20 Junho 2024
O novo site da Conferência dos Bispos Católicos dos EUA sobre amor, sexualidade e casamento, "Amor significa mais", foi lançado este ano e procura envolver pessoas com diversas origens ideológicas e religiosas.
A reportagem é de Katie Collins Scott, publicada por National Catholic Reporter, 18-06-2024.
Quando Bernie Donlon, católica de 25 anos que ano passado obteve um mestrado em teologia, clicou pela primeira vez num novo website lançado pelos bispos dos EUA, ela ficou intrigada com o formato interativo “escolha a sua própria aventura” e a sua intenção declarada foi explorar o amor como "mais do que noções estreitas que são espalhadas por aí".
À medida que Donlon, que se identifica como queer, navegada de página em página, ela ficou cada vez mais preocupada com a abordagem e o conteúdo.
“Se eu tivesse feito uma pesquisa no Google e me deparasse com isso quando era mais jovem, acho que isso me faria retroceder alguns passos em minha jornada pessoal como expressão de gênero e sexualidade”, disse ela. “Ele fala de uma forma superlativa, na minha opinião, e que não convida nem envolve o diálogo ou a escuta”.
No início deste ano, a Comissão de Leigos, Casamento, Vida Familiar e Juventude, da Conferência dos Bispos Católicos dos EUA, lançou uma campanha no site chamada "Amor Significa Mais". Com um design elegante, opções de áudio e imagens de jovens racial e etnicamente diversos, a página adota uma abordagem do tipo socrático e aborda vários tópicos – divórcio, casamento, identidade de gênero, orientação sexual, pornografia, paternidade – começando com a questão: "O que é o amor?"
Dom Robert Barron, de Winona-Rochester, Minnesota, fundador da organização de mídia católica Word on Fire, é o presidente da comissão. Num comunicado de imprensa anunciando a iniciativa, Barron disse que as conversas sobre amor, família e sexualidade “podem ser confusas e polarizadoras” e que, portanto, estava satisfeito com o fato de a nova iniciativa poder ajudar a “trazer clareza e compaixão a essas questões”.

Bernie Donlon (Foto: Reprodução | National Catholic Reporter)
Bernie Donlon obteve recentemente um mestrado em teologia e agora trabalha para o New Ways Ministry, grupo católico de defesa LGBTQ. Donlon disse ao National Catholic Reporter que sente esperança de que os bispos possam renovar o site para torná-lo mais reflexivo das realidades e preocupações dos indivíduos LGBTQ.
O site, de acordo com o comunicado de imprensa, é direcionado a uma série de indivíduos, desde catequistas a “buscadores” de diferentes origens religiosas – ou mesmo nenhum.
No entanto, Donlon e outros católicos, incluindo um psicólogo, teólogos e uma mãe de uma criança transgênero, disseram ao National Catholic Reporter que o website contém imprecisões, não reflete as experiências das pessoas LGBTQ e, em geral, falha na sua missão de alcançar pessoas com diferentes pontos de vista ideológicos e religiosos.
O National Catholic Reporter perguntou a Chieko Noguchi, porta-voz dos bispos, sobre estas e outras críticas, mas não recebeu resposta. Barron não respondeu a um pedido de entrevista antes da publicação.
Noguchi disse anteriormente que os membros da comissão episcopal consultaram uma grande variedade de indivíduos, entre eles bispos, pastores, educadores, profissionais médicos e de saúde mental, e líderes católicos leigos envolvidos no ministério da vida familiar.
A iniciativa, de acordo com o comunicado, também “ouviu e procura abordar questões e preocupações recebidas de pessoas que se sentem desconfortáveis com alguns ensinamentos da Igreja”, incluindo “aqueles que defendem a possibilidade de divórcio e um novo casamento, indivíduos que se identificam como LGBT, e aqueles que defendem a pornografia".
“Amor Significa Mais” surge no momento em que os católicos expressam opiniões fortemente divergentes sobre as pessoas trans. Ele substitui o site “Casamento: Único por uma Razão” dos bispos, criado em 2010, quando um número crescente de estados legalizou o casamento entre pessoas do mesmo sexo.
Em uma entrevista em março à rádio Catholic Review da Arquidiocese de Baltimore, Andrew Buonopane, diretor assistente para o casamento e a vida familiar do Secretariado dos Bispos dos EUA para Leigos, Casamento, Vida Familiar e Juventude, disse que na elaboração do site eles queriam compreender “as feridas” que as pessoas “estão trazendo consigo, para que não as atropelemos” e para mostrar que “a cura dessas feridas é realmente possível com a verdade que a Igreja ensinou e continua a ensinar”.
