% dos ambientes terrestres e águas continentais, e 8,4% das áreas marinhas e costeiras – situações muito distantes dos objetivos de proteção de 30% das terras e mares em 2030.
O mandato vigente estabeleceu que cada país deve estabelecer planos nacionais de conservação com suas metas e estratégias para deter e reverter a perda de biodiversidade antes de 2030, seguindo o marco de Kunming-Montreal. Estes programas de ação deveriam ser apresentados antes do início da COP em Cali.
Mas isso não aconteceu e, de fato, a situação é lastimável. Apenas 22% dos países que assinaram a convenção elevaram os seus planos nacionais para proteger a biodiversidade (44 de 196 países). Dos 17 países com maior riqueza em biodiversidade do planeta, 12 deles (onde vive aproximadamente 70% da biodiversidade do planeta) não apresentaram estes planos. Na América Latina, Brasil, Equador e Bolívia não divulgaram os seus planos, e a Colômbia o fez após o início da reunião de Cali.
A explicação de vários países é que não dispunham dos recursos necessários para elaborá-los, o que em grande parte é verdade, mas é também um bordão usado para acrescentar mais argumentos na hora de exigir dinheiro da cooperação internacional.
Esta situação tornou-se um problema para a presidência da reunião, a ministra Muhamad, uma vez que foram gerados todo o tipo de dúvidas sobre como continuar as negociações diante destes descumprimentos (incluindo os do seu próprio país). A resolução foi um puxão de orelhas nos governos, mas usando uma linguagem diplomática, “exortando-os” a apresentá-los o mais rapidamente possível.
Estes planos nacionais de conservação deveriam cumprir índices aprovados por todos os países e deveriam ser sujeitos a revisão, para que se pudesse avaliar se realmente estão sendo implementados. Ao mesmo tempo, também deveriam ser feitas avaliações globais. Esses procedimentos geram muitas suspeitas. Os governos resistem a serem avaliados por uma agência ou organismo internacional, invocando repetidamente a sua autonomia soberana. Mas todos sabem de casos em que se apela à soberania para justificar todo o tipo de desastre ambiental.
Se os gigantescos incêndios que devastaram quase 20 milhões de hectares de florestas tropicais no Brasil e na Bolívia em 2024 se repetissem num futuro próximo, muitas metas na proteção da biodiversidade desses países não seriam, sem dúvida, alcançadas. Portanto, um exame do seu comportamento feito de fora do país, pela convenção, poderia permitir que se denunciasse o comportamento destes dois países. O mesmo poderá acontecer com muitos outros países quando forem avaliados alguns dos compromissos assumidos.
Nestas condições, as negociações em Cali se encaminharam para aceitar que fossem realizadas avaliações globais e nacionais, mas estas últimas seriam voluntárias. Decidiu-se que estas revisões não podem ser intrusivas nem punitivas e que devem estar sob o controle de cada governo nacional. São compromissos muito vagos, mas como os detalhes tiveram de ser formalmente acordados no último dia de negociações, acabaram não sendo resolvidos.
Como já se observou, outra questão crítica a ser resolvida em Cali era multiplicar o dinheiro empregado para a conservação da biodiversidade. Deveriam ser mobilizados 200 bilhões de dólares por ano até 2030, incluindo o compromisso de que os países ricos ajudariam as nações de baixa e média renda com 20 bilhões de dólares por ano até 2025, e depois 30 bilhões de dólares por ano até 2030.
Repetiu-se o confronto entre os países desenvolvidos e muitos do Sul. Os primeiros insistiam em que os fundos e canais já existentes deveriam ser utilizados. Os últimos exigiam um novo fundo – entendo que com isso juntariam mais dinheiro e teriam um controle maior. Para muitas delegações governamentais esta era a questão mais importante a ser resolvida nesses dias em Cali.
O financiamento vinha operando dentro do Fundo Global para o Meio Ambiente (conhecido pela sigla GEF), uma agência bem conhecida e também questionada. Os países do Sul exigiram uma mudança e postularam a criação de uma nova institucionalidade especificamente voltada para a conservação.
Esta questão torna-se mais complexa porque no que se poderia chamar de Sul existem muitas posições, e quando se fala em dinheiro isso fica evidente. A China, por exemplo, às vezes age alinhada com as nações do Sul e outras vezes apoia as nações mais ricas. Isso aconteceu na COP anterior, em 2022, quando nas horas finais forçou uma resolução que, entre outros problemas, resultou no bloqueio da intenção de criar um fundo separado, que era precisamente o que delegações como as da União Europeia queriam.
Na época, essa manobra gerou muitas críticas por parte de alguns governos. Os países do Sul não esqueceram isso e em Cali, desde o primeiro dia, exigiram outra forma de conduzir as negociações. Insistiram mais uma vez num fundo separado e que fosse gerido diretamente pela convenção; essa posição foi expressa pelo Zimbábue para os países africanos e pelo Brasil para as nações megadiversas. Do outro lado, a União Europeia, o Japão e outros países industrializados opuseram-se ao novo fundo e também à possibilidade de assumir novos compromissos em dinheiro. A questão era urgente: os fundos disponíveis para a biodiversidade, em vez de se aproximarem dos esperados 20 bilhões de dólares, mal ultrapassavam os 396 milhões de dólares (somando as promessas de doações de última hora de alguns países).
Assim chegamos à longa noite final da COP16 em Cali. As questões de financiamento, assim como diversas outras de enorme importância, acabaram lotadas no último dia de deliberações. Quer por um erro ou falta de experiência da presidência colombiana, quer pelas manobras morosas das delegações do Norte, ou pelos próprios erros do Sul, visto que o tempo se esgotava, decidiu-se continuar com as deliberações noite adentro da sexta-feira, 1º de novembro, e prosseguiram na madrugada de sábado, dia 2.
Nessas horas, por exemplo, foram aprovadas resoluções sobre os recursos genéticos e a criação do Fundo Cali. Por volta das três e meia da manhã, a ministra Muhamad distribuiu um novo projeto sobre o incômodo problema do fundo para a conservação da biodiversidade. As cenas eram de uma sala plenária que se esvaziava gradativamente, ou com alguns delegados exaustos que finalmente sucumbiram ao sono ali mesmo nas mesas.
Fez-se uma tentativa de criar um mecanismo separado mas, ao mesmo tempo, Muhamad insistiu mais uma vez em vinculá-lo ao problema da dívida externa, um nexo sobre o qual o presidente Petro já tinha insistido. Esta vinculação não foi apoiada pelos países industrializados nem pela China. Embora seja uma questão que merece ser analisada, fazê-lo adicionou ainda mais dificuldades.
Diversos países do Norte opuseram-se mais uma vez à criação de um novo fundo. Após o amanhecer, observou-se que muitos delegados estavam de partida porque tinham que pegar os voos de volta aos seus países. A sala estava se esvaziando. Às 8h29 desse sábado, houve um pedido para verificar se havia quórum para tomar decisões. A contagem foi realizada e constatou-se que o número necessário de representantes não foi alcançado, e a COP foi suspensa. Não houve um encerramento formal, e todas as pendências deverão ser retomadas em uma próxima reunião em 2025.
Estas últimas cenas parecem resumir o estranho futuro desta cúpula. As tentativas de resolver no último minuto as emergências mais complexas acabaram encalhadas na imobilidade, onde muitos governos são responsáveis de diferentes maneiras. Tentou-se disfarçá-lo sustentando que se tratava de uma suspensão, mas como a perda de biodiversidade não para, o saldo final é quase um fracasso.