25 Outubro 2024
Pedi a Stefano Biancu, que eu sabia ter encontrado Gustavo Gutiérrez várias vezes, para propor uma breve lembrança da pessoa e do teólogo que acabou de entrar na luz do Senhor. Agradeço a ele do fundo do coração e me associo às condolências de todos aqueles que admiravam sua força e retidão - Andrea Grillo.
O artigo foi publicado por Come se non, 23-10-2024. A tradução é de Luisa Rabolini.
Eis o artigo.
Em memória de Gustavo Gutiérrez
No dia em que recebo a notícia de sua morte, desejo lembrar-me de Gustavo Gutiérrez com devoção e carinho.
Tive três longas conversas com ele, cada uma com muitas horas de duração, em 2015, durante minha estada de seis meses nos EUA, na Universidade de Notre Dame, onde Gustavo era professor. Dessas longas conversas, guardo uma bela e vívida lembrança. Percebia que estava diante de um verdadeiro crente, de um homem profundo, irônico (que me falava do senso de humor como um lugar teológico). Um homem generoso, que dedicou horas inteiras a mim, enquanto seus colegas habitualmente concediam encontros de não mais do que oito minutos. Um homem livre, sem rancor, apesar de só ter conseguido se tornar professor aos 75 anos, ao final de um processo canônico contra ele que durou 20 anos e terminou - como ele gostava de dizer - com um “você é católico”.
Durante esses encontros, senti que estava diante de um homem verdadeiro: não um personagem, como às vezes acontece quando se lida com o clero e os acadêmicos. Gustavo Gutiérrez tinha sido estudante de medicina, depois padre, assistente durante décadas dos estudantes e graduados católicos de seu país, para depois se tornar dominicano por devoção a seus mestres de teologia, especialmente Chenu. Era um homem que tinha vivido e isso se percebia claramente.
Nesta ocasião, gostaria de relembrar apenas alguns pontos da teologia da libertação, começando pelo livro Teología de la liberacíon (1971), cuja cópia ele me deu de presente, e pelo prefácio da edição de 1988 do livro, intitulado Mirar lejos (Olhar longe).
A Teologia da Libertação foi originalmente o título de uma palestra proferida por Gutiérrez em um encontro nacional de leigos, religiosos e sacerdotes em 1968, em Lima, e publicada em 1969, em Montevidéu, por iniciativa da Pax Romana.
A teologia da libertação começou com um “hecho mayor”: a irrupção dos pobres na igreja latino-americana. Pela primeira vez, aqueles que sempre estiveram ausentes entravam no cenário da história, começando assim a ser agentes de seu próprio destino.
Daí a miopia daqueles que interpretaram a teologia da libertação como uma corrente teológica puramente intelectual e não como um caminho de povo. Fundamentais para o desenvolvimento desse caminho teriam sido as conferências do episcopado latino-americano em Medellín (1968) e Puebla (1978), precedidas por aquela do Rio de Janeiro (1955) e seguidas pelas de Santo Domingo (1992) e Aparecida (2007).
A opção preferencial pelos pobres, que é central para a teologia da libertação, é um princípio de evangelização estabelecido em Puebla, onde o termo “opção” indica empenho e decisão, e tem suas origens em João XXIII e, em particular, na radiomensagem um mês antes do Concílio Ecumênico Vaticano II (11 de setembro de 1962): “Diante dos países subdesenvolvidos, a Igreja se apresenta como ela é, e deseja ser, a Igreja de todos, e particularmente a Igreja dos pobres”.
Não se trata de um ideal social, mas ad opção pelo Deus do Reino que Jesus nos anunciou. Gutiérrez escrevia: “O motivo último do compromisso com os pobres e os oprimidos não está na análise social que empregamos, em nossa compaixão humana ou na experiência direta que podemos ter da pobreza. Todas elas são razões válidas que desempenham, sem dúvida, um papel importante em nosso compromisso, mas, como cristão, este se baseia fundamentalmente no Deus de nossa fé. É uma opção teocêntrica e profética que tem suas raízes na gratuidade do amor de Deus, e é exigida por ela”.
Entre os frutos da teologia da libertação, Gutiérrez colocava o martírio de Oscar Romero: um martírio, ele me repetia, que mudou para sempre a própria teologia do martírio. De fato, não foi simplesmente um martírio pela fé, mas pela caridade e pela justiça.
Entretanto, estaríamos nos enganando se considerássemos o discurso da teologia da libertação como o discurso de belas almas. Gutiérrez escrevia: “Não se trata de idealizar a pobreza, mas, ao contrário, de assumi-la como é: como um mal; para protestar contra ela e se esforçar para aboli-la”. “A pobreza cristã, expressão de amor, é solidária com os pobres e é um protesto contra a pobreza”.
A natureza da teologia da libertação, Gutiérrez gostava de repetir, é ser uma carta de amor a Deus, à igreja e ao povo: “una carta de amor a Dios, a la Iglesia y al pueblo a los que pertenezco”.
A mensagem profética da teologia da libertação é, portanto, a própria mensagem do Evangelho: a pedra descartada pelos construtores tornou-se a pedra angular. Para a disseminação dessa mensagem, a partir de hoje somos todos nós um pouco mais responsáveis.
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