A ferida está infundida na forma como muitas pessoas de fé pensam sobre a disforia de gênero e a sexualidade, disse Julia Sadusky, psicóloga católica do Colorado que frequentemente ajuda famílias cristãs conservadoras a navegar ou a compreender as realidades da disforia de gênero.
“Poucas pessoas que agem de forma contrária à verdade sobre a sexualidade humana o fazem por motivações puramente filosóficas”, diz a seção “Sobre” do site. “Em vez disso, as feridas pessoais estão normalmente no centro de mal-entendidos e erros”.
Depois de ter estudado muitas pesquisas, “a resposta mais honesta e precisa é que não sabemos especificamente” o que causa a disforia de gênero ou a orientação sexual de uma pessoa, disse Sadusky, acrescentando que parece ser uma combinação de criação e natureza.
“Assim que começarmos a pontificar além disso, acho que perderemos um pouco de credibilidade para as pessoas que ainda não acreditam nessa narrativa sobre as feridas que causam essas experiências”, disse ela.
Jason Steidl Jack, católico gay e professor assistente de estudos religiosos na St. Joseph's University, de Nova York, falou que achou a frase do site sobre a ferida "incrivelmente paternalista e condescendente - como se fosse a única razão pela qual as pessoas acreditariam em qualquer coisa" além do que os bispos estão dizendo é que eles são pessoas quebradas ou feridas”.
“A comunidade LGBTQ não está quebrada por causa da nossa sexualidade”, disse ele. “Não estamos quebrados por causa do nosso gênero, expressão de gênero, autocompreensão de gênero. Estamos quebrados porque vivemos em um mundo que é homofóbico, transfóbico”.
Os tópicos do site geralmente começam com um cenário que pretende refletir situações da vida real. Na categoria “Discordância de Gênero”, uma pessoa chamada Rob “nunca se sentiu bem” sendo menino e foi intimidada por se importar mais com teatro do que com esportes.
A página sugere que “em vez de sugerir que gostar mais de teatro do que de esportes faz de alguém uma garota”, seria útil que um amigo reconhecesse que “Rob é um homem sem forçá-lo a obedecer a certos estereótipos”.

Jennifer MacNeil e sua filha trans Willow (Foto: Reprodução | National Catholic Reporter)
Jennifer MacNeil, fotografada com sua filha transexual, Willow, disse que o site dos bispos dos EUA contém imprecisões e está fora de contato com os jovens. Esse conteúdo “afasta as pessoas da Igreja”, disse MacNeil ao National Catholic Reporter. "Mas não vou recuar. Posso ter minha fé e ser uma mulher católica com uma filha transgênero".
Jennifer MacNeil é católica mãe de três filhos, incluindo uma filha transgênero, em New Hampshire. MacNeil leu a página sobre Discordância de Gênero com os seus filhos e todos sentiram que a narrativa usava estereótipos ultrapassados que há muito eram rejeitados pela maioria dos jovens, disse ela.
Em última análise, o site “é um tapa na cara”, disse MacNeil, “e encoraja os membros da minha comunidade religiosa a agir contra as pessoas trans”.
Sadusky disse que muitos indivíduos sem formação em saúde mental pensam que a disforia de gênero é causada por estereótipos rígidos.
“Muitas vezes penso que assumimos que a disforia de gênero é uma preocupação puramente moral ou um problema cognitivo a ser contestado”, disse ela. “E não conheço ninguém com quem trabalhei que tenha disforia de gênero e que experimentasse a resolução do problema simplesmente por alguém lhes dizer que podem ser um menino que prefere atividades que não se conformam com o gênero”.
Uma seção sobre Divórcio e Novo Casamento concentra-se no divórcio sem culpa, dizendo que ele prejudica os relacionamentos porque torna mais difícil para os casais se envolverem em conversas difíceis sem temer que uma das partes possa sair facilmente.
“Em um mundo sem divórcio sem culpa”, lê-se no site, “Melissa”, a esposa no cenário fictício, poderia ter tido “a tranquilidade de saber que poderia conversar honestamente com Neil sobre o que a está incomodando, sem temer as consequências".
Sadusky disse que o divórcio sem culpa tem “alguns benefícios muito claros” e permitiu que as mulheres abandonassem casamentos abusivos ou de alto conflito.
“Podemos escolher o divórcio sem culpa como o vilão dessa história, mas não acho que isso afete o conflito na forma como o enquadram aqui, e pode ser muito útil para as pessoas saírem de uma dinâmica abusiva”, disse.

Melinda Ribnek posa com sua família na Praça de São Pedro, no Vaticano (Foto: Reprodução | National Catholic Reporter)
“Acho que o Espírito Santo se move consistentemente através da Igreja”, disse Ribnek. “E estamos num período em que o Espírito Santo está falando destas comunidades marginalizadas, e também à Igreja, e com o tempo tenho esperança de que chegaremos a um entendimento que respeite tanto o cerne dos ensinamentos da Igreja, mas com uma profundidade e compreensão das coisas mais difíceis no contexto dessas questões".
Melinda Ribnek é uma mãe católica de oito filhos em Savannah, Geórgia, que está concluindo o mestrado em aconselhamento clínico em saúde mental.
Ela disse em entrevista ao National Catholic Reporter que está angustiada com a forma como o site sugere que o consentimento nem sempre é necessário dentro do casamento porque pode impedir a intimidade. (O site reconhece que os abusadores podem usar erroneamente tal visão para justificar atos ilícitos e enfatiza a necessidade de comunicação.)
A abordagem é “profundamente irresponsável”, dada a taxa de violência doméstica e abuso em casamentos heterossexuais pouco saudáveis, disse Ribnek.
Donlon, recentemente contratada como coordenadora de comunicações digitais e programas do grupo católico de defesa LGBTQ New Ways Ministry, disse que entende e pode apreciar que o site é baseado na antropologia cristã, mas que não parece considerar a realidade das pessoas LGBTQ, suas experiências de vida.
Além disso, os argumentos filosóficos são por vezes confusos ou utilizam uma lógica e uma linguagem que só fazem sentido se já aceitamos os ensinamentos da Igreja, disse Donlon, acrescentando que sente esperança de que os bispos possam considerar a possibilidade de renovar o site.

Jason Steidl Jack (Foto: Reprodução | National Catholic Reporter)
Jason Steidl Jack é um católico gay e professor assistente de estudos religiosos na St. Joseph's University, de Nova York. Como muitos outros católicos, as pessoas LGBTQ vão à terapia e à confissão, disse Steidl Jack. “Mas a nossa sexualidade e o nosso gênero não fazem parte das feridas pessoais que levam à nossa má compreensão dos ensinamentos e erros da Igreja”.
Steidl Jack concordou que “Amor Significa Mais” seria em grande parte ininteligível para pessoas que não abraçam uma visão de mundo católica. “Prefiro enviar para alguém o Catecismo da Igreja Católica porque ele expõe o ensino da Igreja de forma muito clara”, disse ele.
Uma lista de recursos no site apresenta trabalhos sobre o casamento a partir de perspectivas jurídicas e teológicas, um livro sobre paternidade de coautoria do apologista da Catholic Answers, Trent Horn, e links para o Chastity Project e o Projeto Pessoa e Identidade.
O fundador do Chastity Project, Jason Evert, deverá falar no Congresso Eucarístico Nacional, organizado pelos bispos dos EUA, em Indianápolis, em julho deste ano.
O Projeto Pessoa e Identidade, iniciativa apoiada por um grupo de reflexão conservador e com ampla influência na Igreja, adota pontos de discussão de direita e apresenta organizações médicas controversas. Uma de suas fundadoras, Mary Rice Hasson, é conselheira da comissão que lidera o site.
Sadusky disse que teme que, se repetidamente as pessoas procurarem recursos católicos sobre gênero, sexualidade e amor e "tudo o que encontrarem for o domínio apologético", pensarão que a Igreja não tem nada de valor a oferecer no domínio pastoral, exceto " envolvimento cognitivo com a teoria”.
Eles verão que a Igreja não está familiarizada com necessidades adicionais além dessas e incapaz de dar “apoio no hospital de campanha que são as nossas vidas”, disse Sadusky.
“Quem vai à Igreja, quem vai a Jesus, quem vai à riqueza do magistério através deste site?” acrescentou Ribnek. “Não creio que seja eficaz para quem ainda não está em bolhas católicas conservadoras”.
Buonopane, na entrevista à rádio, disse que o site não “compromete a verdade”, mas que não busca condenar. “Encorajo pastores, pais e educadores a conferirem o site”, disse Buonopane, e a darem feedback sobre como ele “poderia ser melhor moldado à sua experiência ou às pessoas com quem estão lidando”.
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